sábado, outubro 31, 2009

Televisão, política & futebol

Seguir um directo televisivo pode ser um peculiar exercício de especulação e angústia... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 de Outubro), com o título 'Nunca mais cai o Governo?'.

A informação televisiva transformou-me num espectador alarmado e alarmista. É uma doença que já não controlo. Assim, na segunda-feira [26 de Outubro], à saída da tomada de posse do Governo, ouvi um cândido ministro candidamente confessar que o novo titular da sua pasta tivera a amabilidade de lhe ceder o carro ministerial para que ele regressasse a casa. De imediato, a minha nevrose fez-me temer pelos dois: na minha cabeça, vi claramente visto os telejornais de toda a semana a abrir com o “escândalo” do ministro que tinha emprestado o seu carro para um ministro que já não era ministro...
Não aconteceu, caro leitor, pode ficar descansado: o meu delírio é o único culpado de tão perversa visão. Aliás, devo acrescentar que a minha fragilidade mental continua a iludir-me: todas as semanas, cada vez que assisto a mais um episódio da série Mad Men (sexta-feira, RTP2), fico tão deslumbrado que espero que, no dia seguinte, não se fale doutra coisa no país inteiro...
Duvidem, por isso, das apreciações que se seguem. Em todo o caso, sinto que devo partilhar convosco os meus temores. Fazendo zapping pelas notícias da tomada de posse, dei-me conta desta monotonia: o Presidente garantiu que vai manter uma atitude institucional e colaboradora, enquanto o primeiro-ministro (claramente falho de imaginação) prometeu ser... institucional e colaborador. Nem um nem outro se atreveram a dizer muito mais, mas as notícias insinuavam um subtexto empolgante: não há-de faltar muito para que os dois andem à pancada (institucional, entenda-se).
Foi uma segunda-feira difícil, garanto-vos. Terminado o Benfica-Nacional, quis perceber como estão a ser futebolisticamente avaliadas as sucessivas goleadas dos encarnados, mas também não tive sorte. Para onde quer que me virasse, só se especulava sobre o conflito “pessoal” entre os respectivos treinadores. Deduzi mesmo que qualquer um deles tem sérias hipóteses de ser o nosso próximo primeiro-ministro. Aliás, vendo bem... peço desculpa por este abrupto final de crónica, mas vou voltar a ligar o televisor: pode bem ser que o Governo já tenha caído. Nunca se sabe: de vez em quando, as televisões ficam felizes.

Kraftwerk, 1978

Mais um mergulho em memórias dos Kraftwerk, hoje recordando um dos singles extraídos do álbum The Man Machine, de 1978. Trata-se de Neon Lights, faixa lançada no formato de single originalmente apenas no Reino Unido, partilhando o alinhamento de um EP com Trans Europe Express e The Model. O máxi single foi então prensado em vinil luminiscente. Recentemente esta canção conheceu nova versão no lado B de alguns formatos do single Vertigo, de 2004. Aqui fica o teledisco original.



Kraftwerk, 1978
'Neon Lights'

Em conversa: António Pinho Vargas (1)

Iniciamos hoje a publicação de uma entrevista com António Pinho Vargas que serviu de base a uma entrevista publicada no DN a 26 de Outubro com o título ‘Um ciclo de álbuns que abriu novos caminhos’. Esta entrevista vai ser aqui publicada ao longo dos próximos fins de semana. Hoje falamos de Solo II, editado esta semana (e que hoje é apresentado, juntamente com músicas do volume 1, na Culturgest). A conversa vai evoluir depois para uma série de reflexões sobre os universos do jazz, os da música contemporânea e da forma como estes mundos se relacionam…

O díptico Solo I e Solo II representa o concretizar uma vontade antiga de fazer um disco ao piano. E tudo começou em cinco dias ao piano, no pequeno auditório do CCB. Como foram esses momentos?
O concretizar eu diria que foi até quase excessivo, na medida em que nessa gravação gravei claramente tempo a mais. Pensei que ia gravar um disco... Fui um bocado ingénuo porque devia ter feito as contas. Mas gravei quase três horas de música. Por isso foi uma explosão. Com muitos factores, seguramente um deles a vontade de tocar e muito do que está neste segundo disco foi gravado nessas sessões.

Sim, regressou ao CCB já este ano para pontuais novas gravações que agora surgem em Solo II… Porque sentiu necessidade de lá voltar quando já tinha muita música gravada?
Para algumas coisas... Uma foi refazer, a Da Alma, que está no fim do CD2. Inclui o Ornette, que em princípio não estava no meu projecto inicial, mas pelo meio, no intervalo, encontrei uma maneira interessante de fazer aquela música. E ainda as duas do Zeca Afonso. O Que Amor Não me Engana, de que fiz duas versões. E fiquei bem contente por ter feito as duas versões.

E porquê duas versões?
A música tem um certo potencial. E a minha escolha não tem só a ver com a música do José Afonso, que ele tem muitas músicas maravilhosas, mas com o que é que eu podia dizer nesta música. Eu tinha que escolher uma em função do meu interesse... Escolhi aquela porque tinha uma melodia adequada, que reformulei à minha maneira para eu a poder tocar. E durante esse trabalho começaram a aparecer muitas coisas. Então disse que o melhor era gravar duas versões. Uma com uma atitude mais contida, mais próxima da melodia e outra, na qual a melodia está presente, mas em que à volta eu faço outras coisas bastante diferentes. Por um lado é reconhecível, mas é também claramente reconhecível a diferença. E esse é o Que Amor Não Me Engana II. A segunda sessão foi isto. Tudo o resto foi gravado na tal exaltante experiência de voltar a gravar depois daqueles anos todos.

Como seleccionaram o material a gravar? Definiram um percurso, mas não necessariamente retrospectivo. Porque, na verdade, Solo I e II não vivem só do olhar para trás...
Há anos fiz uma série de músicas... Como é que as vejo hoje e de que forma posso fazer versões para piano. Porque só o facto de passar versões de quarteto ou sexteto para piano, só isso vai implicar uma primeira diferença. Depois o tempo passou e estudei outras músicas. Continuei sempre a tocar piano, e portanto de alguma forma tudo isso se tornou presente no trabalho prévio. Esse trabalho prévio foi primeiro de selecção. Nalguns casos não havia nenhumas dúvidas particulares, noutros havia. Foi preciso encontrar a maneira de fazer. Por exemplo, no caso do Ornette, à partida não havia maneira de fazer. E finalmente, passados três meses ou meio ano já me pareceu como... Foi esse processo de descoberta daquilo que era possível em cada música. Há neste segundo disco uma música que se chama In Between T&O. É improvisado. E dediquei-a ao José Fortes, que me disse... porque é que não gravas isso?... Era uma coisa que nunca tinha feito no passado e que acho que ficava bem ali, que é uma improvisação total.

