O abandono de uma entrevista televisiva por um político tornou-se um caso revelador daquilo que é a percepção dominante das relações entre cena política e cena televisiva. Aconteceu na SIC Notícias, na noite de ontem, 26 de Setembro de 2007: Ana Lourenço interrompeu Santana Lopes para que fosse dada em directo a chegada a Portugal de José Mourinho; na sequência da reportagem, Santana Lopes manifestou o seu desagrado pela interrupção e abandonou a entrevista.
Tanto bastou para que o gesto de Santana Lopes fosse maioritariamente visto como uma prova de coragem e, sobretudo, como um protesto contundente contra a “futebolização” da televisão. Vale a pena sistematizar algumas pistas de reflexão:
* Quantidade/qualidade — A saída de Mourinho do Chelsea adquiriu, de facto, em todos os canais, um imenso tempo de antena (a meu ver, desproporcionado e excessivo). Em todo o caso, regressa aqui uma visão meramente “métrica” da televisão: fala-se quase sempre de minutos “a mais” ou “a menos”; fala-se muito pouco ou nada do gratuito televisivo, do moralismo televisivo, da demagogia televisiva.
* Códigos — A reacção de Santana Lopes parece ignorar que, de facto, um canal de notícias (“bom” ou “mau”, não é isso que está em causa) funciona, a todos os instantes, aberto para aquilo que, na gíria anglo-saxónica, se chama breaking news — interromper não resulta de um “maior” ou “menor” respeito por quem está a ser entrevistado; é um efeito codificado inerente ao próprio jornalismo que (“mal” ou “bem”, insisto) se está a praticar.
* Tribuna vs dispositivo — A reacção de Santana Lopes parece decorrer também de um entendimento formalmente equívoco da própria relação das televisões com os protagonistas da cena política: as televisões não funcionam como “tribuna” desses protagonistas; participar num dispositivo televisivo implica uma aceitação tácita das regras desse dispositivo — utilizar o próprio dispositivo para denunciar aquilo que poderão ser as suas falhas é uma atitude que carece de alguma invenção estética ou, então, está condenada ao vazio argumentativo.
É neste último ponto que reside algo de sintomático, quanto mais não seja pelo carácter quase inédito da situação: por uma vez, temos um político que reage “contra” a televisão.
Claro que, no plano filosófico, há algo de bizarro e contraditório na reacção de alguém que: primeiro, não viu a sua entrevista minimamente posta em causa; segundo, possui um curriculum sempre ligado à visibilidade mediática, visibilidade essa que, num período relativamente longo, decorreu da sua inserção profissional no mundo do futebol.
Tanto bastou para que o gesto de Santana Lopes fosse maioritariamente visto como uma prova de coragem e, sobretudo, como um protesto contundente contra a “futebolização” da televisão. Vale a pena sistematizar algumas pistas de reflexão:
* Quantidade/qualidade — A saída de Mourinho do Chelsea adquiriu, de facto, em todos os canais, um imenso tempo de antena (a meu ver, desproporcionado e excessivo). Em todo o caso, regressa aqui uma visão meramente “métrica” da televisão: fala-se quase sempre de minutos “a mais” ou “a menos”; fala-se muito pouco ou nada do gratuito televisivo, do moralismo televisivo, da demagogia televisiva.
* Códigos — A reacção de Santana Lopes parece ignorar que, de facto, um canal de notícias (“bom” ou “mau”, não é isso que está em causa) funciona, a todos os instantes, aberto para aquilo que, na gíria anglo-saxónica, se chama breaking news — interromper não resulta de um “maior” ou “menor” respeito por quem está a ser entrevistado; é um efeito codificado inerente ao próprio jornalismo que (“mal” ou “bem”, insisto) se está a praticar.
* Tribuna vs dispositivo — A reacção de Santana Lopes parece decorrer também de um entendimento formalmente equívoco da própria relação das televisões com os protagonistas da cena política: as televisões não funcionam como “tribuna” desses protagonistas; participar num dispositivo televisivo implica uma aceitação tácita das regras desse dispositivo — utilizar o próprio dispositivo para denunciar aquilo que poderão ser as suas falhas é uma atitude que carece de alguma invenção estética ou, então, está condenada ao vazio argumentativo.
É neste último ponto que reside algo de sintomático, quanto mais não seja pelo carácter quase inédito da situação: por uma vez, temos um político que reage “contra” a televisão.
Claro que, no plano filosófico, há algo de bizarro e contraditório na reacção de alguém que: primeiro, não viu a sua entrevista minimamente posta em causa; segundo, possui um curriculum sempre ligado à visibilidade mediática, visibilidade essa que, num período relativamente longo, decorreu da sua inserção profissional no mundo do futebol.
Claro também que podemos considerar que, face à possibilidade de um directo com José Mourinho, Santana Lopes deveria ter sido informado disso mesmo. E podemos até especular: se a SIC Notícias não o fez, terá cometido um erro — erro benigno, não de desrespeito pelo entrevistado, mas de mero procedimento jornalístico.
Mas não faz sentido dramatizar tudo isso porque, insisto, há aqui um fortíssimo valor de sintoma. Porquê? Antes do mais porque vivemos num contexto mediático marcado por três contundentes orientações globais, cada vez com menos excepções:
1 - FICÇÃO: a televisão está todos os dias a aniquilar a pluralidade das ficções audiovisuais, impondo uma monocultura narrativa fundada num modelo único e ditatorial (a telenovela).
