sexta-feira, janeiro 31, 2020

Super-grupo folk

Bela capa, de depurado classicismo, para Bonny Light Horseman, da autoria do colectivo homónimo — são três amigos, Eric D. Johnson (da banda Fruit Bats), Josh Kaufman (multi-instrumentista e produtor) e Anaïs Mitchell (cantora/compositora) que se reuniram para formar aquilo que, de forma sugestiva, podemos designar como um super-grupo folk. Trata-se de revisitar uma colecção de temas tradicionais, preservando, justamente, a tradição. Sem modernismos postiços, celebrando a sua herança sonora, cultural e simbólica — eis Jane Jane, no festival Pickathon 2019, em Happy Valley, Oregon.

Bruno Fernandes
ou o contrário de El-Rei D. Sebastião

REMBRANDT
O Regresso do Filho Pródigo
1669
Reza a lenda que Portugal viveu angustiado, esperando o regresso de El-Rei D. Sebastião, numa manhã de nevoeiro...
Mais de quatro séculos depois, Bruno Fernandes protagonizou uma apoteótica inversão da lenda. No seu caso, a tragédia era outra: nunca mais se ia embora...
Pois bem, está consumada a transferência para o Manchester United, gerando um ditirâmbico rol de despedidas mediáticas que, no seu tom lacrimoso, nos levaram a pensar que Bruno Fernandes seria o messias que voltámos a alienar...
Escusado será dizer que os clubes a que Bruno Fernandes pertencia ou vai pertencer são referências irrelevantes para estas linhas — já aconteceu o mesmo com outros protagonistas de outros clubes...
Trata-se apenas de observar como os movimentos habituais do mercado futebolístico são encenados como sagas de vida ou de morte em que todos estamos condenados a perder alguma coisa — 50 milhões, ao que parece...

quinta-feira, janeiro 30, 2020

quarta-feira, janeiro 29, 2020

"O Rei Leão" — realista e digital

Entre os principais títulos da produção de 2019, O Rei Leão ilustra uma concepção vanguardista no tratamento dos valores realistas. O certo é que a sua presença na temporada de prémios, incluindo os Oscars, é muito discreta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 janeiro), com o título 'Realismo digital'.

A história dos filmes é também, como todos sabemos, uma história económica e financeira. Porque fazer cinema é um trabalho que requer investimentos consideráveis e porque, inevitavelmente, o destino desses investimentos desemboca, de uma maneira ou de outra, na vida dos filmes nos mercados, a começar pelas salas escuras.
Quando consultamos os números globais das bilheteiras, referentes a 2019, ficamos a saber que os estúdios Disney conseguiram uma impressionante performance: 11,1 mil milhões de dólares de receitas em todo o mundo (contas redondas: 10 mil milhões de euros), obtidos graças a títulos como Os Vingadores: Endgame, O Rei Leão ou Toy Story 4.
O caso de O Rei Leão é tanto mais interessante quanto o seu impacto começa no chamado mercado americano (EUA + Canadá), mas também se pode medir através dos números de pequenos nichos, como é o caso do mercado português. Segundo os números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, coligidos desde a informatização das bilheteiras, em 2004, O Rei Leão bateu mesmo o recorde de frequência nas salas portuguesas: 1.280.860 espectadores, contra 1.207.749 de Avatar (2009).
Separemos as águas. O Rei Leão de 2019 (recentemente lançado em DVD e Blu-ray) poderia ter sido um aparatoso desastre financeiro, sem que isso lhe retirasse o mérito de, a meu ver, reinventar de forma brilhante a versão de desenhos animados lançada em 1994. E também não vejo como os milhões acumulados por Os Vingadores: Endgame possam superar a sua entediante colecção de lugares-comuns técnicos e narrativos, confirmando a preguiça criativa da maior parte das aventuras de super-heróis produzidas nos últimos anos (com chancela Marvel, Disney ou de qualquer outro estúdio).
Na temporada de prémios que irá ter o seu desenlace nos Oscars (9 Fevereiro), ninguém parece ter querido reconhecer, com a devida ênfase, tão grandes sucessos. Lembramo-nos, aliás, que o alargamento do número de possíveis nomeados para o Oscar de melhor filme do ano (para um máximo de dez, desde a cerimónia de 2010) foi justificado pela “necessidade” de não esgotar as escolhas nos valores “artísticos”, dando visibilidade aos líderes das bilheteiras… Onde está, então, O Rei Leão? Pois bem, surge nomeado para uma modesta categoria (melhores efeitos visuais), não integrando o lote de candidatos a melhor filme ou melhor filme de animação.
David W. Griffith
Reencontramos, assim, o simplismo desse sistema de pensamento culpabilizante (transversal no espaço mediático) que tende a opor a “arte” e a “indústria”, santificando uma sempre que demoniza a outra… Como se fosse possível descrever e compreender o génio de pioneiros como David W. Griffith, Cecil B. De Mille ou Charles Chaplin sem ter em conta o entrelaçado da sua visão criativa e respectivas estratégias de mercado.
No caso específico de O Rei Leão, realizado por Jon Favreau, creio que a sua relativa marginalização começou, perversamente, no desafio de linguagem que o filme acarreta. Isto porque o marketing o promoveu através de um processo técnico — a passagem da animação do filme de 1994 para os novos recursos da “imagem real” — que serviu de forma linear, sem qualquer distanciamento crítico, para muitas formas de abordagem jornalística.
Ora, na percepção do espectador, todas as imagens são “reais”. Porquê? Porque todas são recebidas através de uma experiência inserida numa determinada realidade (a sala escura, o ecrã do computador ou qualquer outro dispositivo). Acontece que as imagens digitais de O Rei Leão procuram um efeito realista — ou, se quiserem, uma impressão de realidade — que, pelo menos em termos tradicionais, não pertence ao domínio dos desenhos animados.
Nesta perspectiva, entre os produtos gerados pelo cinema ao longo do ano de 2019, O Rei Leão é, de facto, um objecto genuinamente vanguardista. Através dele, percebemos que os clássicos códigos de figuração realista estão a ser reconvertidos, porventura ultrapassados, pelo aparato tecnológico que o século XXI já consagrou. Renova-se, por isso, uma pergunta perturbante: o realismo de uma imagem decorre daquilo que reproduz ou das técnicas da sua fabricação?

