sexta-feira, agosto 31, 2018

"Papillon" ou a anti-cinefilia

O novo Papillon não passa de uma precária imitação do filme com Steve McQueen produzido em 1973. Ou como a política de “remakes” chegou a um ponto de imenso desgaste — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Agosto), com o título 'Com saudades de Steve McQueen...'.

Perante a estreia de um filme como Papillon, talvez seja útil colocar uma questão fulcral que, em boa verdade, todos temos secundarizado. Não é uma questão meramente artística, já que começa por envolver as opções de fundo do próprio mercado. A saber: porque é que filmes tão irrelevantes como este chegam às salas, enquanto outros, recheados de trunfos comerciais ou de marcas de prestígio, não gozam do mesmo privilégio?
Lembremos apenas os exemplos recentes de História de um Fantasma, de David Lowery, com Casey Affleck e Rooney Mara, ou Distúrbio/Unsane, de Steven Soderbergh, com Claire Foy (protagonista da série televisiva The Crown). Que lhes aconteceu? Ambos não passaram pelas salas: o primeiro surgiu directamente em DVD, o segundo foi colocado nos videoclubes. Isto sem esquecer que o filme de Soderbergh ocupa, desde já, um lugar emblemático na história do cinema, já que foi totalmente rodado com um iPhone.
Que tem, então, Papillon para oferecer? Quase nada. Claro que a história do herói, Henri Charrière (1906-1973), de alcunha “Papillon”, é apelativa: a sua experiência numa prisão da Guiana francesa, no período 1931-1945, tem todas as componentes de uma verdadeira epopeia. E o facto de a verosimilhança de muitos aspectos da autobiografia de Charrière ter sido discutida ao longo dos anos não invalida a sua sedução aventurosa. Tanto mais que a sua aliança com outro prisioneiro, Louis Dega, define um clássico quadro dramático de empatia, sobrevivência e revelação.
Ora, o cinema não se faz exactamente, nem exclusivamente, de histórias... mas da maneira de as contar. E o novo filme assinado pelo dinamarquês Michael Noer parece ter como objectivo essencial “imitar” a primeira versão cinematográfica de Papillon, realizada em 1973 por Franklin J. Schaffner, com Steve McQueen e Dustin Hoffman nos papéis de Charrière e Dega, respectivamente [trailer].


O filme de Schaffner é uma obra-prima? Longe disso, na minha perspectiva. Mas não é uma mera “competição” de valores que está em causa. Está em causa, isso sim, a banalidade de um empreendimento que, ao querer retomar a herança de um filme (que foi um genuíno fenómeno popular), apenas tem para oferecer um tom de precária imitação que redunda em involuntária e desastrada caricatura. Chega a ser patético o modo como os novos protagonistas — Charlie Hunnam (Charrière) e Rami Malek (Dega) — tentam imitar os tiques de McQueen e Hoffman.
Em última instância, o que está em causa excede as desconcertantes opções do mercado português. Estamos, afinal, perante o imenso desgaste de uma estratégia de “remakes” que, na maior parte dos casos, não possui qualquer ideia narrativa e, em boa verdade, parece nem sequer decorrer de alguma estratégia comercial minimamente consistente. Cinefilia, precisa-se.

O perfume de Zoë

Todos os sexos são ambíguos. Todos os cenários são incertos. Qualquer recanto, por mais recatado ou intimista, acaba por ser exposto, porventura denunciado, através de um mapa global. A Ásia é a nova Europa. Assim vai o mundo em que vivemos — o anúncio de Black Opium, de Yves Saint Laurent, com Zoë Kravitz [Vogue], é a celebração angustiada desse modo de estar em todo o lado e não pertencer a nenhum lugar. O perfume, na sua vocação de coisa presente, mas sempre imponderável, talvez seja a derradeira utopia — o perfume, não o corpo por ele perfumado.

quinta-feira, agosto 30, 2018

O sexo segundo Anna Calvi

Fiquemo-nos, para já, pelo tema-título: Hunter serve de bandeira do novo álbum de Anna Calvi, convocando-nos para um universo em que sexo, desejo e prazer se encenam através de um exuberante jogo de espelhos com as noções de solidão e partilha, êxtase e contemplação. Dito de outro modo: rock em estado puro, gótico segundo o rótulo, mas no essencial primitivo — e sem complexos de o ser. O teledisco tem assinatura de Matt Lambert — "explicit content", diz a legenda de abertura.

I dressed myself in leather
With flowers in my hair
The red light doors, the window
Nothing can compare

One more taste
One more time
One more time
I open the door wide
I wanted to survive
Nothing lasts
Nothing lasts

The bodies and the rhythm
And flowers in my hair
The red light on the leather
Nothing will compare

And now I want to play
Now I want to play
Now I want to play
Now I want to play

One more taste
One more time
One more time
I open the door wide
I wanted to survive
Nothing lasts
Nothing lasts

quarta-feira, agosto 29, 2018

A IMAGEM: John Bryson, 1975

JOHN BRYSON
Ingmar Bergman de visita ao armazém de Tubarão
1975

"Meg" ou a crise dos tubarões

Com Meg: Tubarão Gigante, o cinema de Verão tenta reactivar as memórias heróicas de Steven Spielberg. Nada feito: o megalodonte não aguenta a comparação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Agosto), com o título 'Um tubarão americano em tom chinês'.

Eis a mais velha estratégia de mercado (cinematográfico ou não): quando um produto mobiliza muitos consumidores, rapidamente se fabricam imitações mais ou menos inspiradas, tentando fazer valer outro princípio mercantil. A saber: o consumidor irá, por certo, tentar repetir a experiência original...
Isto para dizer que Meg: Tubarão Gigante é menos um objecto de cinema e mais um empreendimento que tenta rentabilizar as memórias desse filme prodigioso que é Tubarão (1975), de Steven Spielberg [trailer original].


Como bem sabemos, a história não é assim tão esquemática, quanto mais não seja porque, para lá das respectivas sequelas (todas elas menores), Tubarão gerou uma imensa colecção de monstros mais ou menos marinhos (quase sempre de duvidosa inspiração artística). Além do mais, não deixa de ser curioso referir que este novo produto se inspira num romance de 1997, Meg: A Novel of Deep Terror, de Steve Alten, cuja adaptação começou a ser trabalhada, logo na altura da sua publicação, pelos estúdios Disney. O projecto sofreu sucessivos adiamentos, acabando por ser concretizado, duas décadas mais tarde, com chancela da Warner Bros.
Não há muito a dizer sobre os resultados, a não ser que tudo o que aqui encontramos parece uma versão em segunda mão de modelos que outros, a começar por Spielberg, aplicaram com outra agilidade narrativa e inteligência simbólica. Desta vez, a ameaça provém de um megalodonte, monstro pré-histórico que sai das profundezas do oceano para atacar uma plataforma de investigação marítima e, depois, os banhistas da zona costeira mais próxima.
Como diz uma personagem: “Há um monstro lá fora. E está a observar-nos.” Aliás, o esquematismo dos diálogos (e o aspecto quase tosco de alguns efeitos especiais) pode levar-nos a pensar que a realização de Jon Turteltaub visa menos a construção de um filme e mais a criação de uma espécie de auto-paródia em que ninguém se leva a sério... É uma hipótese. Ainda assim, convenhamos que nem sequer a postura do herói, interpretado por Jason Statham, consegue redimir o espectáculo. Na sua gloriosa incapacidade de sugerir a mais discreta emoção, Statham tem também a seu cargo frases heróicas como aquela com que arranca para o confronto final com o tubarão: “Vou por esta coisa a sangrar!” [trailer].


