segunda-feira, fevereiro 29, 2016

OSCARS: preto, branco, amarelo, etc.

Chris Rock apresentou uma cerimónia em que, por uma vez, a questão essencial da diversidade não foi reduzida a uma visibilidade banalmente estatística. A 88ª cerimónia dos Oscars soube deslocar — e ampliar — o problema da representação artística das minorias para a questão, sem dúvida mais complexa e também mais decisiva, da igualdade de oportunidades. Tal princípio ecoou de forma muito directa, e também muito política, nas palavras de Cheryl Boone Isaacs [Billboard], presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.
De alguma maneira, foi também positivo para o enriquecimento do debate a vitória, algo surpreendente, de O Caso Spotlight, arrebatando o Oscar de melhor filme que parecia "destinado" a The Revenant: O Renascido, em particular depois das consagrações de Alejandro González Iñárritu (realização) e Leonardo DiCaprio (actor). A diversidade, enfim, circulou entre a necessária seriedade e o mais contagiante humor, não faltando os Mínimos a apresentar um dos prémios (melhor curta-metragem de animação) — consagrando o valor do amarelo, a sua performance fica como vencedora do Oscar de melhor apresentação.


>>> Lista integral de vencedores no site oficial dos Oscars.

domingo, fevereiro 28, 2016

OSCARS: 8 candidatos a melhor filme

Chris Rock vai ser o apresentador da 88ª cerimónia dos Oscars [em Portugal: 01h30 da madrugada de domingo para segunda-feira]. Os membros da Academia de Hollywood escolheram este ano oito candidatos ao prémio de melhor filme — ei-los nas categorias em que concorrem (por ordem decrescente do número de nomeações):

* THE REVENANT: O RENASCIDO (12)
— filme
— realizador (Alejandro G. Iñárritu)
— actor (Leonardo DiCaprio)
— actor secundário (Tom Hardy)
— montagem sonora
— mistura sonora
— cenografia
— fotografia
— caracterização
— guarda-roupa
— montagem
— efeitos visuais

* MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA (10)
— filme
— realizador (George Miller)
— montagem sonora
— mistura sonora
— cenografia
— fotografia
— caracterização
— guarda-roupa
— montagem
— efeitos visuais

* PERDIDO EM MARTE (7)
— filme
— actor (Matt Damon)
— argumento adaptado
— montagem sonora
— mistura sonora
— cenografia
— efeitos visuais

* A PONTE DOS ESPIÕES (6)
— filme
— actor secundário (Mark Rylance)
— argumento original
— música
— mistura sonora
— cenografia

* O CASO SPOTLIGHT (6)
— filme
— realizador (Tom McCarthy)
— actor secundário (Mark Ruffalo)
— actriz secundária (Rachel McAdams)
— argumento original
— montagem

* A QUEDA DE WALL STREET (5)
— filme
— realizador (Adam McKay)
— actor secundário (Christian Bale)
— argumento adaptado
— montagem

* QUARTO (4)
— filme
— realizador (Lenny Abrahamson)
— actriz (Brie Larson)
— argumento adaptado

* BROOKLYN (3)
— filme
— actriz (Saoirse Ronan)
— argumento adaptado

>>> Os Oscars no site da ABC.

Hitchcock na televisão

O conhecimento dos clássicos do cinema passa (ou pode passar) cada vez mais pelo espaço televisivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 fevereiro), com o título 'Uma lição de "suspense"'.