Porque lhe chamou In Between T&O?
Chamei-lhe In Between T&O por causa do Thelonious Skizo Sketch e do Ornette, porque a improvisação tem algumas relações com aquelas duas músicas e a maneira como costumo improvisar nelas. Mas tem também um percurso autónomo... E tive assim de inventar um título. A possibilidade de fazer isto deveu-se mesmo ao interesse do José Fortes, que não se limita a estar ali a gravar. Mas como já me conhece há 30 anos, dá as suas opiniões... Foi um momento maravilhoso. Depois havia uma escolha a fazer. Primeiro houve uma discussão com o David Ferreira com o que devia ser feito. Ele queria fazer só um disco em primeiro lugar. E eu disse que não podia fazer um disco de 45 minutos quando tinha gravado quase três horas de música! Só faria sentido se houvesse uma amostragem razoavelmente ampla do que eu fiz. Pelo menos vamos dividir a meio... E finalmente encontrámos este formato dos dois CDs duplos, que já me permitiram falar com outra propriedade do projecto tal como ele é.

E como dividiram as gravações, decidindo o que fica aqui e o que fica ali?
Também conheço o David Ferreira há 30 anos, e por isso a relação é boa. E houve uma troca, a maior parte das vezes por email... Chegámos a ter umas discussões... No primeiro disco está o Fado Negro, que dura dez minutos, em quarto lugar. E ele disse: “não sei se consigo editar um disco em que a quarta música demora dez minutos”... Ele disse que era o formato pop dele a funcionar. A conversa foi até rica de parte a parte. Eu apresentava os meus argumentos e queria ouvir os dele...

(continua amanhã)

Um disco (e um filme) de transição

Discografia Beatles - 30
'Help!' (álbum), 1965

A carreira de sucesso global amplificada de 1963 para 64 fazia dos Beatles, a meio de 1965, a banda mais popular do mundo. O estatuto, na verdade, era seu há já algum tempo, multiplicando-se a agenda da banda em edições de discos, concertos e acções para manter o seu nome na linha da frente das atenções. Faltava contudo um novo disco. O anterior, Beatles For Sale, datava de finais de 64. Sabia-se que havia novo filme na manga. Pelo que, quando um novo álbum entra em cena no verão de 1965, divide as atenções entre as canções ao serviço do filme (o segundo que realizaram com Richard Lester), e algumas mais. Chamou-se Help! (como o filme) e marcou um momento de transição na obra dos Beatles, a viragem confirmando-se em pleno no episódio seguinte. Mas centremo-nos ainda neste. Help! Revelava então o mais versátil alinhamento de ideias até à data num disco dos Beatles. Não faltava a eficácia pop/rock do tema título. Mas tanto se abriam alas a outros desafios orquestrais, como em Yesterday, de McCartney, onde sua voz surge acompanhada por um quarteto de cordas , ou em You’ve Got To Hide Your Love Away, uma das novas canções de Lennon onde fica evidente a descoberta de novos sentidos através da música de Bob Dylan. George Harrisson regressa como compositor, desta vez com duas canções, todavia ainda sem as características que as demarcariam pouco depois. A capa usa uma imagem do filme, na qual vemos os quatro Beatles parecendo soletrar o título em linguagem gestual com bandeiras muito usada na marinha. Na verdade as posições de braços exigidas para “escrever” Help não pareceram a melhor escolha, optando-se por uma situação de compromisso...

sexta-feira, outubro 30, 2009

Dan Brown contra Saramago

Eis o que se chama uma frase promocional obscena: "O livro mais esperado de sempre". Aliás, a campanha de O Símbolo Perdido é, toda ela, de um simplismo atroz. Chega-se ao respectivo site e, além do booktrailer [de onde é retirada esta imagem], há um link para aquilo que está identificado como "mensagem do autor aos leitores portugueses". Ou seja: Dan Brown surge a falar para uma câmara, diz "Hello, Portugal" e acrescenta: "Passei um tempo magnífico a escrever O Símbolo Perdido e espero que passem um tempo magnífico a lê-lo" — dura 7 segundos e... acabou. Podemos, aliás, imaginar, do outro lado do mundo, um incauto cidadão, nosso irmão internáutico, a ver/ouvir outros 7 segundos que começam por qualquer coisa como "Hello, New Zeland"...
Espero que me compreendam: não se trata de "julgar" os compradores do livro — cada um é livre de consumir o que muito bem entender. Trata-se, isso sim, de observar que vivemos num país católico em que este tipo de mercantilismo dos livros, da cultura, da relação dos criadores com os leitores, não suscita a mais pequena reacção (já não digo de indignação, mas apenas de dúvida metódica). E, no entanto, um escritor como José Saramago escreve um livro e tanto basta para que os vigilantes dos bons costumes nos venham alertar para as ameaças que pairam sobre a nossa civilização. Portugal, hello...

Um outro ponto de vista

O duo indie californiano No Age editou, já este mês, um novo EP. Chama-se Loosing Feeling e vem acompanhado por um teledisco no qual, de certa forma, o espaço nos é dado na perspectiva do que um pequeno rato poderia ver… Aqui fica o tema-título do EP, neste teledisco com realização de Gil Kenan.

Gustavo Dudamel regressa a Lisboa

O maestro venezuelano Gustavo Dudamel, que há poucas semanas assumiu a direcção artística da Filarmónica de Los Angeles, vai regressar a Lisboa a 2 de Dezembro, para actuar no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. O maestro virá acompanhado pela recém-formada Orquestra Juvenil Ibero-Americana. O programa deste concerto agora anunciado inclui obras de Inocente Carreño, Manuel de Falla e Piotr Ilitch Tchaikovsky.

John Lennon, por Sam Taylor Wood

Já aqui tínhamos falado do filme. Tem por título Nowhere Boy e é um olhar sobre a juventude de John Lennon e, naturalmente, o nascimento da ideia que conduziria aos Beatles, tomando como referência uma biografia assinada pela meia irmã do músico. A realização é assinada por Sam Taylor Wood. E pelo elenco passam Kristin Scott Thomas (que interpreta o papel da Tia Mimi) ou Aaron Johnson (John Lennon).


O filme teve ontem antestreia no quadro do London Film Festival e tem estreia britânica agendada para Dezembro. Enquanto não temos sinais de chegada a estes lados, aqui fica o trailer.

Era uma vez uma estrada...