2 - ENTRETENIMENTO: a televisão está todos os dias a promover a infantilização dos espectadores, enquadrando-os em concursos e programas (ditos de) entretenimento que favorecem uma visão anedótica, simplista e gratuita das pessoas e das relações humanas.
3 - OLHAR: a televisão está todos os dias a impor modos de obscenidade orientados por uma crescente adulteração da simples ética do olhar, nomeadamente através de reality shows cujas leis formais e efeitos práticos têm mesmo contaminado trabalhos da área (dita da) informação.
Ora, que aconteceu? Uma reacção que parece resultar de uma visão meramente instrumental do dispositivo televisivo. De um modo geral (e escusado será dizer que as excepções são altamente honrosas), os protagonistas da vida política vêem a televisão como um simples veículo para os seus discursos, evitando discutir a televisão que, realmente, se faz no nosso país. Ora, essa televisão apresenta-se, todos os dias, marcada pelas três orientações atrás resumidas. Mais do que isso: é uma televisão que vive nessa imensa agonia, cultural e comunicacional, há mais de uma década. Daí o escândalo: face a tal agonia, o comportamento global da classe política (com pouquíssimas excepções, repito) tem-se distinguido por um silêncio devastador, silêncio que configura uma atitude de demissão — política, precisamente — face ao poder normativo que a televisão adquiriu em todas as formas de comportamento, relação e organização do tecido social.
Não faz sentido exigir a Santana Lopes (ou seja a quem for) que reaja de forma asséptica a uma situação que pode ser emocionalmente incómoda e que, obviamente, ele não está obrigado a antecipar. Como não faz sentido esperar que, seja quem for, num estúdio de televisão, funcione como uma espécie de encarnação sem mácula de um qualquer “racionalismo” universal. Há mesmo na reacção de Santana Lopes um carácter genuíno que, de tão raro e não premeditado, merece todo o respeito. Em todo o caso, ele próprio colocou-se numa situação que só pode expor ainda mais o gigantesco défice de pensamento da classe política face às monstruosidades televisivas que, todos os dias, contaminam a nossa vida social.
Mas não faz sentido dramatizar tudo isso porque, insisto, há aqui um fortíssimo valor de sintoma. Porquê? Antes do mais porque vivemos num contexto mediático marcado por três contundentes orientações globais, cada vez com menos excepções:
1 - FICÇÃO: a televisão está todos os dias a aniquilar a pluralidade das ficções audiovisuais, impondo uma monocultura narrativa fundada num modelo único e ditatorial (a telenovela).
2 - ENTRETENIMENTO: a televisão está todos os dias a promover a infantilização dos espectadores, enquadrando-os em concursos e programas (ditos de) entretenimento que favorecem uma visão anedótica, simplista e gratuita das pessoas e das relações humanas.
3 - OLHAR: a televisão está todos os dias a impor modos de obscenidade orientados por uma crescente adulteração da simples ética do olhar, nomeadamente através de reality shows cujas leis formais e efeitos práticos têm mesmo contaminado trabalhos da área (dita da) informação.
Ora, que aconteceu? Uma reacção que parece resultar de uma visão meramente instrumental do dispositivo televisivo. De um modo geral (e escusado será dizer que as excepções são altamente honrosas), os protagonistas da vida política vêem a televisão como um simples veículo para os seus discursos, evitando discutir a televisão que, realmente, se faz no nosso país. Ora, essa televisão apresenta-se, todos os dias, marcada pelas três orientações atrás resumidas. Mais do que isso: é uma televisão que vive nessa imensa agonia, cultural e comunicacional, há mais de uma década. Daí o escândalo: face a tal agonia, o comportamento global da classe política (com pouquíssimas excepções, repito) tem-se distinguido por um silêncio devastador, silêncio que configura uma atitude de demissão — política, precisamente — face ao poder normativo que a televisão adquiriu em todas as formas de comportamento, relação e organização do tecido social.
Não faz sentido exigir a Santana Lopes (ou seja a quem for) que reaja de forma asséptica a uma situação que pode ser emocionalmente incómoda e que, obviamente, ele não está obrigado a antecipar. Como não faz sentido esperar que, seja quem for, num estúdio de televisão, funcione como uma espécie de encarnação sem mácula de um qualquer “racionalismo” universal. Há mesmo na reacção de Santana Lopes um carácter genuíno que, de tão raro e não premeditado, merece todo o respeito. Em todo o caso, ele próprio colocou-se numa situação que só pode expor ainda mais o gigantesco défice de pensamento da classe política face às monstruosidades televisivas que, todos os dias, contaminam a nossa vida social.
A indignação contra o directo da chegada de Mourinho, mesmo que a possamos compreender no plano humano, possui um sentido involuntariamente pueril. E extravasa para além do episódio e, no limite, do próprio caso particular de Santana Lopes. Para mostrar que se interessa pelo papel social da televisão — e, sobretudo, pelos seus efeitos anti-sociais —, a classe política terá que passar da indignação circunstancial ao pensamento de fundo. Terá que trabalhar mais as ideias, infinitamente mais. Terá, antes disso, que ter ideias. E terá que saber explicar, metodicamente e sem ambiguidades, se se sente bem com a avalancha quotidiana de mediocridades televisivas. Mais do que isso: em caso afirmativo, terá que esclarecer como é que se sente bem.