Custos sociais [citação]

>>> Se os produtores de carvão, petróleo e, talvez numa dimensão menor, gás natural tivessem que pagar realmente a totalidade dos custos que impõem à sociedade, a maior parte do sector encerraria, sendo substituído por energia renovável.

PAUL KRUGMAN

terça-feira, janeiro 28, 2020

Da dependência dos ecrãs

Somos demasiado dependentes dos ecrãs? E de que modo a nossa dependência está a ser injectada, com equívoca naturalidade, para as crianças?
O dossier da edição do dia 29 do jornal Libération pode ter muitos aspectos discutíveis (que, em qualquer caso, merecem discussão), mas a mensagem não deixa de ser linear e perturbante: "um novo estudo publicado esta quarta-feira pormenoriza os perigos de uma exposição demasiado banalizada dos mais pequenos à televisão, aos smartphones e aos tablets — e mostra que os pais estão muitas vezes pouco ou mal informados."
Dito de outro modo: quando é que as nossas sociedades em rede se decidem a questionar o seu estado social?

Bill Ray (1936 - 2020)

Bill Ray em 1947, com 11 anos
The Guardian
O seu trabalho ficou ligado à história das revistas Life e Newsweek: o fotógrafo americano Bill Ray faleceu no dia 8 de Janeiro, vítima de um ataque cardíaco — contava 83 anos.
A sua fama é indissociável das fotografias de Marilyn Monroe, a 19 de Maio de 1962, cantando Happy Birthday, Mr. President para o Presidente John F. Kennedy. São imagens emblemáticas que, em qualquer caso, não bastam para testemunhar a concisão e diversidade do seu trabalho. Dos Beatles aos Hells Angels, dos veteranos Vietname a celebridades como Elvis Presley ou Andy Warhol, Ray foi um exemplo modelar do melhor foto-jornalismo made in USA.
MM, 1962
Charles M. Schulz, 1967
Hells Angels, 1965
>>> Obituário no New York Times.

segunda-feira, janeiro 27, 2020

Max Richter, concerto na NPR

Eis uma especialíssima edição dos 'Tiny Desk Concerts' da NPR: com a colaboração do American Contemporary Music Ensemble, Max Richter interpretou três temas emblemáticos da sua obra, a começar pelo encantatório On The Nature Of Daylight, várias vezes apropriado em cinema, nomeadamente por Martin Scorsese (Shutter Island, 2010) e Denis Villeneuve (Arrival, 2016) — são 17 minutos de precisão, transparência e mistério.

4 Grammys para Billie Eilish

Segundo a Time, a 62ª cerimónia dos Grammys foi um acontecimento amargo e doce, marcado pela notícia da morte de Kobe Bryant. Para além dos erros práticos ou conceptuais do próprio espectáculo, a revista refere algumas ausências de peso — Lady Gaga, Taylor Swift, Beyoncé, etc. —, considerando que ilustram um crescente desinteresse pelo próprio espectáculo, repetindo o que já acontecera em 2019.
De uma maneira ou de outra, Billie Eilish foi a figura da noite, obtendo o quarteto mágico de distinções — não acontecia desde a consagração de Christopher Cross, em 1981. Ou seja: Artista Revelação, Melhor Artista Pop a Solo, Canção do Ano (Bad Guy) e Álbum do Ano (When We All Fall Asleep, Where Do We Go?).
Notável foi a presença de Alicia Keys, ao piano, fazendo o lançamento da cerimónia com uma sobriedade em nada estranha às delícias do entertainment: uma verdadeira lição de saber estar, dizer e cantar — eis os seus 5 esplendorosos minutos e, em baixo, a maravilhosa performance de When the Party's Over, por Billie Eilish, acompanhada ao piano pelo irmão Finneas O'Connell.




>>> Lista oficial integral dos nomeados e premiados nos Grammy [26 Jan. 2020].

O boom do rock português [memórias]

Xutos & Pontapés, Rui Veloso, Taxi, UHF,
Salada de Frutas e António Variações (esq-dta) / ARQUIVO GESCO
Do Chico Fininho ao Se Cá Nevasse, sem esquecer Cavalos de Corrida... Dos GNR aos Ban, passando por António Variações...
O boom do rock português começou há 40 anos e marcou de forma decisiva o nosso panorama cultural e simbólico, da música e para além da música, durante a primeira metade da década de 80. No Blitz, Rui Miguel Abreu assinala a efeméride e propõe uma revisão, tão didáctica quanto sugestiva, de "40 canções que fizeram história". Aqui fica o exemplo dos Sétima Legião (Glória) — vale a pena ler o texto e escutar a lista.

domingo, janeiro 26, 2020

Mal Waldron Trio — um clássico

Foi há cinquenta anos, mais precisamente em Novembro de 1969, que ocorreu a primeira sessão de gravações da etiqueta ECM. Resultado: o álbum Free at Last do Mal Wadron Trio, com Wadron (piano) na companhia de Isla Eckinger (contrabaixo) e Clarence Becton (bateria). Como o próprio Wadron sublinhou na altura, tratava-se do seu "encontro com o free jazz". Meio século depois, surge uma edição comemorativa ["extended edition"], com várias novas faixas e a certeza de que estamos perante um clássico, genuíno e intemporal.

