terça-feira, setembro 25, 2007

Com que vozes?

Antes de rodada a primeira cena, já Fados (que estreia no próximo dia 4), era um filme polémico. Polémico porque uma pequenez provinciana levou alguns a questionar o porquê de ser apoiado um estrangeiro com vontade de filmar o fado. Se nos lembrarmos o que Wim Wenders, um alemão, fez pela música de Cuba em Buena Vista Social Club, o que o mesmo realizador contribuiu para a divulgação internacional dos Madredeus em Viagem a Lisboa ou o que Sally Potter, uma inglesa, deu ao tango em Lição de Tango, estas suspeitas de passaporte ser argumento. De resto, depois de visto o simplesmente deslumbrante Fados, compreenderemos que só mesmo um realizador estrangeiro poderia ter feito semelhante filme. Um filme fundamental para levar o fado mais longe no mundo, no tempo, na sua própria renovação e reinvenção enquanto género vivo e com muito ainda para nos dar.
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Fados - e o “s” do título ajuda a arrumar ideias – é, sobretudo, uma visão muito pessoal sobre o universo do fado, das suas genéticas e afinidades. É a visão de Carlos Saura, criada depois de conversas, música escutada e vista, com alguns dos maiores conhecedores do género por interlocutores. Uma visão que se manifesta em filme que, mais que documental, é eminentemente um musical. Com uma banda sonora que, mesmo servindo no ecrã imagens elaboradas a pensar nestas músicas, sobrevive agora como disco, mostrando também assim como o fado é lugar onde desaguam histórias, mas também sabe ser afluente de novas realidades.
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Com sóbria atenção pelas ideias em jogo, Fados tanto mostra uma relação saudável com a memória, como espelha um ser presente que acredita no futuro. Portugal é aqui um porto que recebe navios e outros envia para mais além. De África e do Brasil chegam referências que se assimilam. Para o futuro projectam-se novas leituras de velhas normas, ensaiam-se afinidades nas novas linguagens urbanas (o hip hop está presente), aceita-se o desafio da globalidade sob caução da expressão world music. Tudo isto sem esquecer raízes, a tradição, os ditados canónicos. Como no filme, a banda sonora traduz esta colecção de quadros. África mora evidente em Transparente, de Mariza. E o Brasil revela-se quando Toni Garrido canta Menina Você Tem, Chico Buarque recorda, com a colaboração de Carlos do Carmo, o seu Fado Tropical ou Caetano Veloso dá nova alma a Estranha Forma de Vida. Lila Downs reinventa Foi Na Travessa da Palha sob travo pop. Catarina Moura evoca a Severa, Cuca Roseta encanta na Rua do Capelão. Camané e Carlos do Carmo são, como sempre, magníficos. Com Miguel Poveda, Mariza abre pontes com o flamenco em Meu Fado Meu. Argentina Santos recorda velhas escolas, assim como é espantosa encenação de outra tradição a casa de fados virtual partilhada por Vicente da Câmara, Maria da Nazaré, Ana Sofia Varela, Carminho, Ricardo Ribeiro e Pedro Moutinho. Estes e mais motivos mais não fazer que provar que muitos caminhos o fado tem ainda pela frente. Estes, e os que mais vierem.
PS. Texto originalmente publicado na revista NS