[ 4 Julho 2004 ] |
Graças a uma aplicação de telemóvel, qualquer um de nós pode tirar uma selfie com Cristiano Ronaldo: assim vai o admirável mundo de imagens em que vivemos, com o futebol e para lá do futebol — este texto foi publicado no suplemento '1864' do Diário de Notícias (19 Agosto).
O rapaz parecia não ter encontrado ainda uma solução de harmonia entre o corpo franzino e o guarda-roupa com que o vestiram. Dir-se-ia que a camisola podia até pertencer a outro dono, mais encorpado, adulto e previsível. Até mesmo os adesivos que usava nos lóbulos das orelhas (protegendo os furos recentes) acentuavam a sua condição de pequeno grande extra-terrestre — uma entidade errante e errática, à procura do seu projecto como homem.
Foi no dia 4 de Julho de 2004, no cenário do novo Estádio da Luz. Disputava-se a final do Europeu de selecções de futebol, esse evento que, impulsionado pelo discurso militante de Luiz Felipe Scolari, fora programado, encenado e celebrado como um reencontro mágico de todo um país com a sua identidade primordial. Terá sido? Carregamos, agora, o peso de mais de uma década de história para respondermos, pertencendo aos mais optimistas a tarefa de provar que aí iniciámos um percurso nacional de redenção sem mácula.
Em todo caso, não percamos de vista o nosso vulnerável e fascinante rapaz. Com 19 anos completados poucos meses antes (a 5 de Fevereiro), Cristiano Ronaldo chorava intensamente: ao fim de 90 minutos de muito empenho e nenhuma eficácia da selecção portuguesa, a Grécia sagrara-se campeã da Europa.
As lágrimas nunca são simples. E nada têm a ver com o seu espectáculo televisivo. Importa não simplificar, muito menos menosprezar, a comoção desta imagem de um rapaz que descobria a verdade primordial da solidão individual no meio do ruído da multidão.
Com tal imagem, através dela, conseguimos pelo menos resistir às agressivas ilusões (sociais, mediáticas, políticas) que insistem em representar Cristiano Ronaldo como líder de uma galeria de “super-homens” a que, por definição, cada um de nós, peão incauto das atribulações deste mundo, não pertence nem pode pertencer. E acedemos à possibilidade de o admirar, não porque ele seja um vencedor obrigatório ou compulsivo, antes porque, como qualquer um de nós, também perde — e também sobrevive.
Para a história mitológica do então jogador do Manchester United, as imagens do seu choro são tanto mais tocantes quanto envolvem a ironia de um “erro” que vale a pena lembrar: Cristiano Ronaldo ainda não se confundia com o símbolo global de CR7, já que a sua camisola ostentava o número... 17!
Uma pessoa ou uma marca?
Como seria a história de tudo isto se estivéssemos a falar de outro número, outra personagem, outra identidade mediática? Se existisse um “CR17”? A pergunta não é filosófica. Ou melhor, só o é porque a filosofia dominante dos nossos tempos se confunde com os poderes perversos e quotidianos do marketing. Ao renascer como CR7, Cristiano Ronaldo consumou a utopia que parasitou o imaginário colectivo e, mais especificamente, a noção de identidade nacional: triunfar, não como pessoa, mas como marca.
Reconhecê-lo não envolve qualquer menorização das proezas futebolísticas do jogador, muito menos da sua excepcional capacidade de entrega a tudo o que envolva a profissionalíssima superação dos limites do próprio corpo. Acontece que estamos a falar de alguém, já não apenas um ser humano, mas um símbolo abstracto (CR7, precisamente) cujo poder se pode medir também através da linguagem do dinheiro. Exemplo? Nas primeiras 24 horas depois da oficialização do contrato com a Juventus, venderam-se 520 mil camisolas de Cristiano Ronaldo. Contas redondas: 60 milhões de dólares.