Versace por Alas/Piggott

Jennifer Lopez é uma das personagens da mais recente campanha da marca Versace, concebida por Donatella Versace e fotografada por Mert Alas & Marcus Piggott — ou como a iconografia do mundo virtual contamina a figuração dos corpos [portfolio: models.com].

sábado, janeiro 25, 2020

Madonna na Antena 3

FOTO: Peter Lindbergh
Harper's Bazaar, Maio 1994
"Os rostos de Madame X" — eis o título de uma emissão especial da Antena 3, capaz de nos ajudar a revisitar/compreender a complexidade do universo de Madonna. O programa tem texto e locução do Nuno, com a colaboração de dois nomes da área da música, Rita Redshoes e Alex d’Alva Teixeira, a jornalista Ana Ventura e o autor deste post. Não é um best of — é caso para dizer que é much better [Antena 3].

Billie Eilish no fundo do mar

Capa do single de EVERYTHING I WANTED
— pintura de Jason Anderson
Nas reedições do magnífico álbum de Billie Eilish, When We All Fall Asleep, Where Do We Go?, foi acrescentada a canção Everything I Wanted, uma das colaborações da cantora com o irmão, Finneas O'Connell.
Diz-se de alguns sonhos que obedecem a um padrão de voo, com o sonhador a experimentar as delícias ou as ameaças de uma libertação da força da gravidade. O teledisco de Everything I Wanted, protagonizado pelos dois irmãos, consegue um efeito algo semelhante, mas deixando-se atrair pelo fundo do mar — tal como em Xanny, a própria Billie Eilish assina a realização.

Teledisco com... cães


Com berço em Athens (na Georgia, EUA) em finais de 90, a aventura indie criada por Kevin Barnes (e disversos companheiros de trabalho) sob o nome Of Montreal começou por cativar atenções por via da sua filiação entre a “família” do coletivo de bandas Elephant 6 (o mesmo que, entre outros, revelou nomes como os Neutral Milk Hotel, Olivia Tremor Control, Apples In Stereo ou Elf Power). Apesar da designação de “banda”, na verdade o nome Of Montreal – e reza a mitologia que a designação veio de uma relação falhada com uma rapariga de Montreal, no Canadá – traduz essencialmente a expressão da criatividade, angústias, sonhos e desejos de um só homem. Chama-se Kevin Barnes e, depois de quase dez anos afogado no que em tempos designou ser um gueto indie, viu a sua música ser reconhecida em meados da primeira década do século XXI quando lançou os álbuns. Satanic Panic In The Attic (de 2004) e Sunlandic Twins (2005). Coube todavia ao álbum de 2007 Hissing Fauna, Are You The Destroyer o momento de conquista de um relacionamento mais alargado (e não apenas aclamação crítica) através de um disco que, se por um lado confirmava o gosto pela criação de títulos extensos e intrigantes – como tinha ocorrido em 2001 com Coquelicot Asleep In The Poppies: A Variety Of Whimsical Verse – por outro abria uma frente de trabalho (e exposição) que determinaria rumos futuros na obra dos Of Montreal e, sobretudo, do vincar de uma relação prioritária entre a música e a exposição, quase diarística, de factos e reflexões da vida pessoal de Kevin Barnes e do mundo ao seu redor.

Uma terapia exposta, de certa forma, definida sobre horizontes de possibilidades estéticas que tanto passou já por uma pop retro (que não escondeu um encanto pelos Kinks) ou por texturas psicadélicas por vezes com sabor a paletas de referências dos anos 80 (e que por vezes lembraram uns Legendary Pink Dots), a música que Kevin Barnes tem apresentado como Of Montreal viveu, através desse álbum de 2007, a conquista do poder narrativo que um álbum pode conceder a um conjunto de canções. Nem todos os álbuns editados por Kevin Barnes depois deste disco de 2007 – sem dúvida a sua obra de referência – tiveram por base narrativas tão bem estruturadas ou desenharam episódios musicalmente tão empolgantes. Nunca a sua música foi desinteressante, é verdade. Mas salvo ocasionais novas descobertas ou assimilações, aqui e ali com belas canções, as rotas e destinos da música apresentada via Of Montreal foi vivendo progressivamente mais longe do gume das atenções.


Talvez essa quase indiferença possa ser o destino do novo UR FUN, álbum que surge num tempo em que as ementas indie estão, na generalidade, longe dos apetites de quem opina sobre música e das tendências dos furacões de partilhas nas redes sociais. A verdade é que, depois de breves indícios no álbum Innocence Reaches (de 2016) e, mais ainda, no EP White Is Relic / Irrealis Mood (de 2018), UR FUN é um disco que, retomando valores concetuais de um Hissing Fauna, Are You The Destroyer, revela a mais inspirada e cativante coleção de canções que Kevin Barnes nos apresenta desde então. O disco, apesar de assinado como Of Montreal, nasceu de um retiro solitário, com jornadas longas vividas no estúdio que tem em sua casa.