Enfim, registemos apenas que, para o melhor e para o pior, o negócio das grandes empresas de cinema está mesmo a mudar. Porquê? Porque o peso dos produtores e mercados asiáticos é cada vez maior na contabilidade dos estúdios americanos. Neste caso, não só os cenários e grande parte do elenco é asiático — incluindo Bingbing Li, a muito popular actriz chinesa —, como a produção é repartida por EUA e China. Como se prova, a globalização é mesmo um facto, mas os tubarões estão em crise...

terça-feira, agosto 28, 2018

Uma selfie com CR7

[ 4 Julho 2004 ]
Graças a uma aplicação de telemóvel, qualquer um de nós pode tirar uma selfie com Cristiano Ronaldo: assim vai o admirável mundo de imagens em que vivemos, com o futebol e para lá do futebol — este texto foi publicado no suplemento '1864' do Diário de Notícias (19 Agosto).

O rapaz parecia não ter encontrado ainda uma solução de harmonia entre o corpo franzino e o guarda-roupa com que o vestiram. Dir-se-ia que a camisola podia até pertencer a outro dono, mais encorpado, adulto e previsível. Até mesmo os adesivos que usava nos lóbulos das orelhas (protegendo os furos recentes) acentuavam a sua condição de pequeno grande extra-terrestre — uma entidade errante e errática, à procura do seu projecto como homem.
Foi no dia 4 de Julho de 2004, no cenário do novo Estádio da Luz. Disputava-se a final do Europeu de selecções de futebol, esse evento que, impulsionado pelo discurso militante de Luiz Felipe Scolari, fora programado, encenado e celebrado como um reencontro mágico de todo um país com a sua identidade primordial. Terá sido? Carregamos, agora, o peso de mais de uma década de história para respondermos, pertencendo aos mais optimistas a tarefa de provar que aí iniciámos um percurso nacional de redenção sem mácula.
Em todo caso, não percamos de vista o nosso vulnerável e fascinante rapaz. Com 19 anos completados poucos meses antes (a 5 de Fevereiro), Cristiano Ronaldo chorava intensamente: ao fim de 90 minutos de muito empenho e nenhuma eficácia da selecção portuguesa, a Grécia sagrara-se campeã da Europa.
As lágrimas nunca são simples. E nada têm a ver com o seu espectáculo televisivo. Importa não simplificar, muito menos menosprezar, a comoção desta imagem de um rapaz que descobria a verdade primordial da solidão individual no meio do ruído da multidão.
Com tal imagem, através dela, conseguimos pelo menos resistir às agressivas ilusões (sociais, mediáticas, políticas) que insistem em representar Cristiano Ronaldo como líder de uma galeria de “super-homens” a que, por definição, cada um de nós, peão incauto das atribulações deste mundo, não pertence nem pode pertencer. E acedemos à possibilidade de o admirar, não porque ele seja um vencedor obrigatório ou compulsivo, antes porque, como qualquer um de nós, também perde — e também sobrevive.
Para a história mitológica do então jogador do Manchester United, as imagens do seu choro são tanto mais tocantes quanto envolvem a ironia de um “erro” que vale a pena lembrar: Cristiano Ronaldo ainda não se confundia com o símbolo global de CR7, já que a sua camisola ostentava o número... 17!

Uma pessoa ou uma marca?

Como seria a história de tudo isto se estivéssemos a falar de outro número, outra personagem, outra identidade mediática? Se existisse um “CR17”? A pergunta não é filosófica. Ou melhor, só o é porque a filosofia dominante dos nossos tempos se confunde com os poderes perversos e quotidianos do marketing. Ao renascer como CR7, Cristiano Ronaldo consumou a utopia que parasitou o imaginário colectivo e, mais especificamente, a noção de identidade nacional: triunfar, não como pessoa, mas como marca.
Reconhecê-lo não envolve qualquer menorização das proezas futebolísticas do jogador, muito menos da sua excepcional capacidade de entrega a tudo o que envolva a profissionalíssima superação dos limites do próprio corpo. Acontece que estamos a falar de alguém, já não apenas um ser humano, mas um símbolo abstracto (CR7, precisamente) cujo poder se pode medir também através da linguagem do dinheiro. Exemplo? Nas primeiras 24 horas depois da oficialização do contrato com a Juventus, venderam-se 520 mil camisolas de Cristiano Ronaldo. Contas redondas: 60 milhões de dólares.
Bizarro fenómeno, sem dúvida. Por um lado, habitamos uma paisagem mediática em que, quase sempre, o facto de uma personalidade da política ou dos meios artísticos ser detentor de alguma riqueza (financeira, entenda-se) é automaticamente associado a alguma sugestão de suspeição. Com Cristiano Ronaldo, a acumulação de riqueza é recebida por todos nós como ilustração prática de grandeza humana.
Mais uma vez, importa repelir as misérias do burburinho mediático. Não se trata de lançar qualquer tipo de anátema sobre o jogador. Bem pelo contrário: nem sequer é preciso perceber as nuances tácticas do futebol para reconhecer Cristiano Ronaldo como exemplo modelar de trabalho e dedicação ao trabalho — em boa verdade, se celebramos as proezas da sua contabilidade, isso diz mais sobre nós do que sobre ele.
Dir-se-ia que, através de CR7, conseguimos resgatar os limites da nossa existência material, contemplando a acumulação de dinheiro como uma saga redentora: CR7 devolve ao cidadão comum (“eu”, “tu”, ele”) a possibilidade de, nem que seja por um breve instante de reconfortante ilusão mediática, acreditar no dinheiro como expressão de uma verdade cristalina, sem mácula. “Gostava de ter crenças e dinheiro”, escreveu Álvaro de Campos no seu poema Opiário — CR7 concede-nos, pelo menos, o sabor insubstituível da crença.

Intimidade digital

No universo de CR7, o dinheiro é uma entidade cujo valor se confunde com a sua capacidade congénita de circular — de colocar outras coisas a circular, de gerar circulação através de circulação. Nessa agilidade de comportamento e empreendimento — em que o discurso humanista se cruza com as estratégias do marketing —, há mesmo uma dimensão que, como bem sabemos, raras vezes faz manchetes (e não só a propósito de Cristiano Ronaldo): ele tem sido reconhecido, muito justamente, pelos seus gestos filantrópicos, de tal modo que, segundo dados de 2015, divulgados pela organização não governamental DoSomething.org, Cristiano Ronaldo foi, em todo o planeta, o atleta que fez mais doações de carácter humanitário.
Tudo isto, entenda-se, existe através de um turbilhão de imagens. Se, por estes dias, consultarmos a página de entrada do seu site oficial, podemos deparar com: uma promoção de produtos naturais para controle de peso e energia, um apelo a dádivas de sangue, fotografias da conquista da última Liga dos Campeões pelo Real Madrid, imagens caseiras com os filhos, etc.
Num certo sentido, somos convidados a viver por delegação a existência de CR7. Essa delegação já não é exactamente estética, como pode acontecer através do trabalho de um escritor ou um músico, nem sequer depuradamente simbólica, como terá acontecido com os jogadores de futebol antes do futebol se ter transformado num império televisivo. É, no essencial, iconográfica: da camisola com o nº 7 às cápsulas que nos ajudarão a recuperar o equilíbrio físico, vivemos no tempo da fusão virtual e do seu êxtase: “Je suis CR7”.
[ CR7selfie ]
A prova muito real — em boa verdade, completamente virtual — desse poder agregador de CR7 está na aplicação de telemóvel, “CR7selfie”, que passou a estar disponível no seu site. Mais uma vez, trata-se de um elemento que não pode ser dissociado da filantropia: uma percentagem de cada download (1,99 €) será entregue à Save the Children, organização não governamental que desenvolve um admirável trabalho de protecção e educação de crianças em mais de 120 países.
Pois bem, o que é a “CR7selfie”? Precisamente aquilo que a sua designação sugere: uma aplicação que permite escolher uma imagem de Cristiano Ronaldo de modo a associá-la a uma fotografia do dono do telemóvel, criando uma selfie... com CR7!
Bem sabemos (ou esquecemos) que a intimidade digital não passa de um logro, benigno é certo, gerado pelas maravilhas virtuais do nosso planeta tecnológico. Seja como for, algo em nós se tornou de tal modo frágil, a ponto de consumirmos essa intimidade como um fim em si mesmo. O rapaz com a camisola nº 17 parecia menos volátil, mais humano — resta-nos a ternura magoada com que o contemplamos.