B.Q.E…. Ou seja, Brooklyn-Queens Expressway. É uma auto-estrada que integra a rede viária interna de Nova Iorque. E agora é também um filme e um disco de Sufjan Stevens. Aqui, a música e a imagem servem um todo, originalmente concebido para apresentação ao vivo, síncrona, a música tocada por uma orquestra sob um ecrã no qual o filme é projectado (uma vez mais seguindo o modelo do histórico Koyaanisqatsi de Godfrey Reggio, com música de Philip Glass, que de certa forma é a mais próxima das referências deste projecto). Encomendada pela Brooklyn Academy Of Music, a obra foi ali estreada em 2007, esgotando a noite de estreia, os mais de dois mil lugares da sala, antes mesmo de feito um qualquer anúncio. Agora, a música e as imagens de B.Q.E. representam o mais recente disco de Sufjan Stevens.
Seguem-se algumas imagens da auto-estrada que é protagonista deste filme rodado pelo próprio músico, usando uma câmara de Super 8 e uma de 16mm.


Imagem, cortesia de Thomas Fichter, http://www.thomasfichter.com

A Brooklyn Queens Expressway é parte da Interstate 278 e foi construída a partir de meados dos anos 50, concluída em 1964. A sua criação deveu-se ao reconhecimento de problemas de tráfego já em finais dos anos 40. Ainda hoje é uma via de trânsito intenso, por ela circulando diariamente 160 mil veículos na zona de Brooklyn e 120 mil em Queens. Grande parte da estrada é elevada em relação ao solo, mas há porções, como na zona central de Brooklyn em que passa num túnel, cedendo espaço de superfície ao Brooklyn Heights Promenade, área não apenas com magnífica vista sobre Manhattan, mas com uma história que envolve habitantes ilustres como Bob Dylan, Truman Capote, Walt Whitman, Norman Mailer ou Marilyn Monroe.



Imagens de B.Q.E., nesta sequência dividindo o protagonismo entre as dançarinas de hoola hoop (um elemento de ficção que Sufjan Stevens integrou no filme) e as da estrada que dá título à obra.

Kraftwerk, as reedições (4/8)

Continuamos a fazer um percurso através dos álbuns dos Kraftwerk que agora são reeditados com som remasterizado. Ordenados cronologicamente, passamos hoje por The Man Machine, de 1978.

Editado em 1978, The Man Machine (capa da edição original ao lado) levou ainda mais adiante as ideias que o anterior Trans Europe Express havia já moldado a um patamar de notória personalidade e visão. De novo trouxe essencialmente uma ainda maior focagem na exploração do formato da canção pop, tendo apresentado aquela que talvez seja a canção paradigma da pop electrónica (geração de 70): The Model, um absoluto clássico do seu tempo. Igualmente nova é a presença de Karl Bartos nos créditos de composição, o que até então não havia acontecido. O álbum foi, como os anteriores, gravado nos estúdios Kling Klang, conheceu depois posteriores sessões de trabalho num outro estúdio não muito distante, onde um produtor de Detroit contribuiu para a mistura final. É um disco relativamente curto, com apenas seis composições, todas elas contudo absolutas pérolas, o que certamente explica o estatuto de clássico que o disco ganhou com o tempo. Como sucedera nos discos anteriores, um conceito arruma ideias, desta vez explorando a ideia do homem-máquina. É ainda com este disco que aparece pela primeira vez uma nova ferramenta promocional: os robots. Robots que não só começam a surgir a dados momentos em palco, como a ser usados nas sessões fotográficas para efeitos promocionais. A capa de The Man Machine é uma das mais célebres da discografia de 70, citando claramente as linhas geométricas do construtivismo soviético dos anos 30 e em particular a obra de El Lissitzky (que chega mesmo a ser citado nos créditos).

Michael Jackson: as últimas imagens

Era para aqui — The O2 Arena (Londres) — que estavam marcados os concertos de Michael Jackson que nunca aconteceram. Agora, o filme que regista os seus ensaios — This Is It, de Kenny Ortega — não pode deixar de suscitar sentimentos fortes e desencontrados. Aqui ficam as nossas perspectivas — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (29 de Outubro), respectivamente com os títulos 'Trabalho de luto' e 'Então era "só" isto?'.

J.L.: Provavelmente, não é possível compreender a cultura pop omitindo a sua subterrânea pulsão de morte. Talvez porque é uma cultura cujos primeiros ícones (James Dean, Elvis Presley) se revelaram num contrastado pós-guerra. Talvez porque cedo aprendemos que qualquer representação não “reproduz” nada, antes cristaliza, de forma letal, aquilo que dá a ver (Warhol). No caso de Michael Jackson, a perversão dos deuses encarregou-se de nos deixar as imagens (e os sons) de This Is It como uma espécie de derradeiro estertor da vida já contaminada pela morte. Porquê? Porque nenhum olhar, por mais cândido ou extraterrestre, consegue olhar para a comovente energia de Jackson nos ensaios sem pensar: “faltavam poucas semanas...”.
Felizmente, Kenny Ortega, coreógrafo e realizador de This Is It, resistiu à moral digital dos nossos tempos, evitando “limpar” (em sentido literal ou simbólico) as derradeiras memórias do criador de Thriller. Este é um filme tecido de muitos desvios, sobressaltos e erros, nessa medida humanizando o trabalho e desmentindo, ponto por ponto, a imagem frívola de Jackson e do seu profissionalismo. Estamos perante um relato que, com admirável serenidade, devolve ao documentarismo a verdade rudimentar dos corpos e das vozes, na procura obstinada de uma harmonia a que continuamos a chamar espectáculo. É também uma maneira paradoxalmente festiva de fazermos o nosso luto. Lembrando o eterno aforismo de Jean Cocteau, quando nos ensinava que “o cinema filma a morte no trabalho”.

N.G.: É questão que fica no ar depois de terminada a projecção: então era 'só' isto? E, convenhamos, sem mais imagens que as captadas durante os ensaios, não poderia nunca ter sido muito mais... Que fique claro, This Is It não é um filme-concerto. Nunca o seria, que os concertos nunca chegaram a acontecer. O filme parece querer dar-nos a saber, sobretudo, que espectáculo era aquele que estava ali a nascer... Mas, como ideia de cinema, não é mais que um débil retrato de bastidores. Com frestas de interesse, é certo, mas sem aparente vontade em contrariar a vontade de tentar traduzir, com os fragmentos disponíveis, o que seria a vida em palco desta digressão.
Há magníficos momentos de grande arte pop em palco, assim como curiosos segmentos ainda por polir, mas falta-lhes uma ideia que conduza as imagens além da mera sequência de canções. Fica claro que Michael Jackson era um artista de excepção. Que tinha uma visão clara sobre a sua música e a forma de a apresentar. Que parecia estar em forma (física e vocal) para enfrentar os rigores do palco. Que tinha reunido uma mão-cheia de vídeos incríveis para suportar algumas cenografias. Que tinha em mãos um daqueles espectáculos que iam ficar na história... Mas mesmo com momentos de montagem tecnicamente competentes,e aceitando até que muito do texto até se possa ler no contexto, This Is It não parece mais que um bom extra para um DVD. No fim ficam duas certezas: perdemos um grande artista. E um grande concerto!