É um disco indie pop e teve na sua génese uma admiração pelo modo como discos como She’s So Unusual de Cyndi Lauper ou Control de Janet Jackson eram feitos de canções que podiam, todas elas, ser lançadas como singles. O som aponta a assimilações de ecos dos oitentas. E o próprio tom da capa vinca essa ideia. UR FUN traduz uma pulsão pop luminosa que, aqui se manifesta em canções que, sem largar a clara assinatura da música de Kevin Barnes, revelam uma outra luz e leveza, deixando às palavras o papel de conferir a cada uma a respetiva carga narrativa e reflexiva. Há muito que não me fixava, tantas vezes, e com tanta vontade de regressar, a um disco dos Of Montreal...

sexta-feira, janeiro 24, 2020

1917 / 2020

George MacKay em 1917
Através de uma espectacular sofisticação técnica, o novo filme de Sam Mendes, 1917, é sobretudo um retrato invulgar da vida e da morte nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial: está na linha da frente para arrebatar o Oscar de melhor filme de 2019 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Janeiro), com o título '“1917” ou a guerra como nunca a vimos'.

Será que o cinema é essa coisa estranha e sedutora que pode ser “maior que a vida”?… Não há nenhuma resposta linear, muito menos científica, a tal pergunta. O certo é que, face a 1917, o novo filme de Sam Mendes (desde quinta-feira nas salas portuguesas), reencontramos a magia de tal expressão.
Porquê? Porque o filme não nos enreda nessa arte menor de novelas e telenovelas, tentando disfarçar a sua pequenez narrativa com a sugestão de que a vida é “mesmo” assim. E escusado será dizer que também não estamos perante a rotina entediante dos filmes de “super-heróis”, Marvel & afins, que insistem em promover o cinema como uma acumulação preguiçosa de “efeitos especiais”.
Dito de outro modo: o cinema pode ser algo que nos convoca para a vida, não porque a “reproduza”, mas porque o nele acontece… tem vida! Mais do que isso: o cinema pode ser hiper-sofisticado na sua fabricação técnica sem que isso implique qualquer endeusamento beato da própria tecnologia.

A técnica

Comecemos pela técnica, justamente. Muito se tem falado, e com toda a pertinência, do facto de Sam Mendes ter apostado em fazer o seu filme num só plano: a sua duração de perto de duas horas corresponde, de facto, a uma acção que decorre em continuidade, também ao longo de duas horas. O complexo trabalho da sua equipa, em particular desse genial director de fotografia que é Roger Deakins, atesta a grandeza do desafio [video].


Em qualquer caso, o que importa reter não é o trabalho técnico enquanto mero “fogo de artifício”. Aliás, como os seus criadores explicam, a continuidade temporal de 1917 é obtida através de diversas “takes”, mais ou menos longas, “coladas" através de uma montagem subtil que acaba por gerar essa noção de que não há interrupção temporal.
Se Sam Mendes quis contar a sua história em continuidade, isso decorre, não de qualquer forma de ostentação técnica, mas sim da necessidade (narrativa, justamente) de preservar a urgência do que está a acontecer com dois jovens elementos do exército britânico. Para Will e Tom, interpretados pelos admiráveis George MacKay e Dean-Charles Chapman, a missão de avisar um batalhão que pode estar sujeito a uma emboscada dos alemães, é vivida, em todos os sentidos, como uma luta contra o tempo.

A história

Da primeira à última imagem, 1917 é um filme assombrado pela crueza e crueldade de um conflito que, de modo algo desconcertante, não tem um peso muito significativo na história do chamado “filme-de-guerra”. Na verdade, esse é um género que, em grande parte, se definiu e consolidou através de relatos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ao encenar um episódio da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Sam Mendes está também a fazer um exercício de prospecção histórica, talvez capaz de produzir algum efeito revelador junto das gerações de espectadores cuja noção de “acção” tem sido dramaticamente condicionada por jogos de video e aventuras de super-heróis. Além do mais, estabelecendo um laço de cumplicidade com alguns clássicos sobre o primeiro conflito mundial como Paths of Glory/Horizontes de Glória (1957), de Stanley Kubrick.
Há outra maneira de dizer isto: através do vanguardismo dos seus recursos técnicos, 1917 é um objecto primitivo de cinema — ou, talvez melhor, um objecto de cinema primitivo. O que nele se celebra não é o cinema como “reprodução” da história, antes como máquina de revisitação e reinvenção dessa história. No limite, trata-se mesmo de dar a ver a guerra como nunca a vimos [trailer].


Através da claustrofobia das trincheiras, da violência dos combates corpo a corpo e, por fim, da evidência incontornável da morte, o espectador é convocado para qualquer coisa de eminentemente físico: o cinema é, realmente, maior que a vida. Ou melhor: maior que a percepção corrente (leia-se: televisiva) da própria vida. Sendo um filme em tudo e por tudo concebido para a dimensão grandiosa de um ecrã numa sala escura, 1917 é também um dos raros exemplos de um conceito de espectáculo que adquire a sua máxima energia através da projecção numa sala IMAX.