domingo, agosto 26, 2018

Neil Simon (1927 - 2018)

Autor teatral, argumentista de televisão e cinema, a sua obra pode simbolizar todo um universo made in USA de comédia de costumes: Neil Simon faleceu no dia 26 de Agosto, em Nova Iorque, depois de um internamento por problemas renais — contava 91 anos.
Descalços no Parque (Gene Saks, 1967), Sweet Charity - A Rapariga que Queria Ser Amada (Bob Fosse, 1969) ou Plaza Suite/Suite em Hotel de Luxo (Arthur Hiller, 1971) são apenas alguns dos filmes que escreveu a partir de textos de sua autoria. Simon foi, afinal, um notável observador social e, ao mesmo tempo, um irónico e incorrigível romântico. Quase sempre através de uma aparente e elaborada ligeireza, as suas histórias envolvem uma espécie de requiem pelos restos de um humanismo clássico, anterior às normas da chamada sociedade de consumo.
Nesta perspectiva, o seu trabalho mais exemplar talvez seja The Odd Couple, peça estreada na Broadway em 1965, transformada em filme em 1968, sob a direcção de Gene Saks, entre nós identificado de forma desastrosa como Mal por Mal... Antes com Elas: o par de amigos que partilham um apartamento — interpretados pelos brilhantes Walter Matthau e Jack Lemmon — define um certo conceito masculino "liberal" e, em particular, as suas relações contraditórias com o universo feminino.
Vencedor de vários prémios Emmy e Tony, Simon ganhou um Pulitzer, curiosamente, na área de drama. Aconteceu em 1991, com a peça Lost in Yonkers, retrato amargo e doce de dois jovens na Nova Iorque de 1942. A respectiva versão cinematográfica, entre nós intitulada Sobreviver a Todo o Custo, surgiu em 1994, sob a direcção de Martha Coolidge, com Richard Dreyfuss, Mercedes Ruehl e Irene Worth nos papéis principais.
Simon foi quatro vezes nomeado para Oscars de argumento: aconteceu com os filmes Mal por Mal... Antes com Elas, The Sunshine Boys/Uma Parelha de Chatos (1975), The Goodbye Girl/Não Há Dois, Sem Três... (1977) e California Suite/Um Apartamento na Califórnia (1978), os últimos três dirigidos por Herbert Ross — nunca ganhou. Em 2006, recebeu o Prémio Mark Twain de Humor Americano, distinção atribuída pelo John F. Kennedy Center for the Performing Arts.

>>> Trailer de Descalços no Parque + retrato/entrevista de Neil Simon pelo New York Times.




>>> Obituário no Variety.

sábado, agosto 25, 2018

No centenário de Leonard Bernstein

Nome próprio: Louis. Pela Wikipedia, ficamos a saber que foi uma escolha da avó, embora não reconhecida pelos pais que sempre o chamaram de Leonard — e foi esse o nome que legalmente adquiriu, aos 15 anos, já depois da morte da avó. Nasceu a 25 de Agosto de 1918, faz hoje 100 anos: Leonard Bernstein (falecido a 14 de Outubro de 1990) é um dos monumentos da música do século XX. Lembremos o seu génio através da música de um dos compositores visceralmente associados ao seu labor de maestro: Gustav Mahler — eis um notável registo da Sinfonia nº 8 de Mahler, com Bernstein a dirigir a Filarmónica de Viena.


>>> Site oficial de Leonard Bernstein.

#MeToo: a ressaca

1. Subitamente, o paraíso da libertação sexual voltou a ser assombrado pelo pecado. Duas mulheres, Avital Ronell, professora na Universidade de Nova Iorque, e Asia Argento, actriz e realizadora, foram acusadas de assédio sexual — Ronell foi de imediato defendida por vários colegas académicos, ao mesmo tempo que era suspensa das suas funções [DN]; no caso de Argento, alegadamente envolvendo relações com um rapaz de 17 anos, temos assistido a um processo de sucessivas negações e contra-negações [Expresso]. Dito de outro modo: mesmo no plano estritamente factual, nada está encerrado.

2. O certo é que tais notícias não podem deixar de desencadear um efeito de ressaca, tão impreciso quanto perturbante. Com elas, e através delas, relançamo-nos no sistema de afirmações, militâncias e valores gerado ou, de alguma maneira, induzido pelo movimento #MeToo. Na sua crueza, a manchete do Libération [#MAL-ESTAR] talvez deva ser contraposta a momentos anteriores, comandados por um equívoco triunfalismo moral; em todo o caso, tal manchete traduz um salutar gesto de paragem para reflexão — no plano da linguagem jornalística, sublinhe-se a sua pertinente associação a uma imagem emblemática de Argento (afinal, uma figura da linha da frente do #MeToo) no dia de encerramento do Festival de Cannes do passado mês de Maio, contexto que a actriz escolheu para declarar publicamente que, em 1997 (em Cannes, precisamente), tinha sido "violada por Harvey Weinstein".

3. Era pura estupidez utilizar o #MeToo como uma espécie de litigação perversa e, sobretudo, compulsiva contra todos os homens, obrigando-os a "provar" que são diferentes dos acusados. Do mesmo modo, será repulsivo usar estas notícias para propalar a noção de que "elas" ou "eles"... é tudo igual. Não estamos num desses tristes debates televisivos em que a redução de qualquer situação a uma dicotomia simplista parece satisfazer o alcance das ideias — e também as possibilidades discursivas geradas pelo seu confronto.

4. A complexidade do que está em jogo obriga-nos a superar qualquer maniqueísmo, seja ele descritivo ou moral, que não consiga ver/pensar o mundo para além dos "homens" e das "mulheres" como entidades globais, unívocas, definitivamente estabelecidas e operantes. O inegável mal-estar nasce de uma verdade muito básica que, não poucas vezes, algumas militâncias feministas resistem a encarar. A saber: não é possível pensar a sexualidade omitindo a sua inscrição em sistemas de relações que envolvem poder. Do mesmo modo, é preciso tentar compreender como os poderes inerentes às relações se inscrevem em todas as regiões do comportamento humano, incluindo a sexualidade. Para além do que não sabemos, e de tudo aquilo que, por certo, nos escapa, os casos de Ronell e Argento são histórias de poder — independentemente da maior ou menor concordância que nos possam suscitar, creio que vale a pena ler os textos de Emma Gray [HuffPost] e Josephine Livingstone [The New Republic], precisamente sobre os circuitos de poder e o futuro do #MeToo.

5. Definitivamente, importa reagir a esse modo de (não) pensar que reduziu qualquer questão sexual ao desenho (público, compulsivamente publicitado) de um conflito entre duas entidades, uma necessariamente identificada como "opressor", outra compelida a ser descrita como "vítima". Podemos mesmo lembrar que Robert Hughes, num livro admirável publicado há 25 anos — Culture of Complaint (à letra: "Cultura da Queixa") —, antecipava a generalização de uma ideologia, hoje em dia visceralmente mediática, que tende a definir qualquer indivíduo apenas como vítima imediata ou potencial. Comentando algumas formas radicais de feminismo, Hughes chamava mesmo a atenção para o efeito perversamente normativo que nasce da definição unívoca da mulher como "vítima indefesa do opressor masculino".