Descubro uma cópia esplendorosa de A Corda (1948), de Alfred Hitchcock, a passar no TV Cine (próximas exibições: 13 e 14 de Março). E não posso deixar de evocar as singularidades de um filme que envolveu uma proeza que está longe de ser anedótica ou irrelevante.
Na época, Hitchcock estava especialmente fascinado pela possibilidade de construir grandes blocos narrativos, em continuidade (“planos sequência”), tirando partido da duração máxima das bobinas de película (cerca de 10 minutos). Em A Corda, apostou no “impossível”: fazer um filme que fosse, todo ele, em continuidade. Como? Ligando as várias “takes” de modo a escamotear o corte de cada uma delas para o seguinte e, desse modo, criando a ilusão de que tudo acontece de forma contínua.
Na prática, temos um filme cuja duração (cerca de 80 minutos) coincide com a duração da própria acção. Logo a abrir, num apartamento de Nova Iorque onde se vai realizar uma festa, um homem é assassinado; depois, durante a festa, vai desenvolver-se um subtil processo de revelação que desembocará na identificação dos responsáveis pelo crime.
Um lugar-comum muito televisivo, hoje em dia traduzido na celebração beata dos “efeitos especiais”, tenderá a exaltar a proeza técnica de Hitchcock. Claro que é um feito admirável, mas importa observá-lo para além de qualquer tecnicismo. A sensação de continuidade temporal que o filme transmite não é um fim em si mesmo, antes um dispositivo para expor o próprio processo mental de decifração dos factos.
E com um pormenor que está longe de ser secundário: o “suspense” (o célebre “suspense” com que tantas vezes se define Hitchcock sem pensar o que tal significa) não decorre um efeito final de “surpresa” — e o criminoso é... Bem pelo contrário: sabemos desde o primeiro minuto quem é responsável pelo crime, mas isso não impede que se instale uma tensão que resulta das diferenças de saber entre espectador e personagens — é uma belíssima lição narrativa e, à sua maneira, moral.

sábado, fevereiro 27, 2016

Jesus segundo o Bloco de Esquerda

1. O Bloco de Esquerda lançou uma campanha nacional para assinalar o dia 10 de Fevereiro em que o Parlamento "terminou a discriminação na lei da adoção”. Dia histórico, não tenhamos dúvidas, marco importante (ainda que apenas legislativo) na criação de novas formas de entendimento e vivência das relações humanas, e no respeito pelas diferenças individuais, sejam elas de que natureza forem.

2. Como é sabido, o referido cartaz — encimado pelo lema "Jesus também tinha 2 pais" — tem suscitado muitas reacções negativas, inclusive de personalidades do BE ou a ele historicamente ligadas: Marisa Matias, por exemplo, considerou-o "um erro"; por seu lado, Miguel Vale de Almeida escreveu: "Não percebo a razão de uma campanha para celebrar algo já conquistado (e com a Procriação Medicamente Assistida ainda pendente). Também não percebo o recurso à religião, que sempre se defendeu, e bem, ter de estar fora do debate" [DN].

3. Em boa verdade, a onda de indignação que se tem manifestado em sectores ideológicos muito diversificados é mais um exemplo da cegueira dominante, detectável em todos os sectores políticos, face ao funcionamento mediático da nossa sociedade. Acima de tudo, é espantoso que não se compreenda que a consolidação eleitoral do BE tem passado por uma hábil gestão da sua visibilidade pública, fenómeno a que já aqui chamei "o mediatismo do Bloco de Esquerda" — no limite mais delirante, qualquer discreta convulsão que aconteça na sociedade portuguesa pode sempre ser noticiada através de algum sinal vindo do BE. Para tal estratégia, mesmo não escamoteando a salutar demarcação individual de algumas personalidades, é indiferente a instrumentalização do imaginário católico — ou de qualquer outra referência histórica e cultural.


4. Nesta perspectiva, importa também dizer que o objectivo não é "ofender", pelo menos no sentido em que os que se consideram ofendidos colocam o problema. Aquilo a que assistimos é ao exercício de uma banal lógica de marketing que, evidentemente, não pensa na sensibilidade dos outros (a começar pela sensibilidade religiosa), nem sequer está preocupada com qualquer tipo de verosimilhança discursiva. Alguma vez Jesus foi personagem de qualquer reflexão sobre a adopção gay? Não importa... Também não consta que Albert Einstein tenha sido um militante das pastilhas de mentol — basta associar uma coisa a outra e assistir ao espectáculo social que isso desencadeia. Aliás, como sempre acontece, o espectáculo prolonga-se através das condenações do cartaz, nomeadamente de personalidades da Igreja [DN], cuja legitimidade não está em causa, embora, uma vez mais, se evite qualquer reflexão crítica sobre um espaço "social" em que prevalece a ideologia do Facebook — quanto mais efeitos mediáticos se desencadearem, multiplicando links ou alargando circuitos, melhor.

