sábado, agosto 25, 2018

#MeToo: a ressaca

1. Subitamente, o paraíso da libertação sexual voltou a ser assombrado pelo pecado. Duas mulheres, Avital Ronell, professora na Universidade de Nova Iorque, e Asia Argento, actriz e realizadora, foram acusadas de assédio sexual — Ronell foi de imediato defendida por vários colegas académicos, ao mesmo tempo que era suspensa das suas funções [DN]; no caso de Argento, alegadamente envolvendo relações com um rapaz de 17 anos, temos assistido a um processo de sucessivas negações e contra-negações [Expresso]. Dito de outro modo: mesmo no plano estritamente factual, nada está encerrado.

2. O certo é que tais notícias não podem deixar de desencadear um efeito de ressaca, tão impreciso quanto perturbante. Com elas, e através delas, relançamo-nos no sistema de afirmações, militâncias e valores gerado ou, de alguma maneira, induzido pelo movimento #MeToo. Na sua crueza, a manchete do Libération [#MAL-ESTAR] talvez deva ser contraposta a momentos anteriores, comandados por um equívoco triunfalismo moral; em todo o caso, tal manchete traduz um salutar gesto de paragem para reflexão — no plano da linguagem jornalística, sublinhe-se a sua pertinente associação a uma imagem emblemática de Argento (afinal, uma figura da linha da frente do #MeToo) no dia de encerramento do Festival de Cannes do passado mês de Maio, contexto que a actriz escolheu para declarar publicamente que, em 1997 (em Cannes, precisamente), tinha sido "violada por Harvey Weinstein".

3. Era pura estupidez utilizar o #MeToo como uma espécie de litigação perversa e, sobretudo, compulsiva contra todos os homens, obrigando-os a "provar" que são diferentes dos acusados. Do mesmo modo, será repulsivo usar estas notícias para propalar a noção de que "elas" ou "eles"... é tudo igual. Não estamos num desses tristes debates televisivos em que a redução de qualquer situação a uma dicotomia simplista parece satisfazer o alcance das ideias — e também as possibilidades discursivas geradas pelo seu confronto.

4. A complexidade do que está em jogo obriga-nos a superar qualquer maniqueísmo, seja ele descritivo ou moral, que não consiga ver/pensar o mundo para além dos "homens" e das "mulheres" como entidades globais, unívocas, definitivamente estabelecidas e operantes. O inegável mal-estar nasce de uma verdade muito básica que, não poucas vezes, algumas militâncias feministas resistem a encarar. A saber: não é possível pensar a sexualidade omitindo a sua inscrição em sistemas de relações que envolvem poder. Do mesmo modo, é preciso tentar compreender como os poderes inerentes às relações se inscrevem em todas as regiões do comportamento humano, incluindo a sexualidade. Para além do que não sabemos, e de tudo aquilo que, por certo, nos escapa, os casos de Ronell e Argento são histórias de poder — independentemente da maior ou menor concordância que nos possam suscitar, creio que vale a pena ler os textos de Emma Gray [HuffPost] e Josephine Livingstone [The New Republic], precisamente sobre os circuitos de poder e o futuro do #MeToo.

5. Definitivamente, importa reagir a esse modo de (não) pensar que reduziu qualquer questão sexual ao desenho (público, compulsivamente publicitado) de um conflito entre duas entidades, uma necessariamente identificada como "opressor", outra compelida a ser descrita como "vítima". Podemos mesmo lembrar que Robert Hughes, num livro admirável publicado há 25 anos — Culture of Complaint (à letra: "Cultura da Queixa") —, antecipava a generalização de uma ideologia, hoje em dia visceralmente mediática, que tende a definir qualquer indivíduo apenas como vítima imediata ou potencial. Comentando algumas formas radicais de feminismo, Hughes chamava mesmo a atenção para o efeito perversamente normativo que nasce da definição unívoca da mulher como "vítima indefesa do opressor masculino".

6. Reconhecer os limites de tais deambulações radicais não tem nada a ver com a possível banalização de qualquer caso de agressão (sexual ou não), nem com a legitimação das muitas formas de violência machista que existam na intimidade sexual ou, por exemplo, no espaço do emprego. Trata-se antes de perguntar de que modo a cegueira desse radicalismo (não) contribui para formas acrescidas de consciência dos dramas que assombram as relações humanas.

7. O trabalho de Camille Paglia sobre estas questões pode ajudar-nos a tentar abrir um pouco o leque da complexidade que enfrentamos — complexidade social e simbólica, descritiva e filosófica. Não que a vertigem do estilo argumentativo de Paglia sirva de modelo para qualquer padrão intocável de pensamento — ela é, aliás, um exemplo vivo do risco que consiste em enfrentar as contradições geradas pelas próprias sequências do acto de pensar. Acontece que Paglia, de alguma maneira ecoando as sugestões analíticas de Hughes, resiste ao comodismo panfletário de qualquer processo de vitimização. Referindo-se à reforma dos costumes nos espaços universitários, foi com estas palavras que concluiu a sua participação numa conferência em Harvard (10-04-2008) dedicada ao 'Legado e futuro do feminismo':

>>> Se foi cometida uma ofensa, deve ser comunicada à polícia, de modo que as liberdades civis tanto do acusador como do acusado possam ser protegidas. Nada disto serve para dispensar os jovens do seu dever de comportamento honorável. O hooliganismo não pode ser tolerado. Mas necessitamos de parar de encarar tudo na vida a partir da estreita visão dos géneros. Se as mulheres esperam um tratamento igualitário na sociedade, têm de deixar de pedir protecções especiais que as infantilizam. Com a liberdade vem a responsabilidade pessoal.

CAMILLE PAGLIA
Pantheon Books, 2017