Bizarro fenómeno, sem dúvida. Por um lado, habitamos uma paisagem mediática em que, quase sempre, o facto de uma personalidade da política ou dos meios artísticos ser detentor de alguma riqueza (financeira, entenda-se) é automaticamente associado a alguma sugestão de suspeição. Com Cristiano Ronaldo, a acumulação de riqueza é recebida por todos nós como ilustração prática de grandeza humana.
Mais uma vez, importa repelir as misérias do burburinho mediático. Não se trata de lançar qualquer tipo de anátema sobre o jogador. Bem pelo contrário: nem sequer é preciso perceber as nuances tácticas do futebol para reconhecer Cristiano Ronaldo como exemplo modelar de trabalho e dedicação ao trabalho — em boa verdade, se celebramos as proezas da sua contabilidade, isso diz mais sobre nós do que sobre ele.
Dir-se-ia que, através de CR7, conseguimos resgatar os limites da nossa existência material, contemplando a acumulação de dinheiro como uma saga redentora: CR7 devolve ao cidadão comum (“eu”, “tu”, ele”) a possibilidade de, nem que seja por um breve instante de reconfortante ilusão mediática, acreditar no dinheiro como expressão de uma verdade cristalina, sem mácula. “Gostava de ter crenças e dinheiro”, escreveu Álvaro de Campos no seu poema Opiário — CR7 concede-nos, pelo menos, o sabor insubstituível da crença.
Intimidade digital
No universo de CR7, o dinheiro é uma entidade cujo valor se confunde com a sua capacidade congénita de circular — de colocar outras coisas a circular, de gerar circulação através de circulação. Nessa agilidade de comportamento e empreendimento — em que o discurso humanista se cruza com as estratégias do marketing —, há mesmo uma dimensão que, como bem sabemos, raras vezes faz manchetes (e não só a propósito de Cristiano Ronaldo): ele tem sido reconhecido, muito justamente, pelos seus gestos filantrópicos, de tal modo que, segundo dados de 2015, divulgados pela organização não governamental DoSomething.org, Cristiano Ronaldo foi, em todo o planeta, o atleta que fez mais doações de carácter humanitário.
Tudo isto, entenda-se, existe através de um turbilhão de imagens. Se, por estes dias, consultarmos a página de entrada do seu site oficial, podemos deparar com: uma promoção de produtos naturais para controle de peso e energia, um apelo a dádivas de sangue, fotografias da conquista da última Liga dos Campeões pelo Real Madrid, imagens caseiras com os filhos, etc.
Num certo sentido, somos convidados a viver por delegação a existência de CR7. Essa delegação já não é exactamente estética, como pode acontecer através do trabalho de um escritor ou um músico, nem sequer depuradamente simbólica, como terá acontecido com os jogadores de futebol antes do futebol se ter transformado num império televisivo. É, no essencial, iconográfica: da camisola com o nº 7 às cápsulas que nos ajudarão a recuperar o equilíbrio físico, vivemos no tempo da fusão virtual e do seu êxtase: “Je suis CR7”.
[ CR7selfie ] |
A prova muito real — em boa verdade, completamente virtual — desse poder agregador de CR7 está na aplicação de telemóvel, “CR7selfie”, que passou a estar disponível no seu site. Mais uma vez, trata-se de um elemento que não pode ser dissociado da filantropia: uma percentagem de cada download (1,99 €) será entregue à Save the Children, organização não governamental que desenvolve um admirável trabalho de protecção e educação de crianças em mais de 120 países.
Pois bem, o que é a “CR7selfie”? Precisamente aquilo que a sua designação sugere: uma aplicação que permite escolher uma imagem de Cristiano Ronaldo de modo a associá-la a uma fotografia do dono do telemóvel, criando uma selfie... com CR7!
Bem sabemos (ou esquecemos) que a intimidade digital não passa de um logro, benigno é certo, gerado pelas maravilhas virtuais do nosso planeta tecnológico. Seja como for, algo em nós se tornou de tal modo frágil, a ponto de consumirmos essa intimidade como um fim em si mesmo. O rapaz com a camisola nº 17 parecia menos volátil, mais humano — resta-nos a ternura magoada com que o contemplamos.