5. Esta é uma conjuntura que, também uma vez mais, não pode ser separada do simplismo da dicotomia "esquerda/direita" e, muito concretamente, do modo como Bloco de Esquerda e Partido Comunista secaram a identidade ideológica do Partido Socialista. Aliás, a consagração de uma ideia banalmente voluntarista da "esquerda", enraizada num "acordo de governação" que se faz do desconhecimento mútuo dos respectivos parceiros (Jerónimo de Sousa chegou mesmo a declarar, serenamente, que nas negociações com o PS nunca o PCP se reuniu com o BE), está a contribuir, com apoteótica indiferença, para a reorganização ideológica das forças de "direita" — entenda-se: para o retorno de uma ideia forte, menos crispada e mediaticamente mais ágil, de "direita".

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

"O Filho de Saul" — memória e humanismo

O FILHO DE SAUL (2015), de László Nemes
Com o filme húngaro O Filho de Saul, relança-se a exigência crítica, histórica e simbólica de representar o Holocausto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Fevereiro), com o título 'Filme húngaro evoca o inferno de Auschwitz'.

Como representar o Holocausto? A pergunta está longe de ser exclusiva do universo cinematográfico. Mas é um facto que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, os mais diversos filmes, de origens e sensibilidades muito diferentes, se têm confrontado com essa interrogação, ao mesmo tempo ética e estética: como utilizar as imagens (e os sons) para preservar a memória do sistema de aniquilamento organizado pelos nazis e dos horrores vividos nos campos de concentração?
O mínimo que se pode dizer de um filme como O Filho de Saul é que tem sido uma peça fundamental no relançamento de tal interrogação. O seu impacto no Festival de Cannes do ano passado e também o facto de estar na linha da frente para arrebatar o Oscar de melhor filme estrangeiro (tendo já ganho o Globo de Ouro da mesma categoria) transformaram esta longa-metragem de estreia do húngaro László Nemes num dos títulos incontornáveis da temporada 2015/16.
O Filho de Saul coloca-se “a meio caminho” entre duas das mais elaboradas abordagens do universo concentracionário construído pelos nazis. Por um lado, temos a pedagogia de Claude Lanzmann que, através de documentários como Shoah (1985) ou O Últimos dos Injustos (2013), tem defendido a necessidade de passar, não pelas imagens (fotografia ou filme) dos campos e dos seus milhões de vítimas, mas sim pelo testemunho dos que, directa ou indirectamente, possuem uma experiência real de tão trágica conjuntura. Por outro lado, deparamos com a contundência narrativa de Steven Spielberg, em A Lista de Schindler (1993), revisitando as memórias do Holocausto através de uma personagem atípica, Oskar Schindler (1908-1974), industrial alemão, membro do partido nazi, que salvou mais de um milhar de judeus, mantendo-os a trabalhar nas suas instalações fabris.

A rotina da morte

László Nemes desenvolve o seu filme a partir de uma perturbante opção narrativa. Trata-se de encenar o dia a dia no campo de Auschwitz-Birkenau, em 1944, com a terrível rotina dos prisioneiros que chegam em comboios para, num tempo mais ou menos breve, serem mortos e reduzidos a cinzas nos fornos crematórios. Os sinais de tão dantesco quotidiano passam por uma personagem muito concreta: Saul Ausländer (notável composição de Géza Röhrig, actor que é também poeta e professor), membro do Sonderkommando do campo.
O Sonderkommando era constituído por prisioneiros judeus forçados a executar as tarefas de extermínio, desde a organização dos que chegam até ao transporte de cadáveres — os nazis mantinham-nos nessas tarefas durante algum tempo, acabando por inscrevê-los também na lista de pessoas a abater. Assim, tudo aquilo que vemos e ouvimos (os sons são essenciais na apresentação de situações que não chegam a ser visíveis) decorre do olhar de Saul.
Num dispositivo que tem algo de “reportagem”, a câmara segue obsessivamente a figura de Saul (muitas vezes correndo atrás dele, “colada” às suas costas). De tal modo que, muitas vezes, o horror pode ser expresso “apenas” através do som de um cadáver, desfocado num canto da imagem, a ser arrastado pelo chão. Tudo isto adquire uma dimensão ainda mais perturbante quando Saul depara com o cadáver do seu próprio filho — a partir daí, a personagem central vai tentar por todos os meios que ele não seja enviado para os fornos, procurando garantir-lhe a dignidade de uma sepultura.