quinta-feira, outubro 29, 2009

January Jones: a herança de Kim Novak

FOTO Terry Richardson

Num daqueles delírios cinéfilos impossíveis de demonstrar, talvez possamos supor que, se Alfred Hitchcock refizesse em 2009 o seu Vertigo (1958), então Madeleine, a personagem de Kim Novak, seria entregue a January Jones. É ela, aliás, que assume uma das mais fascinantes personagens femininas que, em tempos recentes, a televisão nos ofereceu: Betty Draper, figura central da dinâmica de Man Men, a fabulosa série a passar na RTP2 — de modo porventura sintomático, poderemos acrescentar que Betty existe na passagem entre as décadas de 50 e 60, precisamente a época de Vertigo, um contexto de peculiar transformação dos padrões de consumo, da estrutura familiar e, em particular, das identidades femininas.
A revista americana GQ (edição com data de Novembro) faz capa com January Jones, apresentando-a num magnífico portfolio assinado por Terry Richardson. São imagens que sabem integrar de forma incisiva a herança de um erotismo muito sixties que vive das poses contemplativas, mas também de um subtexto de sugestões de insólita ambiguidade — como se a pergunta latente fosse esta: afinal, neste mundo dominado pelos festivos contrastes de vermelhos e negros, que lugar existe para os homens?
Além do mais, vale a pena ler a entrevista de January Jones a Mark Kirby, dissertando com alguma ironia sobre a simbologia social (e artística) de homens e mulheres. Evocando o seu papel em Os Três Enterros de um Homem/The Three Burials of Melquias Estrada (2005), de Tommy Lee Jones, January Jones lembra que, no Festival de Cannes, sem sequer se informarem, muitos jornalistas consideraram que a sua participação resultava apenas de alguma forma de nepotismo (apesar do apelido comum, de facto não há entre eles qualquer relação familiar) — houve mesmo um jornalista que lhe perguntou: "Como é ser dirigida pelo seu pai?".

Jorge Molder: fotógrafo e fotografado

A exposição de fotografias de Jorge Molder é um acontecimento em que a transparência se refaz em enigma — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 de Outubro), com o título 'A nitidez dos sonhos de Jorge Molder'.

Que fazer face a tantas imagens (televisivas, publicitárias, informáticas, etc.) que todos os dias vemos ou somos obrigados a ver? Sobretudo: que fazer quando começamos a compreender que já não as vemos? Ou ainda: quando é que a saturação do ver faz com que comecemos a sentir que, em boa verdade, apenas depositamos os olhos nas superfícies, por uns breves instantes, saltamos para outra imagem e entretanto... esquecemos tudo?
As espantosas fotografias de Jorge Molder são isso mesmo. Produzem espanto. Porquê? Porque desafiam o nosso entendimento. É certo que olhamos para elas e não temos muitos problemas em identificar os seus “assuntos”: muitas delas são protagonizadas pelo próprio fotógrafo, em poses mais ou menos lineares e austeras, desenhando, contemplando, pensando; outras devolvem-nos “objectos” conhecidos (uma mão, um peixe, um copo sobre uma mesa, etc.). Ao mesmo tempo, na sua nitidez (“uma rosa é uma rosa é uma rosa”, de acordo com as palavras lendárias de Gertrud Stein), as fotografias dizem-nos que identificar as “coisas” não basta. Ou melhor: não temos palavras para tudo aquilo que vemos e, quando suspendemos os nomes, aí pressentimos as alegrias e angústias do sonho.
Freud explica [foto: Sigmund Freud]. Por isso, a actual exposição de fotografias de Jorge Molder na Fundação Gulbenkian (terça a domingo, das 10h0 às 18h00, até dia 27 de Dezembro), tem o nome adequado de “A Interpretação dos Sonhos”, título roubado a um dos livros nucleares do pensamento do pai da psicanálise (publicado em 1899). Mais concretamente, esse é o título de uma série de imagens, recentes e inéditas, que exploram o misto de estranheza e transparência das matérias oníricas. Estão expostas em paralelo com outras duas séries: numa, “O Pequeno Mundo” (2000), Molder assume-se como personagem do seu próprio espaço, num labor que tem tanto de exposição como de introspecção; na outra, com o irónico título “Não tem que me contar seja o que for” (2006-2007), o fotógrafo trabalha sobre fotogramas de filmes (Freaks, de Tod Browning, O Falso Culpado, de Alfred Hitchcock, O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, etc.), gerando uma espécie de documentos imaginários em que a abstracção do mundo passa sempre pelo concreto da imagem.
São poderosas e envolventes as fotografias de Jorge Molder [exemplo da série "A Interpretação dos "Sonhos"]. Nesse sentido, recusam o simbolismo pesado, determinista ou banalmente obsceno de muitas imagens que, hoje em dia, massacram os nossos olhos e a nossa alma (ou nos fazem desejar ter uma alma). No limite, convidam-nos para um ritual que não está na moda: o de aceitarmos que as imagens não têm que estar obrigadas a “significar” algo de imediato, muito menos de definitivo. Podem ser tão só paisagens de uma verdade que pressentimos radical, mas que o mais cândido realismo existencial nos aconselha a nem sequer tentar formular por palavras. Apenas olhamos, silenciosos, extasiados, um pouco inquietos. Como num sonho.

Discos da semana, 26 de Outubro

Era uma vontade antiga, mas só a começámos a descobrir há um ano. Gravar um disco de piano… As gravações aconteceram finalmente em cinco dias de Dezembro de 2007, no Pequeno Auditório do CCB, com José Fortes do outro lado da mesa de gravação… Cinco dias intensos, entre dois pianos, não apenas concluindo a tempo e horas toda a agenda de trabalhos, sobrando ainda espaço para mais. E, no fim, quase três horas de música gravada. Na hora de optar, a decisão correcta: dividir a música em dois discos duplos, um a editar em 2008, o outro mais adiante. E esse “adiante” é, finalmente, agora. Solo II é por isso a conclusão directa de um díptico cuja primeira face escutámos há um ano. Juntando as Imperfeições 1 e 2 (assim tinham sido classificadas e “arrumadas” as peças gravadas), o disco assinalava o reencontro de António Pinho Vargas com uma importante etapa da sua obra, revelando contudo novas visões e caminhos num relacionamento a dois entre pianista e piano. O ponto de partida estava muitas vezes entre domínios à volta do jazz, mas a noção de fronteira de género surgia agora esbatida, a música transcendendo-a e vivendo por si, sem a necessidade de uma outra nomenclatura. Imperfeições ficaram. Porque o perfeito mora na matemática. E há por aqui ecos de melancolias e de toda uma soma de outras sensações (umas evocativas, umas descritivas, outras mais abstractas), que os números não poderão nunca traduzir. O novo disco (duplo) é portanto a natural parte dois desta mesma história da qual Solo I lançara primeiras pistas. Volta a percorrer composições de vários tempos (a mais antiga de 1976), juntando aos originais dois olhares sobre Que Amor Não Me Engana de José Afonso e The Times They Are A-Changing de Dylan e ainda uma improvisação (In Between T&O) captada durante as sessões. Não se ruma noutra direcção, mas completa-se o ciclo que Solo I começara a revelar. Agora, vivido este reencontro, fica o desafio, com vontade de ouvir mais: E a seguir?
António Pinho Vargas
“Solo II”