6. Reconhecer os limites de tais deambulações radicais não tem nada a ver com a possível banalização de qualquer caso de agressão (sexual ou não), nem com a legitimação das muitas formas de violência machista que existam na intimidade sexual ou, por exemplo, no espaço do emprego. Trata-se antes de perguntar de que modo a cegueira desse radicalismo (não) contribui para formas acrescidas de consciência dos dramas que assombram as relações humanas.

7. O trabalho de Camille Paglia sobre estas questões pode ajudar-nos a tentar abrir um pouco o leque da complexidade que enfrentamos — complexidade social e simbólica, descritiva e filosófica. Não que a vertigem do estilo argumentativo de Paglia sirva de modelo para qualquer padrão intocável de pensamento — ela é, aliás, um exemplo vivo do risco que consiste em enfrentar as contradições geradas pelas próprias sequências do acto de pensar. Acontece que Paglia, de alguma maneira ecoando as sugestões analíticas de Hughes, resiste ao comodismo panfletário de qualquer processo de vitimização. Referindo-se à reforma dos costumes nos espaços universitários, foi com estas palavras que concluiu a sua participação numa conferência em Harvard (10-04-2008) dedicada ao 'Legado e futuro do feminismo':

>>> Se foi cometida uma ofensa, deve ser comunicada à polícia, de modo que as liberdades civis tanto do acusador como do acusado possam ser protegidas. Nada disto serve para dispensar os jovens do seu dever de comportamento honorável. O hooliganismo não pode ser tolerado. Mas necessitamos de parar de encarar tudo na vida a partir da estreita visão dos géneros. Se as mulheres esperam um tratamento igualitário na sociedade, têm de deixar de pedir protecções especiais que as infantilizam. Com a liberdade vem a responsabilidade pessoal.

CAMILLE PAGLIA
Pantheon Books, 2017

sexta-feira, agosto 24, 2018

"Imagine" sem Phil Spector

Pergunta mais ou menos utópica: como soaria a canção Imagine sem o arranjo de Phil Spector? Pois bem, a pergunta adquiriu agora uma dimensão completamente objectiva. Isto porque uma versão anterior da canção, apenas com John Lennon ao piano, acaba de ser revelada. Trata-se de uma das novidades absolutas de uma monumental reedição do álbum Imagine, agendada para 5 de Outubro, 47 anos passados sobre o seu lançamento, em Setembro/Outubro de 1971.
Agora, através de demos, versões não utilizadas no alinhamento final, curiosidades de estúdio e um documentário, tudo em 4 CDs + 2 Blu-rays [Rolling Stone], será possível redescobrir, não apenas esse tema que se transformou numa espécie de hino pessoal de Lennon (cerca de dois anos passados sobre o desmembramento dos Beatles), mas também aquela que é, porventura, a sua mais confessional colectânea de canções. Eis a versão agora divulgada, a par do registo originalmente editado.

Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people living for today

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people living life in peace, you

You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope some day you'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people sharing all the world, you

You may say I'm a dreamer
[...]



De Bresson a Schrader, regressando a Bresson

Como se o cinema nascesse ali mesmo, dentro do filme, através do filme: assim é O Carteirista, de Robert Bresson, uma das grandes reposições deste Verão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Agosto), com o título 'Cinema de corpo e espírito'.

Acredito que muitos espectadores se recordarão do final desse filme magnífico que é American Gigolo (1980), de Paul Schrader. No cenário de uma prisão, separados por um vidro, Julian (Richard Gere) e Michelle (Lauren Hutton) vivem um momento da mais pura redenção: para lá das dramáticas convulsões da sua relação, o amor, entre eles, existe. A ponto de Julian, procurando a carícia da mão de Michelle, do outro lado do vidro, dizer: “Demorou tanto tempo até chegar a ti” [eis um video desses momentos eloquentes, embora com o facto desagradável de se tratar de uma dobragem italiana].


Quer os espectadores o saibam ou não, vale a pena lembrar que Schrader citava, assim, de forma muito directa e explícita, a cena final de um outro filme: O Carteirista (1959), de Robert Bresson, precisamente mais um clássico absoluto do cinema francês a pontuar o nosso Verão cinematográfico [eis os momentos finais do filme de Bresson].


De tão evidente e assumida, esta “coincidência” ajuda a resumir a grandeza de um autor como Bresson: a sua linguagem depurada e austera, envolvendo a celebração da dimensão espiritual das relações humanas, conferem-lhe o estatuto de um dos mais influentes mestres do cinema francês. E, como se prova, com ecos criativos para além de França. No caso de Schrader, argumentista de vários filmes de Martin Scorsese (incluindo Taxi Driver), vale a pena recordar que ele dedicou a sua tese universitária a três cineastas — Bresson, o dinamarquês Carl Th. Dreyer e o japonês Yasujiro Ozu — do chamado “cinema transcendental” (a tese, Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer, foi publicada em 1972).
Centrado na trajectória solitária de um carteirista, o filme de Bresson concretiza de forma sublime a sua relação com os corpos dos actores. Tudo se passa como se cada gesto contivesse a possibilidade enigmática (transcendental, sem dúvida) de revelar uma verdade humana que não cabe na banalidade do quotidiano. E escusado será sublinhar que o facto de esta ser também uma história de dinheiro e sobrevivência não é estranho à misteriosa sedução das imagens e sons de Bresson. Enfim, nem tudo acontece através de personagens e cenários digitais — quase 60 anos depois, O Carteirista continua a ser um filme revolucionário.

quinta-feira, agosto 23, 2018

A IMAGEM: Tim O'Brien, 2017

TIM O'BRIEN
Black Marilyn

2017

Nas águas da Casa Branca

"Pela primeira vez, vimos, em tribunal, provas que associam fortemente o Presidente a actos criminosos" — as palavras do antigo procurador federal David Axelrod definem um novo ponto de convulsão na presidência de Donald Trump. As condenações de Michael Cohen e Paul Manafort, antigos colaboradores de Trump (advogado e coordenador de campanha, respectivamente) são matéria nuclear do artigo de Brian Bennett na revista Time, na edição dupla que, em papel, surgirá com as datas de 3-10 Setembro. A ilustração da capa tem assinatura de Tim O'Brien.

>>> Video sobre as capas da Time com Donald Trump.

quarta-feira, agosto 22, 2018

A IMAGEM: Nate Beeler, 2018

NATE BEELER
The Columbus Dispatch
15-08-2018

Barbara Harris (1935 - 2018)

Rodagem de INTRIGA EM FAMÍLIA
— Barbara Harris e Alfred Hitchcock
Actriz de formação teatral, membro do Actors Studio, teve uma carreira cinematográfica tão discreta quanto admirável: a americana Barbara Harris faleceu no dia 21 de Agosto, vitimada por cancro de pulmão — contava 83 anos.
Começou no Playwrights Theatre, em Chicago, tendo sido colega de vários nomes que viriam a ter importantes carreiras televisivas e cinematográficas, como Edward Asner, Elaine May e Mike Nichols. Na Broadway, a sua versatilidade permitiu-lhe representar em registos muito diversos, do musical The Apple Tree (que lhe valeu um prémio Tony) à Mãe Coragem, de Brecht.
Estreou-se na televisão em 1961, num episódio de Alfred Hitchcock Apresenta, tendo surgido em séries como Naked City ou The Defenders. No cinema, um dos seus primeiros papéis, em Quem é Harry Kellerman? (1971), de Ulu Grosbard, contracenando com Dustin Hoffman, valeu-lhe uma nomeação para o Oscar de melhor actriz secundária. Foi brilhante, assumindo personagens de contraditória vulgaridade, em Nashville (1975), retrato íntimo da cidade da música country por Robert Altman, e Intriga em Família (1976), derradeira realização de Alfred Hitchcock, perverso conto moral sobre o valor do dinheiro e o fantasma da morte. A comédia familiar As Aventuras de Annabel (1976), produção Disney com Jodie Foster, foi um dos seus maiores sucessos comerciais. Surgiu ainda, por exemplo, em títulos tão especiais como A Sedução de Joe Tynan (1979), de Jerry Schatzberg, Corações em Segunda Mão (1981), de Hal Ashby, e Peggy Sue Casou-se (1986), de Francis Ford Coppola. Retirou-se em finais da década de 90, durante alguns anos dedicando-se ainda ao ensino dramático.

