sexta-feira, agosto 31, 2018

"Papillon" ou a anti-cinefilia

O novo Papillon não passa de uma precária imitação do filme com Steve McQueen produzido em 1973. Ou como a política de “remakes” chegou a um ponto de imenso desgaste — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Agosto), com o título 'Com saudades de Steve McQueen...'.

Perante a estreia de um filme como Papillon, talvez seja útil colocar uma questão fulcral que, em boa verdade, todos temos secundarizado. Não é uma questão meramente artística, já que começa por envolver as opções de fundo do próprio mercado. A saber: porque é que filmes tão irrelevantes como este chegam às salas, enquanto outros, recheados de trunfos comerciais ou de marcas de prestígio, não gozam do mesmo privilégio?
Lembremos apenas os exemplos recentes de História de um Fantasma, de David Lowery, com Casey Affleck e Rooney Mara, ou Distúrbio/Unsane, de Steven Soderbergh, com Claire Foy (protagonista da série televisiva The Crown). Que lhes aconteceu? Ambos não passaram pelas salas: o primeiro surgiu directamente em DVD, o segundo foi colocado nos videoclubes. Isto sem esquecer que o filme de Soderbergh ocupa, desde já, um lugar emblemático na história do cinema, já que foi totalmente rodado com um iPhone.
Que tem, então, Papillon para oferecer? Quase nada. Claro que a história do herói, Henri Charrière (1906-1973), de alcunha “Papillon”, é apelativa: a sua experiência numa prisão da Guiana francesa, no período 1931-1945, tem todas as componentes de uma verdadeira epopeia. E o facto de a verosimilhança de muitos aspectos da autobiografia de Charrière ter sido discutida ao longo dos anos não invalida a sua sedução aventurosa. Tanto mais que a sua aliança com outro prisioneiro, Louis Dega, define um clássico quadro dramático de empatia, sobrevivência e revelação.
Ora, o cinema não se faz exactamente, nem exclusivamente, de histórias... mas da maneira de as contar. E o novo filme assinado pelo dinamarquês Michael Noer parece ter como objectivo essencial “imitar” a primeira versão cinematográfica de Papillon, realizada em 1973 por Franklin J. Schaffner, com Steve McQueen e Dustin Hoffman nos papéis de Charrière e Dega, respectivamente [trailer].


O filme de Schaffner é uma obra-prima? Longe disso, na minha perspectiva. Mas não é uma mera “competição” de valores que está em causa. Está em causa, isso sim, a banalidade de um empreendimento que, ao querer retomar a herança de um filme (que foi um genuíno fenómeno popular), apenas tem para oferecer um tom de precária imitação que redunda em involuntária e desastrada caricatura. Chega a ser patético o modo como os novos protagonistas — Charlie Hunnam (Charrière) e Rami Malek (Dega) — tentam imitar os tiques de McQueen e Hoffman.
Em última instância, o que está em causa excede as desconcertantes opções do mercado português. Estamos, afinal, perante o imenso desgaste de uma estratégia de “remakes” que, na maior parte dos casos, não possui qualquer ideia narrativa e, em boa verdade, parece nem sequer decorrer de alguma estratégia comercial minimamente consistente. Cinefilia, precisa-se.