terça-feira, janeiro 21, 2020

Paisagens de Terrence Malick [2/2]

Em Uma Vida Escondida, Terrence Malick filma a personagem de um objector de consciência que recusou integrar o exército nazi. Subitamente, o cinema recorda-nos que a paisagem não é uma curiosidade turística, mas um valor humano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro).

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Uma velha regra de trabalho na aproximação crítica dos filmes aconselha a que não confundamos o cinema com a “repetição” de outras linguagens. Exemplo clássico, entre todos: os cenários naturais “muito bonitos” não fazem um filme… Ou dito de modo mais rigoroso: criar imagens para um filme não se reduz a uma banal “imitação” dos valores e composições de obras da pintura, sejam elas quais forem.
É verdade que a história do cinema inclui alguns filmes emblemáticos que nascem, justamente, da relação das imagens cinematográficas com os universos da pintura. Para nos ficarmos por um exemplo sublime, recordo o Van Gogh (1991), de Maurice Pialat, com Jacques Dutronc no papel do pintor. Em todo o caso, o essencial passa, aí, pelo labor, ora transparente, ora indecifrável, dos gestos e pensamentos que definem um pintor.
O novo e belíssimo filme de Terrence Malick, Uma Vida Escondida, relança-nos no labirinto destas questões. No seu centro está a personagem verídica do austríaco Franz Jägerstätter (1907-1943), objector de consciência que recusou integrar o exército nazi. A sua vida de agricultor nas montanhas da Áustria é-nos apresentada através de muitos elementos “pictóricos”. Mas as eventuais aproximações da pintura são insuficientes para dar conta daquilo que vemos. O que Malick recupera é antes um valor visceral do olhar cinematográfico. A saber: a paisagem.
Associado ao lugar-comum do cinema “como pintura”, surge muitas vezes outra noção simplista e, afinal, preguiçosa: através dos seus modos de registo, os filmes tratariam a paisagem como elemento de simples reprodução. Ora, o que importa reencontrar e, a meu ver, revalorizar, é a noção de paisagem, não como reprodução, mas como reconstrução — reorganização do visível.
Num notável ensaio sobre as paisagens de Rembrandt — intitulado, precisamente, Rembrandt’s Landscapes (Yale University Press, 1990) —, a professora de arte Cynthia P. Schneider analisa o desafio inerente às suas representações da natureza: dos fenómenos naturais à emergência dos símbolos, do natural ao metafórico, lembra ela que a paisagem se apresenta, não como uma reprodução, mas sim uma narrativa. Dir-se-ia que somos levados a olhar a natureza, não como coisa natural, mas sim como componente orgânica, cristalina, por vezes enigmática, de toda a experiência humana.
É isso mesmo que reencontramos no trabalho de Malick. Curiosamente, ele já integrou Rembrandt nos seus filmes: os quadros Mulher Banhando-se num Rio (c. 1654) e A Ressurreição de Lázaro (c. 1630-32) são citados, respectivamente, em A Essência do Amor (2012) e Cavaleiro de Copas (2015). Seja como for, uma vez mais, não é a citação que faz o filme…

Mulher Banhando-se num Rio
A Ressurreição de Lázaro
August Diehl no papel de Franz Jägersttäter
Na saga trágica de Jägerstätter, a paisagem surge como algo mais que o seu espaço de vida e trabalho. A cor da terra, o verde das plantações, o cinzento das montanhas ao longe, tudo isso se apresenta, não como “contexto” ou “pano de fundo”, desenhando antes um quadro (a sugestão pictórica é irresistível), todo ele humano e humanizado.
Terrence Malick
Escusado será dizer que estamos longe de qualquer tratamento turístico da paisagem. Em boa verdade, o olhar turístico é aquele que ignora a riqueza e complexidade dos elementos paisagísticos, tratando-os como “cromos” de uma celebração pueril, sem curiosidade cognitiva nem apelo transcendental.
Nos nossos tempos digitais, a proliferação de imagens instalou um novo e deprimente valor. Em muitas formas “sociais” de troca de imagens, a única motivação identificável é a própria troca e o êxtase consumista a ela associado: “troco” a minha imagem pela tua… E, em qualquer momento, podemos apagar tudo.
Neste contexto, Malick é, obviamente, um primitivo. No sentido histórico da palavra: tal como os grandes cineastas do mudo, há nele a vulnerabilidade de quem não resiste ao fascínio de aplicar uma câmara de filmar aos elementos do mundo à sua volta. Não exactamente para o descrever, antes porque o êxtase do visível se confunde com o pressentimento do invisível. Talvez que num filme como Uma Vida Escondida todas as paisagens sejam interiores.