A produção

Neste tempos em que, não poucas vezes, se fala da noção de “globalização” como uma espécie de “gadget” (económico ou político) sem conteúdo palpável, vale a pena acrescentar que 1917 é também um sugestivo exemplo de um processo realmente global de produção.
O filme tem chancela da Universal Pictures, um dos grandes estúdios da produção americana (e não deixa de ser curioso lembrar que, fundado em 1912, se trata do mais antigo sobrevivente entre os pioneiros de Hollywood). Na montagem do projecto encontramos a Amblin, de Steven Spielberg, e também o estúdio DreamWorks, de que Spielberg foi também um dos fundadores em 1994 (com Jeffrey Katzenberg e David Geffen). Trata-se, aliás, da continuação de uma já longa colaboração, iniciada em 1999 com a primeira realização de Sam Mendes, Beleza Americana — foi, aliás, com esse título que a DreamWorks ganhou o seu primeiro Oscar de melhor filme [trailer].


A estas entidades será preciso acrescentar o nome da Reliance Entertainment, estúdio da Índia com uma presença crescente na grande produção internacional, nomeadamente através de vários títulos de Spielberg, incluindo Lincoln (2012) e A Ponte dos Espiões (2015).
Pois bem, nada disto é produto do acaso, uma vez que Spielberg foi uma das primeiras personalidades de Hollywood a ter a clara percepção de que os mercados asiáticos iriam desempenhar um papel cada vez mais importante na economia global do cinema. Na verdade, Spielberg estabeleceu um acordo de produção com a Reliance há mais de uma década, em 2009, envolvendo uma verba de 1,5 mil milhões de dólares (qualquer coisa como 1,35 mil milhões de euros). Se 1917 confirmar a maior parte das apostas e arrebatar o Oscar de melhor filme do ano, é caso para dizer que, pelo menos desta vez, será mesmo o triunfo de uma bela ideia de globalização.

A IMAGEM: Pierre Bonnard, c. 1910

PIERRE BONNARD
La Bouillabaisse
c. 1910

quinta-feira, janeiro 23, 2020

Pearl Jam, "Dance of the Clairvoyants"

Matt Cameron + Jeff Ament + Mike McCready + Eddie Vedder + Stone Gossard
Gigaton, 11º registo dos Pearl Jam, chega a 27 de Março — o álbum anterior, Lightning Bolt, foi editado em 2013. Para já, temos Dance of the Clairvoyants, canção de inesperada energia funk que, como escreve Brian Hiatt na Rolling Stone, ilustra a sempre épica "perversidade anti-comercial" da banda.

Alicia Keys x 4

Alicia Keys + Alicia Keys + Alicia Keys + Alicia Keys — vai ser assim a capa do sétimo álbum de estúdio da criadora de Girl on Fire. Chama-se ALICIA e chega a 20 de Março. Eis uma preciosidade do seu alinhamento: Underdog, com teledisco realizado por Wendy Morgan.

She was walking in the street, looked up and noticed
He was nameless, he was homeless
She asked him his name and told him what hers was
He gave her a story about a life
With a glint in his eye and a corner of a smile
One conversation, a simple moment
The things that change us if we notice
When we look up, sometimes

They said I would never make it
But I was built to break the mold
The only dream that I've been chasing is my own

So I sing a song for the hustlers trading at the bus stop
Single mothers waiting on a check to come
Young teachers, student doctors
Sons on the frontline knowing they don't get to run
This goes out to the underdog
Keep on keeping at what you love
You'll find that someday soon enough
You will rise up, rise up, yeah

She's riding in a taxi back to the kitchen
Talking to the driver about his wife and his children
On the run from a country where they put you in prison
For being a woman and speaking your mind
She looked in his eyes in the mirror and he smiled
One conversation, a single moment
The things that change us if we notice
When we look up, sometimes

They said I would never make it
[...]

So I sing a song for the hustlers trading at the bus stop
[...]

Everybody rise up
You're gonna rise, yeah

I sing a song for the hustlers trading at the bus stop
Single mothers waiting on a check to come
[...]

quarta-feira, janeiro 22, 2020

Terry Jones (1942 - 2020)

Personalidade multifacetada, da arte da representação à investigação histórica, foi um dos fundadores dos Monty Python: há vários anos sofrendo de uma forma rara de demência [DFT, demência frontotemporal], o galês Terry Jones faleceu no dia 21, em Londres — contava 77 anos.
A sua imagem de marca está ligada ao mundo cómico e absurdo dos Monty Python. Na companhia de Michael Palin (com quem já colaborara em diversos programas de televisão), Eric Idle, John Cleese e Graham Chapman, estes colegas de estudo em Cambridge, e Terry Gilliam, cineasta americano, criou a série de comédia Monty Python's Flying Circus — dela foram produzidos, entre 1969 e 1975, 45 episódios. Viria a ser também uma personalidade determinante na passagem dos Python para cinema, dirigindo os filmes Monty Python e o Cálice Sagrado (1975), A Vida de Brian (1979) e O Sentido da Vida (1983), o primeiro e o terceiro co-assinados com Gilliam. Como argumentista, colaborou em projectos de outros realizadores, nomeadamente O Labirinto (1986), de Jim Henson, com David Bowie e Jennifer Connelly.
O seu interesse pela história, em particular do período medieval, levou-o a escrever vários livros, por vezes utilizando também a televisão para fazer passar uma leitura pouco convencional do passado. Por exemplo, Terry Jones' Medieval Lives (2004), série de oito episódios produzida pela BBC, contraria a visão convencional da Idade Média como um tempo obscuro e intelectualmente pobre.
Em 2014, no espaço The O2, em Londres, os membros dos Monty Python montaram um espectáculo de balanço (transmitido entre nós pelos cinemas UCI), intitulado Monty Python Live (Mostly). Foi um reencontro em palco, depois de um interregno de 34 anos — seria a primeira vez sem Chapman (falecido em 1989), ficando como a última ainda com Terry Jones.

