Caim, de José Saramago (Caminho; Lisboa, 2009) começa com “o senhor, também conhecido por deus” a oferecer o privilégio da fala aos habitantes do “jardim do éden”. Isto porque “adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca” [pág. 11]. Quer isto dizer que estamos perante um romance sobre o poder fundador da fala — logo, a vocação transfiguradora da escrita.
Nessa medida, este é um livro que se quer ligado a uma vocação antiga e nobre de que o escritor é, nos fúteis tempos “mediáticos” em que vivemos, o maravilhoso símbolo anacrónico. Mais do que isso: o escritor sabe que uma verdade umbilical o liga aos mais remotos contadores de histórias. A ponto de se situar a partir do reconhecimento do tempo como herança visceral: “Por motivos que não está nas nossas mãos dilucidar, simples repetidores de histórias antigas que somos, passando continuamente da credulidade mais ingénua ao cepticismo mais resoluto (...)” [pág. 107] — o sublinhado é meu.
Na prática, isto instaura um pletora de possibilidades que, em última instância, se confunde com o próprio labor da escrita. Caim está mesmo pontuado por uma série de frases de relançamento de tais possibilidades, verdadeiras embraiagens da escrita. Exemplos:
- “Tudo pode ser” [pág. 12].
- “Tudo pode acontecer” [pág. 24].
- “Veremos como acabará tudo isto” [pág. 65].
- “Temamos portanto o pior” [pág. 66].
- “(...) e, como era de prever, de acordo com as regras destas narrativas (...)” [pág. 131].
Dito de outro modo: Caim não é um romance “his-tórico”, de evocação de um qualquer passado palpável, porque o seu único passado é a própria palavra escrita, isto é, a Bíblia de Deus, Abel, Caim e mais algumas personagens secundárias. Aliás, a própria constituição de Caim em viajante do tempo é esclarecedora: no ziguezague entre vários “presentes”, nunca saímos deste lugar que o escritor, porque escreve, delimita com o leitor: “Então estamos no futuro, perguntamos nós, é que temos visto por aí uns filmes que tratam do assunto, e uns livros também” [pág. 80].
Dito ainda de outro modo: Caim colhe na persistente energia literária da Bíblia essa força peculiar que justifica que, por intransigente amor da liberdade das linguagens, se expanda o país da escrita para além das coordenadas do “razoável”, esse mesmo “razoável” todos os dias consagrado pela estupidez televisiva que quer impor a qualquer discurso artístico — até mesmo a uma simples imagem — um significado “único”, “unívoco”, “li-near” e “intermutável”. Como se não fossemos todos herdeiros de Caim, errantes e erráticos no labirinto do mundo.
Resta sublinhar a evidência: Saramago escreveu uma deliciosa comédia espiritual, mostrando-nos que, mesmo ancorados nas certezas das palavras herdadas, não podemos deixar de receber a diversidade do mundo como um desafio às nossas escolhas. Afinal, a certa altura, o nosso confundido Caim “vem montado num vulgar jerico e sem guia michelin” (pág. 153). Por ironia ou crueldade, Deus deixou de fabricar mapas.
Nessa medida, este é um livro que se quer ligado a uma vocação antiga e nobre de que o escritor é, nos fúteis tempos “mediáticos” em que vivemos, o maravilhoso símbolo anacrónico. Mais do que isso: o escritor sabe que uma verdade umbilical o liga aos mais remotos contadores de histórias. A ponto de se situar a partir do reconhecimento do tempo como herança visceral: “Por motivos que não está nas nossas mãos dilucidar, simples repetidores de histórias antigas que somos, passando continuamente da credulidade mais ingénua ao cepticismo mais resoluto (...)” [pág. 107] — o sublinhado é meu.
Na prática, isto instaura um pletora de possibilidades que, em última instância, se confunde com o próprio labor da escrita. Caim está mesmo pontuado por uma série de frases de relançamento de tais possibilidades, verdadeiras embraiagens da escrita. Exemplos:
- “Tudo pode ser” [pág. 12].
- “Tudo pode acontecer” [pág. 24].
- “Veremos como acabará tudo isto” [pág. 65].
- “Temamos portanto o pior” [pág. 66].
- “(...) e, como era de prever, de acordo com as regras destas narrativas (...)” [pág. 131].
Dito de outro modo: Caim não é um romance “his-tórico”, de evocação de um qualquer passado palpável, porque o seu único passado é a própria palavra escrita, isto é, a Bíblia de Deus, Abel, Caim e mais algumas personagens secundárias. Aliás, a própria constituição de Caim em viajante do tempo é esclarecedora: no ziguezague entre vários “presentes”, nunca saímos deste lugar que o escritor, porque escreve, delimita com o leitor: “Então estamos no futuro, perguntamos nós, é que temos visto por aí uns filmes que tratam do assunto, e uns livros também” [pág. 80].
Dito ainda de outro modo: Caim colhe na persistente energia literária da Bíblia essa força peculiar que justifica que, por intransigente amor da liberdade das linguagens, se expanda o país da escrita para além das coordenadas do “razoável”, esse mesmo “razoável” todos os dias consagrado pela estupidez televisiva que quer impor a qualquer discurso artístico — até mesmo a uma simples imagem — um significado “único”, “unívoco”, “li-near” e “intermutável”. Como se não fossemos todos herdeiros de Caim, errantes e erráticos no labirinto do mundo.
Resta sublinhar a evidência: Saramago escreveu uma deliciosa comédia espiritual, mostrando-nos que, mesmo ancorados nas certezas das palavras herdadas, não podemos deixar de receber a diversidade do mundo como um desafio às nossas escolhas. Afinal, a certa altura, o nosso confundido Caim “vem montado num vulgar jerico e sem guia michelin” (pág. 153). Por ironia ou crueldade, Deus deixou de fabricar mapas.
>>> Editorial Caminho: Caim.
>>> Site da Fundação José Saramago.
>>> FOTO de José Saramago, por Rui Coutinho (DN)