domingo, janeiro 19, 2020

Eminem, 2020

Todos os dias vemos e ouvimos o espaço público contaminado pelas obscenidades e pelo anti-humanismo da "Reality TV" (filiada no seu emblema ideológico: Big Brother). Como é fácil perceber: ninguém diz nada...
Mas basta alguém assumir o artifício próprio de qualquer intervenção artística, mimando e, de alguma maneira, dinamitando as formas dominantes de comunicação, para que surjam os vigilantes dos "bons costumes".
Falo de quê? De Eminem e do seu álbum-surpresa, Music to Be Murdered By [notícia: Rolling Stone], capaz de suscitar reacções de indignação (legítimas — não é isso que está em causa) como a que está exemplarmente condensada no texto e no título do artigo de Holly Thomas no site da CNN: 'Eminem foi demasiado longe'.
Mais do que enredarmo-nos no labirinto desse verdadeiro tribunal público que Eminem volta a suscitar (o seu álbum é suficientemente criativo para que não o reduzamos a um qualquer rótulo imediato e imediatista, "positivo" ou "negativo"), talvez seja interessante referir que ele volta a aplicar um método de trabalho que encontramos em muitos artistas americanos, nomeadamente cineastas, de Sam Peckinpah a Jason Reitman. A saber: retomar referências temáticas e estéticas para as reconfigurar no presente — e para o presente.
Como tem sido amplamente noticiado, o título do álbum repete a designação de uma edição discográfica de 1958 que serviu a Alfred Hitchcock para recomendar peças musicais associadas à ideia de "suspense". Mais do que isso: uma das capas através da qual Eminem se apresenta é uma muito directa reinvenção paródica da capa de Hitchcock.
Dito de forma esquemática (sendo este esquematismo inerente ao próprio trabalho de Eminem), estamos perante um continuado jogo de espelhos. A saber: se eu aplicar a mesma teatralidade que domina o espaço mediático, como é que vocês vão reagir? E se reagem ao meu modo de me encenar, por que não dizem nada, todos os dias, sobre as regras e os efeitos que sustentam as convenções e a retórica desse mesmo espaço?
Nesta perspectiva, pode dizer-se que o teledisco de Darkness — recordando, em particular, o tiroteio de Las Vegas, em 2017, que vitimou 58 pessoas — se apresenta como encarnação modelar da estratégia narrativa de Eminem: uma espécie de dantesco noticiário televisivo que, com ambígua puerilidade (umbilicalmente ligada ao imaginário da informação que cita), defende um princípio universal de controle das armas de fogo.


Escusado será sublinhar que Eminem é tudo menos um gerador de unanimidades. Face ao continuado labor de contemplação crítica da sua América (lembremos apenas o exemplo de Not Afraid), importa também acrescentar que a sua visão, crítica e desesperada, da "Idade de Trump" continua a integrar muitas formas de apropriação/reinvenção do património cultural nacional.
Reveja-se, a esse propósito, a capa principal de Music to Be Murdered By e recorde-se a pintura clássica de Grant Wood, American Gothic (1930), reproduzida aqui em baixo — estamos, talvez, a vogar nas convulsões de um novo gótico, disperso e individualizado, racional e irracional, porventura carente de uma consciência crítica a que possamos chamar colectiva.