>>> Trailer de Nashville.


>>> Obituário no New York Times.

Memórias de "Gandhi" (1982)

Para rodar o seu filme Gandhi (1982), Richard Attenborough não fabricou a multidão por via digital: são memórias insubstituíveis do grande ecrã — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Agosto), com o título 'Quando um filme é (mesmo) muito grande'.

No dia 3 de Agosto, faleceu Ronnie Taylor, notável director de fotografia do cinema britânico — contava 93 anos. A sua filmografia apresenta uma curiosidade rara neste domínio: embora tenha começado a assinar a fotografia de filmes na década de 60, continuou, até ao começo dos anos 80, a trabalhar como operador de câmara. E assumiu tal função em títulos tão importantes como Os Inocentes (Jack Clayton, 1961), Morgan – Um Caso para Tratamento (Karel Reisz, 1966) ou Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975).


A referência mais célebre do seu trabalho é, obviamente, Gandhi, de Richard Attenborough, uma subtil e muito didáctica evocação biográfica do Mahatma Gandhi e do complexo processo de independência da Índia. Foi consagrado com o Oscar de melhor filme de 1982, tendo obtido mais sete estatuetas douradas, nomeadamente para Attenborough (melhor realizador), Ben Kingsley (melhor actor) e o próprio Taylor (melhor fotografia).
O envolvimento de Taylor no projecto de Gandhi teve algo de acidental, uma vez que, a meio das filmagens, foi chamado para substituir Billy Williams, afectado por problemas de coluna. Na prática, cada um deles trabalhou cerca de metade das vinte semanas que durou a rodagem de Gandhi — por isso mesmo, partilharam o Óscar.
O que será menos conhecido é o facto de Taylor ter presidido à rodagem de uma cena cujo gigantismo a fez entrar na lista de recordes do Guinness. Na verdade, o funeral de Gandhi, tal como filmado por Attenborough, continua a ser a cena que, historicamente, mobilizou maior número de figurantes: 300 mil.


Confesso que tal cena era, para mim, uma memória vaga. E a sua brevidade não deixa de envolver alguma ironia: não chega a três minutos no interior de um filme que dura mais de três horas. Em qualquer caso, ao rever tais imagens, não pude deixar de pensar na banalidade (visual e dramática) de muitas cenas de multidões que, hoje em dia, se fabricam.
Não se trata, entenda-se, de demonizar o digital e as maravilhas que dele têm brotado. Trata-se, isso sim, de exaltar a dimensão humana do próprio cinema, desde a produção à sua percepção numa sala de cinema. Será esse, aliás, um essencial desafio de educação e comércio: fazer sentir aos espectadores mais jovens que até podem ter Gandhi no rectangulozinho do seu telemóvel, mas só no ecrã gigante de uma sala escura poderão encontrar a sua verdade primordial.

terça-feira, agosto 21, 2018

O álbum mais vendido de sempre é dos Eagles

São uma das bandas míticas dos anos 70: fundados em 1971, em Los Angeles, os Eagles — Don Henley (n. 1947), Glenn Frey (1948-2016), Bernie Leadon (n. 1971) e Randy Meisner (n. 1946) — condensaram toda uma sensibilidade rock que nunca rasurou as suas raízes country. Pois bem, os Eagles passaram a ser os detentores de um recorde invejável: o seu registo Their Greatest Hits (1971–1975), lançado em 1976, tornou-se o álbum mais vendido de sempre, com 38 milhões de unidades.
De acordo com dados oficiais, divulgados pela Recording Industry Association of America, o álbum já foi 38 vezes platina (disco de platina = 1 milhão), valor que passou a integrar as unidades físicas e o registo de streamings, de acordo com um sistema de equivalências em que o download de 10 canções corresponde à venda de um álbum [Time].
Their Greatest Hits (1971–1975) supera, assim, o lendário Thriller (1982), de Michael Jackson, 33 vezes platina, agora no segundo lugar do top; o terceiro lugar é também ocupado pelos Eagles, com Hotel California (26 milhões). Do álbum nº 1, eis o tema Take It To The Limit.


>>> Site oficial dos Eagles.

segunda-feira, agosto 20, 2018

Keanu Reeves em piloto automático

Keanu Reeves a imitar uma má cópia de Keanu Reeves... Enfim, Sibéria é um daqueles filmes apostado em fazer-nos crer que não vale a pena ir ao cinema durante o Verão (o que, obviamente, não é verdade: por exemplo, vejam-se e revejam-se os clássicos franceses em reposição) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Agosto).

A temporada cinematográfica de Verão pode ser muito castigadora para os actores mais ou menos populares. Dir-se-ia que a (falta de) lógica do mercado obriga cada um deles a confirmar o seu estatuto e a sua imagem de marca. E quando são associados a “filmes de acção”, importa repetir histórias, cenas e fórmulas...
Convenhamos que há quem consiga enfrentar tal desafio com um misto de classe e elegância. Observe-se o caso de Tom Cruise, com o seu Missão Impossível: Fallout: um genuíno espectáculo, celebrando os poderes clássicos das imagens (e dos sons), e também um dos melhores desta série, a par do primeiro Missão Impossível, realizado por Brian De Palma em 1996.
Mas quando deparamos com Keanu Reeves e a sua mais recente proeza, de título Sibéria, o desastre tem qualquer coisa de patético. Desde logo, pela retórica do seu argumento (?): a história do negociante de diamantes (Reeves) que viaja até à Sibéria para tentar encontrar o sócio desaparecido, aí encontrando um grande amor, move-se com a agilidade de um elefante numa loja de cristais... Depois, a realização de Matthew Ross é um trabalho de tal modo desinspirado que faz parecer a mais banal série televisiva policial uma proeza de vulto.
Enfim, não se esperava que Reeves se mostrasse um descendente das subtilezas do Actors Studio. Afinal de contas, o seu brilhante “Neo”, na trilogia Matrix, enraíza-se na hábil criação de uma persona algures entre a frieza de uma figura totémica e a sedução de uma personagem quase de desenho animado. Aqui, limita-se a assinar o ponto com a indiferença criativa de quem, em boa verdade, nem sequer tem uma personagem minimamente consistente para defender — Keanu Reeves em piloto automático é, afinal, o pior que Keanu Reeves tem para dar.

domingo, agosto 19, 2018

Rudy Giuliani:
"A verdade não é a verdade"

A. Sejamos tão abrangentes quanto possível, espírito aberto até às últimas consequências. Que é como quem diz: podemos até perguntar se Chuck Todd, apresentador do programa 'Meet the Press' (NBC), não deveria ter evitado este gesto de tão intensa incredulidade face às palavras do seu convidado, Rudy Giuliani, advogado de Donald Trump.

B. Podemos, de facto, perguntá-lo. Mas não sem que explicitemos a argumentação de Giuliani na defesa do seu cliente (à qual, precisamente, antes de qualquer palavra, Todd reagiu com este gesto). Ou seja: em mais um episódio relacionado com a investigação do procurador Robert Mueller — sobre o sentido e os temas da muito polémica reunião que teve lugar, em 2016, na Trump Tower com uma advogada russa com ligações ao Kremlin [Time] —, Giuliani veio defender a "verdade" do comportamento de Trump, dizendo que... "a verdade não é a verdade" [video].