Imaginar o inferno

O Filho de Saul consegue consumar uma vontade, de uma só vez estética e política, que o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, definiu assim: “Para saber é preciso imaginar-se. Devemos tentar imaginar o que foi o inferno de Auschwitz no Verão de 1944. Não invoquemos o inimaginável. Não nos protejamos dizendo que de qualquer forma não o podemos imaginar — o que é verdade —, já que não poderemos imaginá-lo inteiramente. Mas devemos imaginá-lo, esse imaginável tão pesado. Como uma resposta que se oferece, como uma dívida contraída para com as palavras e as imagens que alguns deportados arrancaram, para nós, ao pavoroso real da sua experiência.”
Estas palavras estão na abertura do livro Imagens Apesar de Tudo (editora Kkym, Lisboa, 2012), referência tanto mais justificada quanto as imagens a que Huberman se refere — quatro fotografias obtidas por elementos do Sonderkommando, testemunhando o processo de extermínio em Auschwitz — constituem uma inspiração muito directa para uma cena fulcral de O Filho de Saul. Vemos, assim, o próprio Saul envolvido na ocultação de uma câmara fotográfica no interior do campo e, depois, os angustiados momentos em que um outro prisioneiro consegue fotografar uma fogueira onde estão a ser queimados cadáveres.
Há uma linha simbólica que liga essas fotografias de 1944 a um filme como O Filho de Saul: através do testemunho directo dos prisioneiros ou dos mecanismos da ficção cinematográfica, desenvolve-se o obstinado labor de uma memória que não é legítimo rasurar nem banalizar. Para além das diferenças entre as narrativas (cinematográficas) sobre o Holocausto, importa preservar essa obstinação — estão em jogo a exigência da verdade e o valor do humanismo.

quinta-feira, fevereiro 25, 2016

Lorde canta Bowie

A 36ª edição dos Brit Awards, atribuídos pela indústria discográfica britânica, incluíu uma bela homenagem a David Bowie: depois de um medley de temas emblemáticos de Bowie, interpretados por músicos que o acompanharam ao longo de muitos anos, Lorde interpretou Life on Mars? [video] com especial depuração e emoção.
No palmarés, James Bay e Adele foram consagrados como melhores artistas britânicos do ano — palmarés no site oficial dos Brit Awards.

quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Um Quarto onde cabe o mundo todo (2/2)

Experiência cinematográfica e humana absolutamente fascinante: Quarto, de Lenny Abrahamson, com Brie Larson e Jacob Tremblay, reconcilia-nos com o realismo e a transcendência que o cinema pode envolver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Fevereiro), com o título 'Elogio do espaço e do tempo'.

[ 1 ]