David Ferreira Investidas Editoriais
5 / 5
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Os últimos meses têm sido palco para a estreia (ou confirmação) de uma série de interessantes figuras que, disco após disco, têm devolvido a expressão “pop” a um patamar de respeito e vivacidade que, sobretudo na era das boy e girl bands fabricadas a rigor e das cançonetas talhadas pelas mãos de produtores ao serviço de alvos no mercado, caminhava para as sub-caves do que de realmente interessante estava a acontecer. Nomes como os de Little Boots ou a dupla La Roux (aos quais não devemos deixar de juntar figuras como Roisin Murphy ou Robyn) representam a face no feminino desta nova geração que, sem perder em vista uma vontade de comunicar com o espectador pop mainstream, optam por seguir caminho ditado pelos seus interesses, e não apenas os das agendas de um qualquer plano mais centrado no ouvinte (ler mercado) que nas canções. Annie não é propriamente uma novata. Norueguesa, estreou-se com um single em 1999 e em 2004 lançou o seu álbum de estreia. Don’t Stop, o seu sucessor, levou contudo cinco anos a chegar à rua. O disco, numa primeira versão, estava já pronto e com ordem de edição há um ano, através de uma multinacional… O disto deu em não dito, novos meses de espera, umas faixas menos e outras mais, e a versão definitiva finalmente foi lançada, afinal pela pequena independente Smalltown Supersound. O disco é uma garrida colecção de 12 belíssimas canções pop, pelas quais passam colaboradores como Richard X, Alex Kapranos (sim, dos Franz Ferdinand) ou a equipa de produtores Xenomania. Alia uma certa sensibilidade indie e uma atenção pelas presentes dinâmicas da música de dança a uma escola pop certamente escutada em discos dos Pet Shop Boys, Madonna ou saint Etienne. Don’t Stop é um dos grandes discos de canções pop do ano. Nasce longe dos focos de agitação maisntream. Tem tudo para chamar as atenções de quem segue a pop alternativa. Mas não faltam aqui argumentos para mais altos voos…
Annie
“Don’t Stop”

Smalltown Supersound
4 / 5
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Em meados dos anos 90 os Gus Gus eram frequentemente apontados como uma espécie de complemento directo a Björk quando em cena entrava uma vontade em falar da nova música que então chegava da Islândia, longe estava ainda a chegada de nomes como os dos Sigur Rós, Amina, Johan Johannsso, Apparat Organ Quartet e outros que entretanto chegaram a estas paragens mais a Sul… Chegaram a ser um vasto colectivo de figuras e ideias. Em meados de 90 eram uma dúzia de almas criativas, entre as quais militavam figuras hoje com obra a solo como Emiliana Torrini ou a dupla Arni & Kinski (em tempos a frente visual do grupo, que se dedicaram à realização vídeo a tempo inteiro)… Data dessa etapa o magnífico This Is Normal, lançado em 1999 pela 4AD, um dos mais interessantes discos de canções pop feitas sob ferramentas electrónicas em finais de 90. Com mutações de formação pelo caminho, os Gus Gus mantiveram-se activos, apesar de talvez menos visíveis na presente década. 24/7 assinala, com formação reduzida agora a um trio (voltando a integrar o vocalista Daníel Ágúst Haraldsson), a sua estreia no catálogo da Kompakt. Na essência, o disco traduz um passo natural no percurso de uma demanda que tem vindo a depurar elementos, em busca de um caminho que segue, à sua maneira, heranças da techno e da house. Austero, 24/7 reduz os elementos instrumentais a um minimalismo formal que em tudo se enquadra entre algumas das recentes propostas da editora pela qual agora respondem. O disco apresenta seis composições (algumas com partes distintas, como que propondo ideias de dois em um), uma delas em colaboração com Jimi Tenor, nem sempre procurando necessariamente a canção, entre todas porém brotando uma atitude de busca de espaços algures entre o desejo de experimentar e o pragmatismo que exige a música de dança. É um disco que se descobre aos poucos, e guarda a cereja para colocar sobre o bolo na recta final, ao som de Add This Song, mais um exemplo da interessante face pop que o grupo, por vezes, deixa revelar. Depois de alguns discos menos marcantes nos últimos anos, um bom regresso e em boa forma.
Gus Gus
“24/7”
Kompakt / Flur
4 / 5
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Os discos são editados sob a designação The Mountain Goats, mas para todos os efeitos não são mais que a expressão da voz (e ideias) de John Darnielle, cantautor com berço na Carolina do Norte com carreira discográfica que remonta a inícios de 90. The Life Of The World To Come é já o seu décimo sexto álbum (há um décimo sétimo gravado, mas ainda hoje por editar), o sexto que lança desde que em 2002 se juntou ao catálogo da 4AD. Como em ocasiões anteriores, pode a banda que o acompanha mudar de formação, mantendo-se a música e as preocupações que reflecte fiéis a uma mesma forma de as pensar. Assim volta a acontecer num disco que leva o autor a uma expressão que quase poderíamos dizer conceptual na qual apresenta um conjunto de olhares e reflexões sobre os sentidos da fé num plano de confronto com os tempos em que vivemos e o mundo que nos rodeia. Em termos formais, a construção do disco procura pontos de partida para cada canção em versículos concretos da Bíblia. Pontos de partida que não se esgotam numa leitura directa dos ecos milenares que transportam, mas que John Darnielle toma para deles partir em busca de caminhos. Estas 12 pequenas viagens pessoais são essencialmente conduzidas por voz e guitarra, ocasionalmente o piano, aceitando a presença de arranjos que vão das cercanias alt-country a espaços de lirismo mais elaborado, cortesia em alguns casos de arranjos para cordas por Owen Pallett. Canções frágeis, pessoais, que assim partilham dúvidas e ideias.
The Mountain Goats
“The Life Of The World To Come”