C. Não simplifiquemos: claro que também podemos, e devemos, sustentar o princípio segundo o qual uma investigação do teor da que está a ser conduzida por Mueller visa a inventariação, verificação e prova de factos verdadeiros. O certo é que, no contexto em que tudo isto acontece, marcado por muitas afirmações falsas de Trump, as palavras de Giuliani já nem sequer reflectem uma preocupação pedagógica de advogado: são a expressão pública de uma nova indiferença — e, mais do que isso, indiferenciação — que coloca as trocas sociais num espaço sem nexo nem leis. No limite, Giuliani surge como mensageiro de um novo contrato social, susceptível de ser condensado na regra que ele, implicitamente, proclama. A saber: "a mentira não é a mentira".

Sophie, aliás, SOPHIE

Pequeno aviso pedagógico ao leitor desta nota: se não conhece Sophie Xeon — nome artístico Sophie, aliás SOPHIE —, não acredite muito nas tentativas de descrever o seu universo (incluindo esta). Escocesa, nascida em 1986 em Glasgow, podemos caracterizá-la como uma mulher de sínteses.
Por causa dos sintetizadores? Sim, por certo, mas sobretudo porque a sua música, enraizada numa experiência que vai da produção às funções de disc jockey, passando pela composição e pelo canto, se oferece como uma síntese paradoxal: nela detectamos os sinais de uma pop primitiva, sempre apelando à dança, ao mesmo tempo que cada uma das suas canções parece visar uma interioridade selvagem que não se acomoda a nenhuma matriz. Pensamos, por exemplo, nos efeitos de corte e sutura dos primeiros tempos dos Matmos, desde logo nessa obra-prima inclassificável que é A Chance to Cut Is a Chance to Cure (2001)... Mas tudo se passa como se SOPHIE tivesse descoberto (ou inventado) uma galáxia musical que só ela habita.
Enfim, simplificando: é mesmo preciso escutar o prodigioso Oil of Every Pearl's Un-Insides, álbum de estreia, experimental e festivo, que mais parece o resultado de uma veterania sem complexos, apostada em discutir as suas (e nossas) certezas.
Como se tudo isso não bastasse, SOPHIE tem ideias e conceitos para sustentar uma admirável paisagem visual. A prova, em dois telediscos: It's Okay To Cry e Faceshopping.




>>> Site oficial de SOPHIE.

sábado, agosto 18, 2018

Mitski ou como (não) ser simples

Nascida no Japão, em 1990, filha de pai americano e mãe japonesa, a americana Mitski vive, por certo, no cruzamento de muitas influências e inspirações. Apesar disso, ou através disso, o seu trabalho exibe uma desconcertante transparência tecida de fascinantes paradoxos — nas suas canções, o gesto aparentemente mais simples pode ser também o mais experimental.
Depois de dois álbuns auto-produzidos, já nos tinha presenteado com os magníficos Bury Me at Makeout Creek (2014) e Puberty 2 (2016). Agora, com Be the Cowboy, dir-se-ia que Mitski consegue consumar a quadratura do círculo: organizar uma antologia coerente de 14 canções em que, através de um pudico confessionalismo, sentimos que cada tema constitui, em si mesmo, uma experiência singular de risco e consequência. No limite, desafiando o desejo de dizer "eu", como se prova pelo teledisco de Nobody — eis um belo cartão de apresentação para aquele que ficará, por certo, como um dos melhores discos do ano.

sexta-feira, agosto 17, 2018

Aretha Franklin (1942 - 2018)

A sua voz, fundindo a tradição do canto com a afirmação política da liberdade, valeu-lhe o cognome de 'Rainha da Soul': nascida em Memphis, Tennessee, Aretha Franklin faleceu no dia 16 de Agosto, em Detroit, Michigan, vítima de cancro do pâncreas — contava 76 anos.
Respect, (You Make Me Feel Like) A Natural Woman ou Spanish Harlem são apenas alguns títulos de uma carreira imensa, pontuada por mais de quatro dezenas de álbuns, de Songs of Faith (1956) a A Brand New Me (2017). Primeira mulher a ser integrada no 'Rock & Roll Hall of Fame', em 1987, o seu legado envolve cruzamentos e sínteses admiráveis, da herança do gospel ao carácter lúdico da pop. Face à notícia da sua morte, Michelle e Barack Obama divulgaram a seguinte declaração:

>>> Aretha ajudou a definir a experiência americana. Na sua voz, podíamos sentir a nossa história, toda ela, todas as suas nuances — o nosso poder e a nossa dor, a nossa escuridão e a nossa luz, a nossa demanda de redenção e o nosso respeito duramente conquistado. Ela ajudou-nos a sentirmo-nos mais ligados uns aos outros, mais esperançosos, mais humanos. E, por vezes, ajudou-nos apenas a esquecer tudo o resto e dançar.

>>> Won't Be Long (single de 1960), no programa televisivo 'The Steve Allen Show', 1964.


>>> I Knew You Were Waiting (For Me) — dueto com George Michael, 1987.


>>> (You Make Me Feel Like) A Natural Woman — concerto para o Rock & Roll Hall of Fame, 1995.


>>> Notícia da morte na CNN.


>>> In memorian, The Hollywood Reporter.


>>> Obituário no Billboard.
>>> Obituário em The Washington Post.
>>> Obituário em The Guardian.
>>> Obituário no Libération.
>>> Site oficial de Aretha Franklin.

quinta-feira, agosto 16, 2018

Morgana King (1930 - 2018)

Cantora de jazz a que o cinema trouxe popularidade, a americana Morgan King faleceu em Palm Springs, California, contava 87 anos — a sua morte ocorreu a 22 de Março, mas apenas foi conhecida em meados de Agosto, na sequência de um texto colocado por um amigo no Facebook.
De seu nome verdadeiro Maria Grazia Morgana Messina, nasceu em Pleasantville, Nova Iorque, de pais originários da Sicília. Começou a sua carreira aos 16 anos, num nightclub de Greenwich Village. Com uma carreira multifacetada nos palcos e na televisão, senhora de uma voz de surpreendente maleabilidade, gravou mais de três dezenas de álbuns. Em qualquer caso, foram os dois primeiros títulos da saga O Padrinho (1972 e 1974), de Francis Ford Coppola, que a tornaram um rosto internacional: Morgana King interpretava Carmela Corleone, a mulher de Don Vito Corleone (Marlon Brando).

>>> Registo televisivo dos anos 60, interpretando Walk on By + cena de O Padrinho.




>>> Obituário em The Washington Post.

Madonna, 60 anos

Somos também as imagens em que nos reconhecemos. Uma vez, algures nos anos 90, várias personalidades foram convidadas a escolher para a revista Photo uma fotografia sua de que gostassem particularmente — uma espécie de ambíguo auto-retrato, obtido por um grande fotógrafo. Madonna escolheu esta, assinada pelo seu amigo Herb Ritts (1952-2002). Será, por isso, humildemente, uma boa imagem para abrir este texto, publicado no Diário de Notícias (5 Agosto) com o título 'Ser ou não ser Madonna'.
Quem é, afinal, a “Material Girl” que marca a história moderna da música pop e, mais do que isso, a evolução das formas e conceitos do mundo do espectáculo? Hoje, 16 de Agosto de 2018, dia em que Madonna celebra 60 anos, uma certeza permanece e renova-se: o seu universo de imagens e sons continua a desafiar certezas e ideias feitas.