Não sei se, ao realizar o seu filme Quarto, Lenny Abrahamson pensou na obra-prima de Robert Bresson, Fugiu um Condenado à Morte (1956), sobre um resistente francês numa prisão nazi. Em qualquer caso, apetece dizer que há qualquer coisa de “bressoniano” no trabalho de Abrahamson: o reduzido espaço onde Jo e Jack estão retidos apresenta-se como um cenário que importa não descrever de um ponto de vista exterior, mas sim habitar a partir do interior, em estreita cumplicidade com as limitações impostas ao olhar das personagens.
Nestes tempos em que, muitas vezes, os efeitos digitais parecem querer convencer-nos que o espaço não passa de um factor anódino e intermutável, Quarto devolve-nos a intensidade única do cinema como arte de colocar em cena as tensões entre corpos e cenários. A noção de espaço que a mãe ensina ao filho acaba por evoluir também no sentido de desvendar a duração dos gestos e comportamentos humanos. Afinal de contas, lá fora, nesse lá fora que Jack vai aprender que existe, será possível viver com outros ritmos e rituais, bem diferentes dos que decorrem da sua clausura. Porquê? Porque a expansão do espaço liberta também a pluralidade do tempo.
Não há nada de mais radical em cinema. A saber: regressar às noções mais clássicas — o espaço, o tempo — e mostrar como nenhuma delas é um dado adquirido, antes o resultado de um laborioso olhar sobre o mundo e as suas aparências, as relações humanas e os seus enigmas. Além do mais, devolvendo aos actores a dignidade que alguns formatos televisivos lhes querem roubar. E se Brie Larson é genial, convém não esquecer o pequeno e assombroso Jacob Tremblay — como se prova, é possível filmar uma criança, não como uma marioneta mais ou menos pitoresca, mas sim um ser vivo, singular e comovente.

terça-feira, fevereiro 23, 2016

Rosamund Pike + Massive Attack

Digamos, para simplificar, que esta é, desde já, uma das proezas a figurar no top de telediscos de 2016: Voodoo in My Blood, dos Massive Attack, chega-nos através de uma enigmática aventura protagonizada por Rosamund Pike [Gone Girl], dir-se-ia entre uma verdade puramente física e a abstracção de um robot, contracenando com uma esfera que a quer seduzir, destruir, ou talvez as duas coisas ao mesmo tempo... A realização é de Ringan Ledwidge, pertencendo a canção ao EP Ritual Spirit, recentemente editado — a banda deverá lançar outro EP na Primavera, estando previsto um novo álbum para o final do ano.

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Erwin Olaf — a moda no museu

ERWIN OLAF
Ymre Stiekema usando um vestido de 1759
Em Amsterdão, até 16 de Maio, o Rijksmuseum apresenta a exposição Catwalk, dedicada à moda tal como os holandeses a viveram (e usaram) entre 1625 e 1960. Organizada pelo fotógrafo Erwin Olaf, a exposição foi também pretexto para a realização de um breve, mas admirável, filme promocional — são imagens que cruzam a herança do passado e o experimentalismo do presente.

Edgar Pêra: filmar em 3D (2/2)

Em Lisbon Revisited, Edgar Pêra filma Lisboa a partir das palavras de Pessoa, desafiando os limites correntes do cinema a três dimensões — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Fevereiro), com o título 'A dança da felicidade'.

[ 1 ]

No cinema, como o próprio Edgar Pêra reconhece, a noção de “experimentalismo” pode ser uma armadilha. Acima de tudo, creio que não faz sentido usá-la como caução para definir algo que estaria “à frente” de qualquer outro trabalho rotulado de mais tradicional ou apenas desfrutando de maior evidência mediática. Por mim, confesso, há muitos anos que reconheço em alguns produtos vindos do coração de Hollywood uma invenção e um sentido de risco infinitamente mais ricos que certas “vanguardas” que disfarçam mal o seu academismo e auto-complacência.
Isto para dizer que Lisbon Revisited, seja qual for o rótulo que lhe queiramos colocar, constitui uma fascinante experiência de cinema. A sua revisitação das palavras de Fernando Pessoa atrai uma estranheza (que se entranha, como diria o poeta) capaz de integrar um desarmante efeito de reconhecimento: vamos identificando algumas referências emblemáticas da cidade de Lisboa, ao mesmo tempo que a dança feliz das imagens e dos sons (Pêra é também, à sua maneira, um obsessivo cineasta da escuta) nos projecta num universo alternativo e libertador.
Dizer que Lisbon Revisited desafia as fronteiras convencionais de documentário e ficção, sendo verdade, acaba por ser francamente insuficiente. Porquê? Porque estamos para além de um cinema estruturado por géneros ou temáticas. Este é um objecto cinematográfico consciente da impossibilidade de “reproduzir” o que quer que seja, apostado antes em viver, pensar e repensar o que pode resultar da relação de um olhar humano com a herança de um poeta. Mais ainda: em tal projecto, o 3D não é um “gadget”, mas um genuíno instrumento filosófico: vemos o que dizemos ver ou imaginamos o que julgamos ver? A experiência envolve-nos numa surpresa tecida de serenidade.

