sábado, outubro 31, 2009

Em conversa: António Pinho Vargas (1)

Iniciamos hoje a publicação de uma entrevista com António Pinho Vargas que serviu de base a uma entrevista publicada no DN a 26 de Outubro com o título ‘Um ciclo de álbuns que abriu novos caminhos’. Esta entrevista vai ser aqui publicada ao longo dos próximos fins de semana. Hoje falamos de Solo II, editado esta semana (e que hoje é apresentado, juntamente com músicas do volume 1, na Culturgest). A conversa vai evoluir depois para uma série de reflexões sobre os universos do jazz, os da música contemporânea e da forma como estes mundos se relacionam…

O díptico Solo I e Solo II representa o concretizar uma vontade antiga de fazer um disco ao piano. E tudo começou em cinco dias ao piano, no pequeno auditório do CCB. Como foram esses momentos?
O concretizar eu diria que foi até quase excessivo, na medida em que nessa gravação gravei claramente tempo a mais. Pensei que ia gravar um disco... Fui um bocado ingénuo porque devia ter feito as contas. Mas gravei quase três horas de música. Por isso foi uma explosão. Com muitos factores, seguramente um deles a vontade de tocar e muito do que está neste segundo disco foi gravado nessas sessões.

Sim, regressou ao CCB já este ano para pontuais novas gravações que agora surgem em Solo II… Porque sentiu necessidade de lá voltar quando já tinha muita música gravada?
Para algumas coisas... Uma foi refazer, a Da Alma, que está no fim do CD2. Inclui o Ornette, que em princípio não estava no meu projecto inicial, mas pelo meio, no intervalo, encontrei uma maneira interessante de fazer aquela música. E ainda as duas do Zeca Afonso. O Que Amor Não me Engana, de que fiz duas versões. E fiquei bem contente por ter feito as duas versões.

E porquê duas versões?
A música tem um certo potencial. E a minha escolha não tem só a ver com a música do José Afonso, que ele tem muitas músicas maravilhosas, mas com o que é que eu podia dizer nesta música. Eu tinha que escolher uma em função do meu interesse... Escolhi aquela porque tinha uma melodia adequada, que reformulei à minha maneira para eu a poder tocar. E durante esse trabalho começaram a aparecer muitas coisas. Então disse que o melhor era gravar duas versões. Uma com uma atitude mais contida, mais próxima da melodia e outra, na qual a melodia está presente, mas em que à volta eu faço outras coisas bastante diferentes. Por um lado é reconhecível, mas é também claramente reconhecível a diferença. E esse é o Que Amor Não Me Engana II. A segunda sessão foi isto. Tudo o resto foi gravado na tal exaltante experiência de voltar a gravar depois daqueles anos todos.

Como seleccionaram o material a gravar? Definiram um percurso, mas não necessariamente retrospectivo. Porque, na verdade, Solo I e II não vivem só do olhar para trás...
Há anos fiz uma série de músicas... Como é que as vejo hoje e de que forma posso fazer versões para piano. Porque só o facto de passar versões de quarteto ou sexteto para piano, só isso vai implicar uma primeira diferença. Depois o tempo passou e estudei outras músicas. Continuei sempre a tocar piano, e portanto de alguma forma tudo isso se tornou presente no trabalho prévio. Esse trabalho prévio foi primeiro de selecção. Nalguns casos não havia nenhumas dúvidas particulares, noutros havia. Foi preciso encontrar a maneira de fazer. Por exemplo, no caso do Ornette, à partida não havia maneira de fazer. E finalmente, passados três meses ou meio ano já me pareceu como... Foi esse processo de descoberta daquilo que era possível em cada música. Há neste segundo disco uma música que se chama In Between T&O. É improvisado. E dediquei-a ao José Fortes, que me disse... porque é que não gravas isso?... Era uma coisa que nunca tinha feito no passado e que acho que ficava bem ali, que é uma improvisação total.

Porque lhe chamou In Between T&O?
Chamei-lhe In Between T&O por causa do Thelonious Skizo Sketch e do Ornette, porque a improvisação tem algumas relações com aquelas duas músicas e a maneira como costumo improvisar nelas. Mas tem também um percurso autónomo... E tive assim de inventar um título. A possibilidade de fazer isto deveu-se mesmo ao interesse do José Fortes, que não se limita a estar ali a gravar. Mas como já me conhece há 30 anos, dá as suas opiniões... Foi um momento maravilhoso. Depois havia uma escolha a fazer. Primeiro houve uma discussão com o David Ferreira com o que devia ser feito. Ele queria fazer só um disco em primeiro lugar. E eu disse que não podia fazer um disco de 45 minutos quando tinha gravado quase três horas de música! Só faria sentido se houvesse uma amostragem razoavelmente ampla do que eu fiz. Pelo menos vamos dividir a meio... E finalmente encontrámos este formato dos dois CDs duplos, que já me permitiram falar com outra propriedade do projecto tal como ele é.

E como dividiram as gravações, decidindo o que fica aqui e o que fica ali?
Também conheço o David Ferreira há 30 anos, e por isso a relação é boa. E houve uma troca, a maior parte das vezes por email... Chegámos a ter umas discussões... No primeiro disco está o Fado Negro, que dura dez minutos, em quarto lugar. E ele disse: “não sei se consigo editar um disco em que a quarta música demora dez minutos”... Ele disse que era o formato pop dele a funcionar. A conversa foi até rica de parte a parte. Eu apresentava os meus argumentos e queria ouvir os dele...

(continua amanhã)