>>> Sketch 'Communist Quiz', do espectáculo dos Monty Python no Hollywood Bowl, em 1982 (Terry Jones interpreta Karl Marx) + trailer de A Vida de Brian.




>>> Obituário na BBC.
>>> Site oficial dos Monthy Python.

A década do SOUND + VISION

Noblesse oblige. Sob o signo de Madonna e David Bowie, apresentámos a nossa primeira sessão de 2020, na FNAC, propondo uma revisitação de memórias da década 2010/2019. Não um top, muito menos um "best of". Apenas uma pequena colecção de imagens e sons que admiramos e que, mesmo na sua brevidade, podem ajudar-nos a compreender as convulsões artísticas, técnicas e industriais de dez anos das nossas vidas. Aqui ficam três momentos musicais do fim de tarde do dia 19 de Janeiro, no Chiado. 

>>> THE KNIFE, A Tooth for an Eye (Shaking the Habitual, 2013)


>>> BEYONCÉ, Sandcastles (Lemonade, 2016)


>>> MAX RICHTER, On the Nature of Daylight (The Blue Notebooks, 2018)

Piano solo [10/10]


[ Victor Borge ] [ Daniel Barenboim ] [ Glenn Gould ]

A noção de que o jazz implica uma passagem para um domínio "especializado" de expressão e entendimento é tanto mais redutora quanto tende a fechar as respectivas fronteiras, encerrando também a sua escuta em rituais mais ou menos esotéricos. Mesmo nas suas manifestações mais simplistas, historicamente, a noção de fusão consegue contrariar tal fechamento. 
Escusado será sublinhar o papel fundamental de Chick Corea nas dinâmicas de contaminação do jazz, e através do jazz, ele que, além do mais, colaborou com Miles Davis, Stan Getz ou Herbie Hancock. O seu álbum de 1984, Children's Songs, pode servir de emblema: eis um conjunto de 20 canções infantis em que a linearidade (?) da proposta envolve complexas estruturas narrativas, apelando, sem esforço, com desarmante naturalidade, a memórias da chamada música clássica (a começar pelas influências muitas vezes citadas de Béla Bartók ou Steve Reich).
Ainda antes da edição desse álbum, em 1982, no Festival de Piano de Verão, em Munique, Corea interpretou um "resumo" das suas 'Canções para Crianças' — um misto de celebração e recolhimento.

Criterion edita "Le Petit Soldat"

É o filme em que Michel Subor diz a Anna Karina que, sendo a fotografia a "verdade", o cinema é a "verdade 24 vezes por segundo"... Produzido em 1963, foi o primeiro trabalho em que Karina foi dirigida por Jean-Luc Godard: uma crónica francesa assombrada pelo uso da tortura durante a Guerra da Argélia. Agora editado em DVD e Blu-ray pela Criterion Collection, Le Petit Soldat (entre nós lançado como O Soldado das Sombras) surge com uma capa belíssima, da autoria de F. Ron Miller, sensível ao espírito de colagem da sua narrativa. Aqui fica um fragmento.

terça-feira, janeiro 21, 2020

Paisagens de Terrence Malick [2/2]

Em Uma Vida Escondida, Terrence Malick filma a personagem de um objector de consciência que recusou integrar o exército nazi. Subitamente, o cinema recorda-nos que a paisagem não é uma curiosidade turística, mas um valor humano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro).

[ 1 ]

Uma velha regra de trabalho na aproximação crítica dos filmes aconselha a que não confundamos o cinema com a “repetição” de outras linguagens. Exemplo clássico, entre todos: os cenários naturais “muito bonitos” não fazem um filme… Ou dito de modo mais rigoroso: criar imagens para um filme não se reduz a uma banal “imitação” dos valores e composições de obras da pintura, sejam elas quais forem.
É verdade que a história do cinema inclui alguns filmes emblemáticos que nascem, justamente, da relação das imagens cinematográficas com os universos da pintura. Para nos ficarmos por um exemplo sublime, recordo o Van Gogh (1991), de Maurice Pialat, com Jacques Dutronc no papel do pintor. Em todo o caso, o essencial passa, aí, pelo labor, ora transparente, ora indecifrável, dos gestos e pensamentos que definem um pintor.
O novo e belíssimo filme de Terrence Malick, Uma Vida Escondida, relança-nos no labirinto destas questões. No seu centro está a personagem verídica do austríaco Franz Jägerstätter (1907-1943), objector de consciência que recusou integrar o exército nazi. A sua vida de agricultor nas montanhas da Áustria é-nos apresentada através de muitos elementos “pictóricos”. Mas as eventuais aproximações da pintura são insuficientes para dar conta daquilo que vemos. O que Malick recupera é antes um valor visceral do olhar cinematográfico. A saber: a paisagem.
Associado ao lugar-comum do cinema “como pintura”, surge muitas vezes outra noção simplista e, afinal, preguiçosa: através dos seus modos de registo, os filmes tratariam a paisagem como elemento de simples reprodução. Ora, o que importa reencontrar e, a meu ver, revalorizar, é a noção de paisagem, não como reprodução, mas como reconstrução — reorganização do visível.
Num notável ensaio sobre as paisagens de Rembrandt — intitulado, precisamente, Rembrandt’s Landscapes (Yale University Press, 1990) —, a professora de arte Cynthia P. Schneider analisa o desafio inerente às suas representações da natureza: dos fenómenos naturais à emergência dos símbolos, do natural ao metafórico, lembra ela que a paisagem se apresenta, não como uma reprodução, mas sim uma narrativa. Dir-se-ia que somos levados a olhar a natureza, não como coisa natural, mas sim como componente orgânica, cristalina, por vezes enigmática, de toda a experiência humana.
É isso mesmo que reencontramos no trabalho de Malick. Curiosamente, ele já integrou Rembrandt nos seus filmes: os quadros Mulher Banhando-se num Rio (c. 1654) e A Ressurreição de Lázaro (c. 1630-32) são citados, respectivamente, em A Essência do Amor (2012) e Cavaleiro de Copas (2015). Seja como for, uma vez mais, não é a citação que faz o filme…