domingo, fevereiro 21, 2016

The Prettiots — pop sem preconceitos

Rezam as crónicas que foram uma das revelações da edição de 2015 do festival SXSW, em Austin, Texas: The Prettiots têm uma sonoridade pop, cristalina e sem preconceitos, como imediato bilhete de identidade. Ao mesmo tempo, a aparente ligeireza do empreendimento não exclui, antes parece favorecer, um contido sarcasmo, em que ironia e dramatismo parecem ser duas faces da mesma moeda — no tema Suicide Hotline, dão-se mesmo ao luxo de ter como refrão: I'm not fine but I'll be okay / I probably won't kill myself today.
Enfim, as novaiorquinas The Prettiots resultam de uma aliança, no mínimo, atípica: Kay Kasparhauser (voz + cavaquinho), Lulu Landolfi (baixo) e Rachel Trachtenburg (bateria) editaram o seu primeiro álbum, Fun's Cool, com o à vontade de quem convoca a nostalgia para cantar em tom de divagação utópica. Por outras palavras: não são um incidente, vieram para ficar.
Aqui ficam três pistas para conhecer The Prettiots: os telediscos de Boys (I Dated In Highschool) e Move to L.A. e a performance na NPR, numa edição dos 'Tiny Desk Concerts'.





Umberto Eco (1932 - 2016)

FOTO: Sarah Lee / The Guardian
Personalidade emblemática da cultura italiana e europeia, Umberto Eco faleceu no dia 19 de Fevereiro, em sua casa, em Milão — contava 84 anos.
Filósofo, ensaísta, crítico literário, homem "renascentista" do cruzamento de todos os saberes e culturas, Eco tornar-se-ia uma figura popular através do seu romance O Nome da Rosa (1980), transformado em filme, em 1986, com direcção de Jean-Jacques Annaud. Embora tivesse publicado dezenas de ensaios sobre os mais variados domínios do conhecimento, cultivou o romance até final, tendo publicado Número Zero, sobre jornais e jornalistas, em 2015.
Entre os títulos mais conhecidos da sua vastíssima bibliografia, incluem-se: Obra Aberta (1962), reflectindo sobre um mundo em que todas as linguagens se cruzam ou podem contaminar; Apocalípticos e Integrados (1964), pressentindo as transformações decorrentes da proliferação dos media; História do Feio (2007), percorrendo as memórias históricas do outro lado da beleza. Foi, no dizer de Eduardo Lourenço, um "grande humanista" que, com o seu labor, "pressionava o próprio humanismo".

>>> Entrevista sobre Número Zero, no programa do jornalista Edney Silvestre, da TV Globo.


>>> Obituário no New York Times.
>>> Site da Scuola Superiore di Studi Umanistici sobre Umberto Eco.
>>> Entrevista em The Paris Review.

sábado, fevereiro 20, 2016

Um automóvel e uma lágrima

É bem verdade que os anúncios de automóveis insistem em apresentar-nos o seu produto como se, subitamente, só houvesse um automóvel no planeta Terra — o do próprio anúncio, claro... Mas há que reconhecer que, por vezes, as fantasias mais delirantes podem tornar-se estranhamente envolventes. É o caso desta promoção americana da Audi, com assinatura da agência Venables Bell & Partners — o subtítulo podia ser 'Aventura de uma lágrima'.

