Para rodar o seu filme Gandhi (1982), Richard Attenborough não fabricou a multidão por via digital: são memórias insubstituíveis do grande ecrã — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Agosto), com o título 'Quando um filme é (mesmo) muito grande'.
No dia 3 de Agosto, faleceu Ronnie Taylor, notável director de fotografia do cinema britânico — contava 93 anos. A sua filmografia apresenta uma curiosidade rara neste domínio: embora tenha começado a assinar a fotografia de filmes na década de 60, continuou, até ao começo dos anos 80, a trabalhar como operador de câmara. E assumiu tal função em títulos tão importantes como Os Inocentes (Jack Clayton, 1961), Morgan – Um Caso para Tratamento (Karel Reisz, 1966) ou Barry Lyndon (Stanley Kubrick, 1975).
A referência mais célebre do seu trabalho é, obviamente, Gandhi, de Richard Attenborough, uma subtil e muito didáctica evocação biográfica do Mahatma Gandhi e do complexo processo de independência da Índia. Foi consagrado com o Oscar de melhor filme de 1982, tendo obtido mais sete estatuetas douradas, nomeadamente para Attenborough (melhor realizador), Ben Kingsley (melhor actor) e o próprio Taylor (melhor fotografia).
O envolvimento de Taylor no projecto de Gandhi teve algo de acidental, uma vez que, a meio das filmagens, foi chamado para substituir Billy Williams, afectado por problemas de coluna. Na prática, cada um deles trabalhou cerca de metade das vinte semanas que durou a rodagem de Gandhi — por isso mesmo, partilharam o Óscar.
O que será menos conhecido é o facto de Taylor ter presidido à rodagem de uma cena cujo gigantismo a fez entrar na lista de recordes do Guinness. Na verdade, o funeral de Gandhi, tal como filmado por Attenborough, continua a ser a cena que, historicamente, mobilizou maior número de figurantes: 300 mil.
Confesso que tal cena era, para mim, uma memória vaga. E a sua brevidade não deixa de envolver alguma ironia: não chega a três minutos no interior de um filme que dura mais de três horas. Em qualquer caso, ao rever tais imagens, não pude deixar de pensar na banalidade (visual e dramática) de muitas cenas de multidões que, hoje em dia, se fabricam.
Não se trata, entenda-se, de demonizar o digital e as maravilhas que dele têm brotado. Trata-se, isso sim, de exaltar a dimensão humana do próprio cinema, desde a produção à sua percepção numa sala de cinema. Será esse, aliás, um essencial desafio de educação e comércio: fazer sentir aos espectadores mais jovens que até podem ter Gandhi no rectangulozinho do seu telemóvel, mas só no ecrã gigante de uma sala escura poderão encontrar a sua verdade primordial.