Mulher Banhando-se num Rio
A Ressurreição de Lázaro
August Diehl no papel de Franz Jägersttäter
Na saga trágica de Jägerstätter, a paisagem surge como algo mais que o seu espaço de vida e trabalho. A cor da terra, o verde das plantações, o cinzento das montanhas ao longe, tudo isso se apresenta, não como “contexto” ou “pano de fundo”, desenhando antes um quadro (a sugestão pictórica é irresistível), todo ele humano e humanizado.
Terrence Malick
Escusado será dizer que estamos longe de qualquer tratamento turístico da paisagem. Em boa verdade, o olhar turístico é aquele que ignora a riqueza e complexidade dos elementos paisagísticos, tratando-os como “cromos” de uma celebração pueril, sem curiosidade cognitiva nem apelo transcendental.
Nos nossos tempos digitais, a proliferação de imagens instalou um novo e deprimente valor. Em muitas formas “sociais” de troca de imagens, a única motivação identificável é a própria troca e o êxtase consumista a ela associado: “troco” a minha imagem pela tua… E, em qualquer momento, podemos apagar tudo.
Neste contexto, Malick é, obviamente, um primitivo. No sentido histórico da palavra: tal como os grandes cineastas do mudo, há nele a vulnerabilidade de quem não resiste ao fascínio de aplicar uma câmara de filmar aos elementos do mundo à sua volta. Não exactamente para o descrever, antes porque o êxtase do visível se confunde com o pressentimento do invisível. Talvez que num filme como Uma Vida Escondida todas as paisagens sejam interiores.

Bombay Bicycle Club, opus 5

Jack Steadman, vocalista e pianista dos Bombay Bicycle Club, interpreta uma canção como se fosse uma experiência tão festiva quanto macabra... Só vendo. E escutando: Everything Else Has Gone Wrong (teledisco realizado por Louis Bhose) pertence ao álbum homónimo da banda britânica, o nº5 da sua discografia — com a obstinada fidelidade a um espírito indie que não abdica de uma sofisticada lógica de entertainment.

Uma nova base de dados
sobre o cinema português

A imagem do Real Colyseu de Lisboa, inaugurado em 1887, serve de emblema à notícia da criação, no passado dia 13 de Janeiro, de MEMORIALE, um site de Jorge Leitão Ramos dedicado ao cinema português.
Sempre empenhado na recolha, filtragem e organização de informação sobre os filmes e a história do cinema português (lembro-me bem desse empenho durante a nossa convivência profissional no semanário Expresso), JLR procura, assim, contrariar o nosso desconhecimento da produção portuguesa.
Como ele escreve numa nota de apresentação, trata-se de regressar à origem da própria informação: "Porquê outra base de dados sobre cinema português? Porque todas as que existem são lacunares, sem créditos quanto à origem das informações e, deste modo, de duvidosa confiabilidade. Aqui, procedeu-se a um trabalho de recolha de informação tendo como fonte privilegiada o genérico dos filmes."
Por um lado, nasce, assim, um importante instrumento de consulta sobre as pessoas (realizadores, actores, técnicos, etc.) que fizeram e fazem uma história que, por vezes, tão mal conhecemos. Por outro lado, os filmes são indexados através de elementos muito diversos, nomeadamente fichas técnicas, trailers ou fragmentos, fotografias e dados de bilheteira.
Afinal de contas, não podemos conceber nenhuma forma de alargamento e enriquecimento da relação dos espectadores com os filmes portugueses que não passe por um reforço da informação sobre esses mesmos filmes — MEMORIALE, "obra em permanente construção", como JLR refere, é um contributo didáctico para que isso aconteça, para que isso se possa ir construindo.

A IMAGEM: Paolo Roversi, 2014

PAOLO ROVERSI
Natalia Vodianova
Vogue Russia (Dez. 2014)

segunda-feira, janeiro 20, 2020

Jimmy Heath (1926 - 2020)

Brilhante saxofonista, deixa o legado de uma multifacetada obra jazzística, quer como líder, quer como acompanhante de outros músicos: o americano Jimmy Heath faleceu no dia 19 de Janeiro, na cidade de Loganville, Georgia, de causas naturais — contava 93 anos.
Figura emblemática dos tempos gloriosos do bebop e hardbop, a sua versatilidade valeu-lhe o cognome de "Little Bird" — em paralelo com Charlie "Bird" Parker. John Coltrane, Donald Byrd, Benny Carter, Miles Davis e Johnny Hartman são alguns dos nomes com que colaborou. De qualquer modo, foi com os irmãos, o baixista Percy Heath e o baterista Albert Heath, acompanhados pelo pianista Stanley Cowell, que formou o seu mais famoso ensemble: a discografia de The Heath Brothers inclui mais de uma dezena de álbuns, com colaboradores variados, no período 1975-2009. Em 2010, lançou a auto-biografia, I Walked With Giants.