Há poucas semanas, o Centro Pediátrico da Fundação Raising Malawi comemorou um ano de existência. Nos primeiros seis meses, nele se realizaram mais de duzentas intervenções cirúrgicas, tendo a unidade de cuidados intensivos tratado cerca de meia centena de pacientes. Em actividade há mais de uma década, a fundação nasceu com o objectivo de assistir as crianças daquele país do sudeste africano cujos pais morreram de sida (mais de um milhão de crianças do Malawi perderam o pai ou mãe devido à doença). Para além do seu hospital pediátrico, construído de raiz, a fundação mantém centros de acolhimento para os órfãos, tendo também ajudado a desenvolver uma rede escolar que integra cerca de dez mil crianças, metade das quais do género feminino.
Todos sabemos que Madonna esteve no centro de uma recente polémica sobre um conjunto de lugares de estacionamento para automóveis junto da sua casa em Lisboa. Atrevo-me a supor que nem todos saberão que a Fundação Raising Malawi foi criada por Madonna, em 2006.
Receio que tal discrepância informativa seja mais reveladora das nossas vivências mediáticas e do nosso imaginário social do que, propriamente, da personalidade e do trabalho de Madonna. Em qualquer caso, permito-me sugerir que sigamos o voto de Charles Baudelaire quando exaltava a possibilidade de a crítica ser “parcial, apaixonada e política” — celebremos apenas a criadora de Material Girl e o seu 60º aniversário (nasceu a 16 de Agosto de 1958, em Bay City, no estado do Michigan).

“Como uma virgem”

Em boa verdade, a questão da identidade — entre o ser e o parecer — sempre foi matéria visceral do trabalho criativo de Madonna. E convém não sermos cínicos, ou apenas distraídos: a pedra de toque de tal questão é a sexualidade.
Estamos a falar, afinal, da mulher que se transformou em ícone global da cultura pop através de canções como Like a Virgin (1984), confessando ao seu amante que ele a fez sentir “como uma virgem / tocada pela primeira vez”. De facto, era também uma nova forma de romantismo, descomplexado e irónico, já que nos versos que nunca são citados ela acrescentava que tal acontece “quando o teu coração bate / junto ao meu”.
Material Girl
Mas o romantismo, nostálgico ou apenas evocativo, não basta para caracterizar a sexualidade no universo de Madonna. E, se outras razões não houvesse, o livro que lançou em 1992 — com o título Sex — seria suficiente para nos recordar que não estamos exactamente perante uma brincadeira de crianças. Porquê? Porque o que aí encontramos está muito longe de se poder reduzir a uma colecção de “nus artísticos”... Aliás, sublinhando o radicalismo do empreendimento, ela foi clara no seu agradecimento ao fotógrafo do livro: “Acima de tudo, obrigado a Steven Meisel por não ter medo quando eu tive.”
Medo? É verdade: o sexo faz medo. E talvez seja essa a contradição visceral do universo criativo de Madonna: por um lado, ela é a expressão directa, desassombrada e festiva de um tempo em que encaramos a instrumentalização da sexualidade (veja-se a colecção quotidiana de horrores do Big Brother televisivo e seus derivados) como coisa indiferente, em relação à qual só podemos ser superiores; por outro lado, desde a sua elaborada iconografia até às palavras das canções, Madonna desmonta tudo isso enquanto criadora de ficções enredadas no medo de ser ou não ser.
A paisagem musical de Madonna evoluiu mesmo no sentido de uma crescente pessoalização do seu trabalho. Claro que há imagens que, literalmente, fizeram história, sobretudo nos tempos heróicos da MTV — lembremos a “duplicação” de Marilyn Monroe no teledisco de Material Girl (1985), a encenação de Express Yourself (1989) em cenários que citam o clássico Metropolis (1927), de Fritz Lang, ou a coreografia de Vogue (1990), cruzando elementos do classicismo de Hollywood e da cultura gay. Ao mesmo tempo, as canções vão contando uma história de assumida ambiguidade: a vedeta planetária reflecte sobre os limites da sua própria celebridade.

“A minha religião”

O álbum Ray of Light (1998), porventura o objecto mais perfeito da sua discografia, é exemplar desse processo de crescente introspecção, por vezes marcado por pontuações de cristalino dramatismo. Lembremos, em particular, o tema de abertura, Drowned World/Substitute for Love. Reflectindo a sua consagração como estrela global, Madonna canta versos de inequívoco desencanto. Por exemplo (numa tradução apenas tão literal quanto possível): “Viajei à volta do mundo / À procura de uma casa / Descobri-me em salas cheias / Sentido-me tão só”.
No teledisco dessa canção, Madonna encenava mesmo os sinais mais evidentes do seu desgaste, surgindo como uma estrela perseguida por um bando de “paparazzi”. Em fuga dos flashes das máquinas fotográficas, viamo-la circular como uma sonâmbula por uma festa, no final regressando a casa, acolhendo nos seus braços uma menina. Os dois versos finais sobrepunham-se a um grande plano de Madonna a abraçar a criança. No primeiro, “agora, descobri que mudei de ideias”, mantinha os olhos fechados; abria-os e declamava o segundo verso, directamente para a câmara: “Esta é a minha religião” — o teledisco surgiu no Verão de 1998, menos de dois anos depois do nascimento de Lourdes Maria, primeira filha de Madonna.
Ray of Light integra, aliás, uma canção dedicada à filha, Little Star, e uma outra, Mer Girl, cujo negrume não poderá deixar de surpreender todos aqueles que encaram o universo pop como uma colecção de futilidades escapistas. Para além da sua rarefeita ambiência instrumental e da ousadia da sua estrutura (quase em “spoken word”), Mer Girl tem qualquer coisa de balada de filme de terror, assombrada pelas memórias trágicas da mãe, falecida aos 30 anos, vítima de cancro, alguns meses antes de Madonna completar 6 anos: “Fugi da minha casa que já não me contém / Do homem que não consigo conservar / Da minha mãe que me assombra, embora já tenha partido / Da minha filha que nunca dorme / Fugi do ruído e do silêncio / E do movimento das ruas.”
Muito marcado pela ligação criativa com o músico e produtor inglês William Orbit, Ray of Light ilustra um momento altamente sofisticado de experimentação, ao mesmo tempo funcionando como uma espécie de revisão de um trajecto de quinze anos (o primeiro álbum, intitulado apenas Madonna, surgira em 1983) que valeu a Madonna o título simbólico de “Rainha da Pop”. No limite, Ray of Light parece prenunciar aquele que continua a ser o álbum mais pessoal, e também mais confessional, de Madonna: American Life (2003).

“O Sonho Americano”

Madonna nunca abandonou o seu país, mas é um facto que, a certa altura, algo se quebrou na sua relação com os EUA, algo que está sinalizado de forma muito crua no álbum American Life. O tema-título tornou-se mesmo uma bandeira paradoxal do seu cepticismo enquanto cidadã. Num teledisco de ambiência surreal, a canção apresentava-se transfigurada em cruel passagem de modelos, parodiando o militarismo mais desenfreado. Na altura, a acesa polémica que suscitou foi perversamente empolada pela invasão do Iraque, ordenada por George W. Bush: Madonna optou por fazer uma declaração, sustentando a legitimidade artística do teledisco, reiterando também o seu respeito pelos soldados norte-americanos; em última instância, preferiu retirar o teledisco de circulação — em qualquer caso, American Life, por certo uma das obras-primas da sua videografia, é de fácil acesso no YouTube.


Dir-se-ia que American Life foi o terceiro capítulo de um processo de crescente afastamento simbólico entre Madonna e o imaginário (ou a imaginação) do seu próprio país. O primeiro está ligado à publicação do livro Sex e ao lançamento simultâneo do álbum Erotica (1992). O segundo, por mais desconcertante que isso possa parecer, terá sido o filme musical Evita (1996), dirigido por Alan Parker: vencedora de um Globo de Ouro pela sua composição de Eva Perón, Madonna ficou de fora das nomeações para os Oscars, uma ausência que foi lida por muitos (porventura a começar pela própria Madonna) como um gesto de marginalização por parte da comunidade de Hollywood.
Estranhamente, ou talvez não, as três canções que abrem o álbum parecem organizar-se como outros tantos contos morais sobre esse distanciamento. Mesmo ignorando a contundência visual do respectivo teledisco, American Life tem qualquer coisa de rap desafiador e contundente: “Quero exprimir o meu extremado ponto de vista / Não sou cristã, não sou judia / Estou apenas a viver o Sonho Americano / E acabo de descobrir que nada é o que parece.” Segue-se um tema chamado Hollywood em que, com agudo sarcasmo, a cantora se pergunta “como é que pode ser mau, quando parece tão bom?”. Enfim, em terceiro lugar, deparamos com a calculada irrisão de uma canção que se chama I’m So Stupid: “Sou tão estúpida / Porque me habituei a viver / Num sonho confuso / Costumando acreditar / Nas imagens bonitas / Que me rodeavam.”