4AD / Popstock
3 / 5
Para ouvir: MySpace


Os Sunset Rubdown são um muito interessante fruto da vibrante vivência indie na Montreal dos nossos dias. A ideia nasceu de uma aventura a solo de Spencer Krug (dos Wolf Parade) mas rapidamente evoluiu para o formato de banda convocando outros músicos que ali encontraram igual caminho em paralelo face aos seus outros projectos. Há dois anos, o álbum Random Spirit Lover chamou atenções, pela colecção versátil de ideias que juntava num pequeno monumento que quase reencontrava afinidades com ecos do progressivo. Dois anos depois (e com um EP pelo caminho e mais um disco de Wolf Parade pelo meio), Dragonslayer revela a mesma ambição épica do álbum de 2007, embora procure arrumar as canções com outro primor na arte final. O alinhamento abre da melhor forma possível com Silver Moons, uma canção de travo grandioso na qual se evocam memórias de um Bowie na fase glam rock, com mais ou menos pitada de sinfonismo rock’n’roll à la Arcade Fire (que parece evidente, por exemplo, em Apollo and the Buffalo and Anna Anna Anna Oh!). O alinhamento mantém depois as canções no mesmo patamar de intensidade épica, nem sempre repetindo a inspiração que lhes deu a faixa de abertura. A voz de Kruger vinca personalidade, num registo que por vezes evoca a de uma esquecida estrela pop canadiana de 80 (Ivan Doroshuck, dos Men Without Hats). No fim, o disco não parece querer ir muito mais longe, mas mantém em boa forma o perfil da banda.
Sunset Rubdown
“Dragonslayer”

Jagjagwar / Popstock
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Para ler as letras do álbum: Site Oficial


Também esta semana:
U2 (reedição), Flight Of The Conchords, Elbow (reedição), R.E.M. (live), Britney Spears (best of), Erasure (reedição), Luke Haines, Tegan and Sara, Michael Nyman + McAlmont

Brevemente:
2 de Novembro: Julian Casablancas, The Hidden Cameras, David Fonseca, Weezer, Nirvana (live),Frankie Goes To Hollywood (best of), Bryn Terfel, Rickie Lee Jones, World Party
9 de Novembro: The Killers (live), Martha Wainwright, Robbie Williams, Shirley Bassey,Tori Amos, The Doors (live), Rolling Stones (reedições)
16 de Novembro: Kraftwerk (caixa),Procol Harum (reedições), Stereophonics, Ryuichi Sakamoto, Soft Machine (live), Kitsouné – Vol 8, Groove Armada, M Pollini (Bach)

Novembro: Atlantic Records (antologia), Foo Fighters, The Cinematics, Spiritualized (reedição),
Dezembro: Echo & The Bunnymen (live), Rolling Stones (reedição), Joni Mitchell (reedições), Cluster

PS. O texto sobre António Pinho Vargas foi originalmente publicado na revista NS

Nos 50 anos de... Astérix

Há precisamente 50 anos Astérix surgia pela primeira vez nas páginas da revista Pilote. Criação de Goscinny e Uderzo, o pequeno gaulês, juntamente com o amigo Obélix, o cão Ideafix e demais habitantes da pequena aldeia afirmaram uma ideia de resistência, quer pela inteligência, quer belo bom humor, quer pelo uso da poção mágica que lhes dá poderes sobrenaturais. As histórias evoluíram de forma a estabelecer confrontos curiosos entre os dias em que a Gália era ocupada por Roma e os povos e situações no presente em que eram criadas. Depois de 1968 algumas marcas de mais evidente relacionamento com figuras e casos do mundo político ganharam expressão nos álbuns de Astérix. O Grande Fosso, de que fala o livro de 1980 com o mesmo título não é mais que uma alusão ao muro de Berlim.

Um culto 'made in' anos 70

A Cinemateca Portuguesa apresenta hoje Rocky Horror Picture Show, um clássico do cinema musical de 70, expressão de um inesperado relacionamento da cultura glam rock com a tradição do musical (onde esta história surgiu inicialmente) e, claro, o grande ecrã. Na época, o filme de Jim Sharman foi o primeiro lançado por um grande estúdio para o circuito das sessões da meia noite. Aí virou um fenómeno de culto, ainda hoje motivando encontros de fãs que, mascarados a rigor, se reencontram para vero filme por alturas do Halloween. Aqui se cruzam ingredientes de ficção-científica, terror e comédia, com as canções que suportaram a história, entre as quais The Time Warp, um dos clássicos nascidos dos musicais com alma rock’n’roll da década de 70. O filme é exibido pelas 21.30 integrado no ciclo Eram Os Anos 70.

quarta-feira, outubro 28, 2009

Saramago: ser ou não ser Caim

Caim, de José Saramago (Caminho; Lisboa, 2009) começa com “o senhor, também conhecido por deus” a oferecer o privilégio da fala aos habitantes do “jardim do éden”. Isto porque “adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca” [pág. 11]. Quer isto dizer que estamos perante um romance sobre o poder fundador da fala — logo, a vocação transfiguradora da escrita.
Nessa medida, este é um livro que se quer ligado a uma vocação antiga e nobre de que o escritor é, nos fúteis tempos “mediáticos” em que vivemos, o maravilhoso símbolo anacrónico. Mais do que isso: o escritor sabe que uma verdade umbilical o liga aos mais remotos contadores de histórias. A ponto de se situar a partir do reconhecimento do tempo como herança visceral: “Por motivos que não está nas nossas mãos dilucidar, simples repetidores de histórias antigas que somos, passando continuamente da credulidade mais ingénua ao cepticismo mais resoluto (...)” [pág. 107] — o sublinhado é meu.
Na prática, isto instaura um pletora de possibilidades que, em última instância, se confunde com o próprio labor da escrita. Caim está mesmo pontuado por uma série de frases de relançamento de tais possibilidades, verdadeiras embraiagens da escrita. Exemplos:
- “Tudo pode ser” [pág. 12].
- “Tudo pode acontecer” [pág. 24].
- “Veremos como acabará tudo isto” [pág. 65].
- “Temamos portanto o pior” [pág. 66].
- “(...) e, como era de prever, de acordo com as regras destas narrativas (...)” [pág. 131].
Dito de outro modo: Caim não é um romance “his-tórico”, de evocação de um qualquer passado palpável, porque o seu único passado é a própria palavra escrita, isto é, a Bíblia de Deus, Abel, Caim e mais algumas personagens secundárias. Aliás, a própria constituição de Caim em viajante do tempo é esclarecedora: no ziguezague entre vários “presentes”, nunca saímos deste lugar que o escritor, porque escreve, delimita com o leitor: “Então estamos no futuro, perguntamos nós, é que temos visto por aí uns filmes que tratam do assunto, e uns livros também” [pág. 80].
Dito ainda de outro modo: Caim colhe na persistente energia literária da Bíblia essa força peculiar que justifica que, por intransigente amor da liberdade das linguagens, se expanda o país da escrita para além das coordenadas do “razoável”, esse mesmo “razoável” todos os dias consagrado pela estupidez televisiva que quer impor a qualquer discurso artístico — até mesmo a uma simples imagem — um significado “único”, “unívoco”, “li-near” e “intermutável”. Como se não fossemos todos herdeiros de Caim, errantes e erráticos no labirinto do mundo.
Resta sublinhar a evidência: Saramago escreveu uma deliciosa comédia espiritual, mostrando-nos que, mesmo ancorados nas certezas das palavras herdadas, não podemos deixar de receber a diversidade do mundo como um desafio às nossas escolhas. Afinal, a certa altura, o nosso confundido Caim “vem montado num vulgar jerico e sem guia michelin” (pág. 153). Por ironia ou crueldade, Deus deixou de fabricar mapas.