>>> Bruh Slim: registo de 2016, com Jimmy Heath a dirigir a WDR Big Band.


>>> Obituário na NPR.
>>> Jimmy Heath no Herbie Hancock Institute of Jazz.

Henrique Espírito Santo (1932 - 2020)

Personalidade nuclear na história da produção cinematográfica em Portugal, Henrique Espírito Santo faleceu no dia 19 de Janeiro — contava 87 anos.
Envolvido na produção de filmes desde meados da década de 60, sempre concebeu a sua actividade como indissociável de toda uma lógica de diversificação temática e pluralidade cultural. Sintomas da sua visão são a militância no espaço dos cineclubes (foi dirigente do Cineclube Imagem), a par da actividade crítica (nos anos 50/60 colaborou em diversas publicações, incluindo Visor, Actualidades e Seara Nova).
No começo da década de 70, foi director de produção do Centro Português de Cinema, tendo o seu nome ficado associado a muitos títulos marcantes na reconversão que tinha sido iniciada com o Cinema Novo. Entre eles, incluem-se O Recado (1971), de José Fonseca e Costa, A Promessa (1972), de António de Macedo, Jaime (1974), de António Reis e Margarida Cordeiro, Benilde ou a Virgem Mãe (1974) de Manoel de Oliveira, Brandos Costumes (1975), de Alberto Seixas Santos, A Fuga (1977), de Luís Filipe Rocha, O Bobo (1979) de José Álvaro Morais, e Amor de Perdição (1979) de Manoel de Oliveira.
O seu gosto pedagógico reflectiu-se também em diversas actividades de ensino, nomeadamente na Escola de Cinema do Conservatório Nacional (actual Escola Superior de Teatro e Cinema), onde leccionou no período 1978-80. Em 2017, o seu percurso profissional foi objecto de tratamento no documentário Até Amanhã, Henrique! [video], de Miguel Cardoso.


>>> Obituário no Jornal de Notícias.

domingo, janeiro 19, 2020

Eminem, 2020

Todos os dias vemos e ouvimos o espaço público contaminado pelas obscenidades e pelo anti-humanismo da "Reality TV" (filiada no seu emblema ideológico: Big Brother). Como é fácil perceber: ninguém diz nada...
Mas basta alguém assumir o artifício próprio de qualquer intervenção artística, mimando e, de alguma maneira, dinamitando as formas dominantes de comunicação, para que surjam os vigilantes dos "bons costumes".
Falo de quê? De Eminem e do seu álbum-surpresa, Music to Be Murdered By [notícia: Rolling Stone], capaz de suscitar reacções de indignação (legítimas — não é isso que está em causa) como a que está exemplarmente condensada no texto e no título do artigo de Holly Thomas no site da CNN: 'Eminem foi demasiado longe'.
Mais do que enredarmo-nos no labirinto desse verdadeiro tribunal público que Eminem volta a suscitar (o seu álbum é suficientemente criativo para que não o reduzamos a um qualquer rótulo imediato e imediatista, "positivo" ou "negativo"), talvez seja interessante referir que ele volta a aplicar um método de trabalho que encontramos em muitos artistas americanos, nomeadamente cineastas, de Sam Peckinpah a Jason Reitman. A saber: retomar referências temáticas e estéticas para as reconfigurar no presente — e para o presente.
Como tem sido amplamente noticiado, o título do álbum repete a designação de uma edição discográfica de 1958 que serviu a Alfred Hitchcock para recomendar peças musicais associadas à ideia de "suspense". Mais do que isso: uma das capas através da qual Eminem se apresenta é uma muito directa reinvenção paródica da capa de Hitchcock.
Dito de forma esquemática (sendo este esquematismo inerente ao próprio trabalho de Eminem), estamos perante um continuado jogo de espelhos. A saber: se eu aplicar a mesma teatralidade que domina o espaço mediático, como é que vocês vão reagir? E se reagem ao meu modo de me encenar, por que não dizem nada, todos os dias, sobre as regras e os efeitos que sustentam as convenções e a retórica desse mesmo espaço?
Nesta perspectiva, pode dizer-se que o teledisco de Darkness — recordando, em particular, o tiroteio de Las Vegas, em 2017, que vitimou 58 pessoas — se apresenta como encarnação modelar da estratégia narrativa de Eminem: uma espécie de dantesco noticiário televisivo que, com ambígua puerilidade (umbilicalmente ligada ao imaginário da informação que cita), defende um princípio universal de controle das armas de fogo.


Escusado será sublinhar que Eminem é tudo menos um gerador de unanimidades. Face ao continuado labor de contemplação crítica da sua América (lembremos apenas o exemplo de Not Afraid), importa também acrescentar que a sua visão, crítica e desesperada, da "Idade de Trump" continua a integrar muitas formas de apropriação/reinvenção do património cultural nacional.
Reveja-se, a esse propósito, a capa principal de Music to Be Murdered By e recorde-se a pintura clássica de Grant Wood, American Gothic (1930), reproduzida aqui em baixo — estamos, talvez, a vogar nas convulsões de um novo gótico, disperso e individualizado, racional e irracional, porventura carente de uma consciência crítica a que possamos chamar colectiva.