“Eu sou assim”

Depois de experiência tão confessional, há qualquer coisa de bizarro no facto de o álbum seguinte, lançado em 2005, se ter chamado Confessions on a Dance Floor. Também aqui a ambiguidade era procurada. Temas como Hung Up ou Get Together envolvem claros sinais de retorno à música de dança das décadas de 70/80 (Hung Up integra mesmo um sample de uma canção dos Abba). Mais para o final, volta a emergir um discurso de intransigente individualismo. Em Like it or not, a mensagem não podia ser mais clara: “Eu sou assim / Podem gostar ou não / Podem amar-me ou deixar-me.”
Há, talvez, outra maneira de dizer isto. E leva-nos ao cerne daquilo que é, ou pode ser, a exposição pública de uma pessoa cuja identidade se exprime (e reinventa) através de uma obra imensa. A saber: ser uma entidade reconhecível no mundo inteiro, por outras palavras, ser um verdadeiro ícone do espectáculo, não é coisa que se possa sustentar através de uma mera atitude confessional.
Confessar pode ser também uma forma de ocultação: é escolher uma atitude, uma encenação, uma pose (“strike a pose” é o seu lema em Vogue), valorizando-as em detrimento de outras soluções — como numa infinita transfiguração teatral.
Justify My Love
Camille Paglia disse-o de forma especialmente incisiva num célebre e polémico artigo publicado no New York Times (14 Dez. 1990), reagindo ao facto de a MTV ter recusado passar Justify My Love, por certo um dos telediscos mais explicitamente sexuais de toda a obra de Madonna: “O feminismo americano contemporâneo, que começou por rejeitar Freud devido ao seu alegado sexismo, acabou por se afastar das ideias de ambiguidade, contradição, conflito e ambivalência. (…) Madonna tem uma visão muito mais profunda do sexo que as feministas. Ela vê tanto a animalidade como o artifício. Mudando de estilo de guarda-roupa e cor de cabelo praticamente uma vez por mês, Madonna encarna os eternos valores da beleza e do prazer. O feminismo diz: ‘Abaixo as máscaras.’ Madonna diz que nós não somos nada a não ser máscaras.”
Enfim, lembremos apenas que não estamos a falar de uma estrela instantânea, muito menos efémera. Os números não falam por si, mas estão longe de ser banais: treze álbuns de estúdio, sete dezenas de telediscos, uma filmografia de mais de vinte títulos e dez das mais elaboradas e complexas digressões internacionais, de “The Virgin Tour” (1985) a “Rebel Heart Tour” (2015-16), algumas delas, como a “Drowned World Tour” (2001), verdadeiramente revolucionárias em termos cenográficos e técnicos. Convenhamos que não é pouco. E que aquilo que está em jogo não se confunde com um problema de estacionamento.

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LIKE A VIRGIN — Foi Steven Meisel, futuro colaborador do livro Sex, que fotografou Madonna para a capa do seu segundo álbum de estúdio. O jogo simbólico não podia ser mais linear e desconcertante: a lingerie, interior por definição, passava a ser guarda-roupa exterior — estava-se em finais de 1984 e Madonna virava a iconografia pop, literalmente, do avesso.

AMERICAN LIFE — Chegava-se a 2003 e Madonna procurava uma nova imagem, capaz de provocar uma ideia radical de transfiguração. Com a colaboração do fotógrafo Craig McDean, reencenou-se como uma derivação feminina da imagem mais clássica de Che Guevara. Através de canções de irónico confessionalismo, a personagem mítica desmontava o seu próprio mito.

MDNA — Em 2012, no 12º álbum de estúdio, Madonna decidiu violentar a sua própria assinatura. O título evoca a sigla de uma droga (MDMA), sugere a estrutura molecular DNA e funciona como uma condensação das letras do seu nome. Onde estava, então, Madonna? Quase indecifrável para além de um vidro martelado — a fotografia tem assinatura da dupla Mert Alas/Marcus Piggott.

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DESESPERADAMENTE PROCURANDO SUSANA — A imagem “fundadora” de Madonna passou também por este filme de Susan Seidelman lançado em 1985, entre os álbuns Like a Virgin (1984) e True Blue (1986). Também com Rosanna Arquette como protagonista, trata-se de uma comédia romântica plena de ironia, uma aventura novaiorquina que ficou como marca exemplar de um tempo de transformação de usos e costumes.

NA CAMA COM MADONNA — Lançado em 1991, o retrato íntimo da “Blond Ambition Tour” (1990) constitui um marco na história do documentário musical. Através da hábil realização de Alek Keshishian, Madonna encena um jogo de máscaras em que todos são testados perante o olhar frio das câmaras. Warren Beatty, com quem Madonna tinha uma relação, é uma das “vítimas” mais célebres.

W. E. — Com data de 2011, este é um título exemplar na carreira de Madonna como realizadora de cinema (já tinha assinado, em 2008, Sujidade & Sabedoria). Revisitando a história da renúncia de Eduardo VIII ao trono britânico, por amor de Wallis Simpson, o filme decompõe, de forma subtil, os clichés românticos da memória. Por indiferença ou preconceito, não se estreou em muitos países (incluindo Portugal) [trailer].


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SEX — O livro de 1992 é um jogo calculado de palavras e fotografias, discutindo as relações entre “amor” e “sexo”. Consciente das fronteiras do projecto, Madonna ironiza na apresentação: “É ridículo, nada neste livro é verdade — inventei tudo.” Para além da autora, omnipresente, estão nas imagens personalidades como a actriz Isabella Rossellini, a modelo Naomi Campbell e o rapper Vanilla Ice.

CRUCIFIXO — Entre as múltiplas e sofisticadas variações sobre as suas raízes católicas, Madonna propôs esta crucificação simbólica nos concertos da “Confessions Tour” (2003), interpretando Live to Tell, do álbum True Blue (1986), uma das mais belas canções de toda a sua carreira. Com uma verdade muito feminina: “Um homem é capaz de dizer mil mentiras / Aprendi bem a minha lição.”

I have a tale to tell
Sometimes it gets so hard
To hide it well
I was not ready for the fall
Too blind to see the writing on the wall

A man can tell a thousand lies
I've learned my lesson well
Hope I live to tell
The secret I have learned
'Til then
It will burn inside of me

I know where beauty lives
I've seen it once
I know the warmth she gives
The light that you could never see
It shines inside
You can't take that from me

A man can tell a thousand lies
I've learned my lesson well
Hope I live to tell
The secret I have learned
'Til then
It will burn inside of me

The truth is never far behind
You kept it hidden well
If I live to tell
The secret I knew then
Will I ever have the chance again

If I ran away
I'd never have the strength
To go very far
How would they hear
The beating of my heart
Will it grow cold (will it grow cold?)
The secret that I hide
Will I grow old
How will they hear
When will they learn
How will they know

A man can tell a thousand lies
I've learned my lesson well
Hope I live to tell
The secret I have learned
'Til then
It will burn inside of me

The truth is never far behind
You kept it hidden well
If I live to tell
The secret I knew then
Will I ever have the chance again

A man can tell a thousand lies
I've learned my lesson well
Hope I live to tell
The secret I have learned
'Til then
It will burn inside of me


>>> Site oficial de Madonna.