>>> Editorial Caminho: Caim.
>>> Site da
Fundação José Saramago.

>>> FOTO de José Saramago, por Rui Coutinho (DN)

Lou Jacobi (1913 - 2009)

FOTO do blog Movie Screenshots

Lou Jacobi foi o impagável "Moustache" no genial Irma la Douce (1963), de Billy Wilder. Era ele que, sempre postado no seu balcão, aconselhava o atribulado Jack Lemmon nas suas relações com Shirley MacLaine, confrontando-o com as mais bizarras equações existenciais que, quase sempre, o levavam a acabar cada exposição com o esclarecedor "but that's another story..." — nascido em Toronto, Canadá, a 28 de Dezembro de 1913, Jacobi faleceu no dia 23 de Outubro, em Nova Iorque, contava 95 anos.
Com um carreira multifacetada no teatro, no cinema e na televisão, Jacobi trabalhou sucessivamente no Canadá, em Inglaterra e nos EUA. Sempre como impecável secundário, dramático ou deliciosamente cómico, entre os seus filmes mais conhecidos incluem-se Os Prazeres de Penélope (1966), de Arthur Hiller, O ABC do Amor (1972), de Woody Allen, e Avalon (1990), de Barry Levinson. Na televisão, foi uma presença regular em The Dean Martin Show, tendo surgido em séries como The Alfred Hitchcock Hour, The Man from UNCLE e L.A. Law.

Francis Bacon nos filmes dos outros

Hoje que se assinalam os 100 anos do nascimento de Francis Bacon, vale a pena recordar também que, não sendo ele estranho à contemplação/revisão das imagens cinematográficas, alguns filmes apostaram em integrar algo da sua pintura.
Por uma vez, o cinema tentou lidar com o universo de Francis Bacon num registo mais ou menos biográfico. Aconteceu em 1998, no filme inglês Love Is the Devil, dirigido por John Maybury, com Derek Jacobi numa espantosa composição de Bacon, acentuando a sua convulsiva solidão. Infelizmente, nem mesmo o facto de a personagem de George Dyer ser interpretada por Daniel Craig (o actual James Bond) deu ao filme maior visibilidade, permanecendo como um título mais ou menos esquecido nos circuitos de DVD (entre nós, foi exibido na Semana dos Realizadores da edição de 1999 do Fantasporto).
Love Is the Devil filma a relação Bacon/Dyer como uma verdadeira máquina de produzir ilusões e fantasmas. Afinal de contas, a sua aproximação começa na proposta amorosa de Bacon, quando surpreende Dyer a assaltar a sua casa. Maybury encena a coexistência dos dois homens como uma tragédia suspensa que, por assim dizer, os quadros de Bacon vão superando, mais do que ilustrando.
A influência de Bacon no cinema está ainda presente num filme de Adrian Lyne, Jacob’s Ladder (1990), sobre as alucinações de um veterano da guerra do Vietname (chamou-se, entre nós, BZ – Viagem Alucinante, fazendo referência à sigla de uma droga alegadamente utilizada pelo Pentágono em soldados americanos). Protagonizado por Tim Robbins, Jacob’s Ladder distingue-se por um magnífico trabalho visual que, para representar os pesadelos da personagem central, aplica efeitos de deformação dos corpos que evocam, explicitamente, quadros de Bacon.
Num caso como noutro, o cinema arrisca aproximar-se dessa fronteira figurativa que Bacon insistemente calcorreou: aí, onde o humano se contempla e, de algum modo, se prolonga na sua própria deformação — valendo a pena lembrar que na palavra deformação está contida a noção de forma.

Um herdeiro de Gainsbourg

Benjamin Biolay, um dos nomes mais sólidos da presente cena pop/rock alternativa em França, tem novo disco de originais (que terá edição nacional). Tem por título La Superbe e assinala a sua estreia no catálogo da Naïve. Um aperitivo aqui fica na forma do tema-título, num teledisco realizado por Clarise Canteloube.

Mais perto... só em Paris!

Julian Casablancas, o vocalista dos Strokes, anunciou uma digressão europeia para acompanhar o lançamento do seu primeiro álbum a solo Phrazes For The Young, a editar na próxima semana. Os concertos decorrem entre 30 de Novembro (em Copenhaga) e 16 de Dezembro (no London Forum, em Londres). Portugal e Espanha ficaram de fora destas datas agora anunciadas. O concerto mais próximo, por enquanto, terá lugar em Paris, no Le Bataclan, a 8 de Dezembro.

Francis Bacon, cem anos depois

A galeria irlandesa Hugh Lane, em Dublin, assinala hoje o centenário de Francis Bacon com a inauguração da exposição Francis Bacon: A Terrible Beauty, Desde o ano passado a aproximação da data de hoje (que marca os cem anos do nascimento do pintor) tem sido assinalada com vários eventos e edições. Uma exposição com uma representação significativa da sua obra passou já por Londres, Madrid e, mais recentemente Nova Iorque. Algumas dessas obras estarão a partir de hoje, e até Março, em Dublin. Este museu irlandês tem ainda em exposição a reconstituição do estúdio do próprio pintor.

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Imagens da reconstituição do estúdio de trabalho de Francis Bacon. Todos os materiais expostos foram retirados em 1998 do espaço onde o pintor trabalhara e transportados depois para a Hugh Lane Gallery, sob a atenção de uma série de profissionais, alguns deles especialistas em arqueologia que asseguraram uma correcta reconstituição deste espaço de trabalho que, assim, está patente ao público nesta nova morada.