Harper Lee (1926 - 2016)

Autora de To Kill a Mockinbird, clássico da literatura americana do século XX, Harper Lee faleceu na sua cidade natal, Monroeville, Alabama, durante o sono, a 19 de Fevereiro — contava 89 anos.
Lee é um caso extraordinário de uma autora que, através de um único livro, adquiriu um lugar central na história da literatura dos EUA: To Kill a Mockinbird (Mataram a Cotovia) nasceu da sua observação de situações de discriminação dos negros no Sul dos EUA — publicado em 1960, foi distinguido com um Pulitzer em 1961, dando origem, em 1962, ao filme homónimo de Robert Mulligan, produzido por Alan J. Pakula e protagonizado por Gregory Peck e Brock Peters. Foi em meados de 2015 que surgiu o segundo livro de Lee, Go Set a Watchman (Vai e Põe Uma Sentinela), na verdade uma "continuação" do primeiro romance, embora escrita algum tempo antes.

>>> Notícia do lançamento de Go Set a Watchman na CBS.


>>> Obituário no New York Times.

Curta portuguesa premiada em Berlim

Balada de um Batráquio, de Leonor Teles, ganhou o Urso de Ouro para a melhor curta-metragem da 66ª edição do Festival Internacional de Berlim. Com chancela da produtora Uma Pedra no Sapato, o filme expõe comportamentos xenófobos em relação a membros da etnia cigana em Portugal.
O vencedor do certame foi o documentário italiano Fuocoammare, de Gianfranco Rosi, sobre a vida na ilha de Lampedusa, com os muitos refugiados que aí têm encontrado acolhimento — Rosi venceu em Veneza, em 2013, com Sacro Gra.

>>> Teaser de Balada de um Batráquio e trailer de Fuocoammare.




>>> Palmarés completo no site oficial da Berlinale.

sexta-feira, fevereiro 19, 2016

A IMAGEM: Arno Frugier, 2016

ARNO FRUGIER
Après Swim / The Line
2016

Andrzej Zulawski (1940 – 2016)

FOTO: Sergiusz Peczek / New York Times
Cineasta polaco fascinado pelas fronteiras do comportamento humano, Andrzej Zulawski faleceu no dia 17 de Fevereiro, em Varsóvia, vítima de cancro — contava 75 anos.
Depois de estudar cinema em França, Zulawski regressou à Polónia para trabalhar como assistente de Andrzej Wajda, em Samson (1961). Logo com os seus primeiros títulos como realizador, Trzecia Czesc Nocy (1971) e Diabel (1972), foi proibido pelas autoridades comunistas, acabando por se exilar em França. O Importante é Amar (1975), com a prodigiosa Romy Schneider, surgiria como o contundente manifesto da sua visão do mundo: uma deambulação pelos enigmas do desejo e da pulsão amorosa, de acordo com uma lógica em que real e surreal se contaminam de modo exuberante. As suas personagens femininas simbolizaram tal démarche, tendo proporcionado extraordinárias performances a Isabelle Adjani (Possessão, 1981), Valérie Kapriski (A Mulher Pública, 1984) ou Sophie Marceau (A Raiva do Amor, 1985), com quem manteve uma relação de dezasseis anos, terminada em 2001.
Ausente das salas escuras desde A Fidelidade (2000), com Sophie Marceau, reaparecera recentemente através de uma produção de Paulo Branco, Cosmos (2015), que lhe valeu um prémio de realização no Festival de Locarno. Também com o produtor português, estava a preparar, nos Açores, Os Trabalhadores do Mar, segundo Victor Hugo.

>>> Trailer de O Importante É Amar.


>>> Obituário no New York Times.
>>> Site dedicado a Andrzej Zulawski.

Willie Nelson canta Gershwin

Pergunta de algibeira: a que podem soar as canções de George e Ira Gershwin interpretadas por um respeitável senhor de 82 anos? Agora, já temos a resposta, graças ao belíssimo tributo Summertime: Willie Nelson Sings Gershwin.
Sem artifícios pomposos, respeitando o valor intrínseco de uma colecção de onze standards, de But Not for Me a Summertime, Willie Nelson propõe um álbum de serena e sofisticada celebração — ele que, recorde-se, foi distinguido em 2015 com o Prémio Gershwin, atribuído pela Biblioteca do Congresso dos EUA. Conta, em particular, com a competência dos produtores Buddy Cannon e Matt Rollings, e a cumplicidade de Cyndi Lauper e Sheryl Crow, respectivamente em Let's Call the Whole Thing Off e Embraceable You.
Informações sobre o álbum podem encontrar-se, por exemplo, na Rolling Stone. Entretanto, a sua escuta integral está disponível na NPR. Aqui fica Someone to Watch Over Me.