Site da Hugh Lane Gallery: aqui

Jon Hassell hoje em Lisboa

O Teatro Maria Matos (Lisboa) recebe hoje a visita do trompetista e compositor Jon Hassell (n. 1937). A sua música está longe de ser um segredo bem guardado, porém poucas vezes é reconhecida como o deveria ser. A sua obra traduz uma invulgar amplitude de horizontes, correndo entre algumas periferias do jazz, aceitando a dada altura o contacto com os compositores minimalistas, reconhecendo em alguns instantes um interesse pelos conceitos de ‘ambiente’ e pela exploração de texturas. Marcante na formação de uma linguagem foi também o estabelecimento de uma relação atenta com músicas provenientes de outras paragens, da sua integração na sua música e em contextos com origem distinta (e ocidental) surgindo o conceito de “quarto mundo” que em tempos trabalhou juntamente com Brian Eno. Em etapas distintas da sua extensa obra trabalhou ainda com figuras tão marcantes como La Monte Young, Peter Gabriel ou David Sylvian. Este ano editou já o álbum Last Night the Moon Came Dropping Its Clothes in the Street. Hoje, pelas 22.00 horas, estará em palco, acompanhado por Jan Bang (samplers), Eivind Aarset (guitarra e baixo) e Kheir-Eddine M'Kachiche (violino).

Kraftwerk, as reedições (3/8)

Continuamos a fazer um percurso através dos álbuns dos Kraftwerk que agora são reeditados com som remasterizado. Ordenados cronologicamente, passamos hoje por Trans Europe Express, de 1977.

Depois de lançada a visão com Autobahn (1974) e aprofundada uma curiosidade pela canção pop em Radio-Activity (1975) o passo seguinte revelou novo importante passo em frente. Novamente na agenda de trabalhos residia um conceito global para o disco: desta feita a celebração de uma ideia europeia, surgindo os comboios e as redes ferroviárias como uma das expressões físicas de um todo que se pretendia celebrar. Trans Europe Express (capa original ao lado) foi, tal como o anterior, gravado nos estúdios Kling Klang, em Dusseldorf, com a produção assinada por Hutter e Schneider, também eles os autores de todas as composições. Tomando os comboios como uma das forças motrizes do disco, chegaram a escutar e gravar sons de carruagens sobre caminhos-de-ferro. Mas sentiram a necessidade de os manipular depois, não os considerando suficientemente dançáveis. A estrutura rítmica mais elaborada e insistente é, de resto, uma das novidades maiores de um disco que ao mesmo tempo aprofunda as marcas de relação com a canção (bem visíveis em Hall Of Mirrors ou Showroom Dummies). O disco assinala uma espécie de agradecimento a David Bowie, que algum tempo antes fora dos primeiros a falar da influência que a descoberta dos Kraftwerk tivera na sua música. Bowie e Iggy Pop são inclusivamente citados na letra do tema-título. O álbum é um dos discos mais influentes da história pop dos anos 70, com marcas suas bem visíveis não apenas em terreno pop como, inclusivamente, no hip hop.

O século de Francis Bacon

FRANCIS BACON
Study for Head of George Dyer
1967

Na pintura de Francis Bacon encontramos os despojos de um incessante combate com os corpos e suas imagens. São cenas, retratos, coisas realistas e outros fantasmas criados por alguém que se reconhecia de uma geração marcada pelo signo da guerra: "Nasci em 1909. Desde então, houve dúzias de guerras e conflitos em todo o mundo, a começar pelos acontecimentos da Irlanda e a Primeira Guerra Mundial, pouco depois do meu nascimento. Tenho a impressão que as pessoas da minha geração não conseguem, de facto, imaginar uma humanidade sem guerra" (in Entretiens, Michel Archimbaud; Gallimard, 1996) — Francis Bacon nasceu em Dublin, a 28 de Outubro de 1909, faz hoje cem anos.
O maior legado de Bacon [foto] está na sua obstinada fidelidade à figura humana. Fideli-dade ou infidelidade, já que, embora manten-do-se distante da tentação abstraccionista, ele foi pintando corpos alheios a qualquer forma "natural", por assim dizer expondo-os a partir do avesso e, nessa medida, emprestando-lhes uma vibração cruelmente realista. Atraído pela fotografia e pelo cinema (em particular, pela singularidade dos fotogramas), Bacon deixou uma obra imensa e fascinante que resiste a dissolver-se num universo de imagens estereotipadas, enredadas no determinismo da sua "mensagem". Ele foi, afinal, um viajante solitário das euforias e medos do factor humano — faleceu em Madrid, a 28 de Abril de 1992.

>>> Site oficial de Francis Bacon.
>>> Francis Bacon no arquivo da
BBC.
>>> 11 Set. 2008/4 Jan. 2009: exposição na
Tate Britain.

terça-feira, outubro 27, 2009

Antony em Abbey Road

Recentemente, Antony esteve nos estúdios de Abbey Road para gravar um programa para o Channel 4: o seu Live from Abbey Road inclui vários temas do álbum The Crying Light — aqui fica o belíssimo Her Eyes Are Underneath the Ground.


>>> Página de Antony and the Johnsons na editora Secretly Canadian.

Sombras na floresta

Da Suécia continuam a chegar sucessivos motivos para renovar a nossa atenção por aquele que continua a ser um dos grandes espaços de produção pop/rock de primeira linha na Europa. Desta vez encontramos os The Mary Onettes, algures numa floresta, e de noite, ao som de Puzzles, o single que anuncia o seu novo álbum, Islands, a editar já na próxima semana.

O 'extra' dos Globos de Ouro

Ricky Gervais vai ser o apresentador da 67ª cerimónia de entrega dos Globos de Ouro (os de Hollywood). Será a primeira vez, desde 1995, que a cerimónia terá apresentador, o que parece indiciar uma aposta numa transmissão televisiva global com outras ambições. A cerimónia terá lugar a 17 de Janeiro. A 15 de Dezembro serão, entretanto, revelados os nomeados nas diversas categorias.

Depois dos alter-egos... o alter-Lego!

Fizeram história, sobretudo nos anos 70, os alter-egos de David Bowie. De Ziggy Stardust a Bip Bip Pierrot, de Aladdin Sane ao Thin White Duke... Agora eias que regresa sob nova forma... E em Lego. A imagem toma como modelo o 'look' que fez história durante a Serious Moonlight Tour, de 1983. O que faz sentido quando a canção que motiva esta criação não é mais que Let’s Dance, o tema-título do álbum que serviu de base a essa mesma digressão. Tudo isto surge por conta do jogo Lego Rock Band, mais uma variação do mesmo jogo que ainda há semanas acolheu a música dos Beatles como protagonista de mais uma edição. Aqui ficam algumas imagens da “actuação” do Bowie em Lego…



David Bowie, em Lego, entenda-se, é apenas uma das muitas personagens que surgirão no jogo, a lançar na próxima semana. A banda sonora de Lego Rock Band inclui, além de Let’s Dance, outras canções (e músicos) como The Passenger de Iggy Pop, A-Punk dos Vampire Weekend, Crash dos Primitives, Song 2 dos Blur ou Ride The White Swan dos T-Rex.



E estas são imagens da “actuação" deste Bowie virtual em Lego, ao som de Let’s Dance, já no ambiente de jogo.