>>> Site oficial de Willie Nelson.

Memórias cinematográficas do Chile

O Chile visto e revisto, literalmente, a partir das estrelas, num singular desafio documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Fevereiro), com o título ''Memórias que vêm do Chile'.

A obra cinematográfica do chileno Patrício Guzmán (n. 1941) está marcada pelas memórias de Salvador Allende, do golpe de Estado de Augusto Pinochet que derrubou o seu governo democrático e, enfim, da sangrenta ditadura militar (1973-1990) que se seguiu. Ele é, aliás, autor de um título de referência sobre todas essas convulsões históricas, A Batalha do Chile (1975-79), bem como do documentário Salvador Allende (2004).
O lançamento dos dois filmes mais recentes de Guzmán — Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Nácar (2015) — é um acontecimento tanto mais importante quanto neles encontramos uma invulgar proposta de interacção entre o pensamento científico e o conhecimento da história.
A sua maior limitação estrutural decorrerá da aplicação, sóbria sem dúvida, mas académica, de uma voz off linear e “descritiva”. Em todo o caso, pode também argumentar-se que a presença dominadora dessa voz (do próprio Guzmán) constitui um elemento fundamental para não projectar os filmes numa qualquer abstracção “teórica”, conferindo-lhes as marcas de uma autobiografia em permanente processo de prospecção, interrogação e enriquecimento.
Nostalgia da Luz começa por referir a investigação do cosmos a partir dos observatórios situados no deserto de Atacama: a descoberta das galáxias mais longínquas tem como espelho dramático os sinais do passado conservados no solo árido, desde as minas do séc. XIX que Pinochet transformou em campo de concentração até aos restos mortais das vítimas da ditadura. A obstinada inventariação de todas as recordações corresponde, afinal, a um entendimento visceral da experiência humana: ”Aqueles que têm memória conseguem viver no frágil momento presente. Aqueles que não a têm não vivem em lado nenhum.”
A água é a matéria central de O Botão de Nácar. Sublinhando o facto de o Chile ser um dos países com maior extensão costeira (mais de 4 mil quilómetros), Guzmán recorda os povos que viviam pacificamente como “nómadas da água”, tendo sido dizimados, em nome da “civilização”, pelos colonos do séc. XIX. A sua evocação desemboca nas medidas de Allende, no sentido de devolver aos sobreviventes as terras dos seus antepassados, e depois nas práticas da ditadura, lançando ao mar muitas das suas vítimas.
O cinema de Guzmán existe, assim, comandado por um desejo de história que está longe de se esgotar na acumulação de sinais mais ou menos “simbólicos” do passado. E não apenas porque nele encontramos algumas pistas essenciais para acedermos à complexidade da história do Chile. Também porque a sua capacidade de ligar o infinitamente grande e o infinitamente pequeno relança as potencialidades do clássico olhar documental. Ele próprio o diz, de forma sugestiva, na narrativa de O Botão de Nácar: “Um oceanógrafo ensinou-me que a actividade de pensar se assemelha ao oceano. As leis do pensamento são as mesmas que as da água, sempre disposta a moldar-se a tudo.”

quinta-feira, fevereiro 18, 2016

A IMAGEM: Hart + Lëshkina, 2016

Hart + Lëshkina
'Opening Ceremony'
2016

Um Quarto onde cabe o mundo todo (1/2)

Brie Larson e Jacob Tremblay
Experiência cinematográfica e humana absolutamente fascinante: Quarto, de Lenny Abrahamson, com Brie Larson e Jacob Tremblay, reconcilia-nos com o realismo e a transcendência que o cinema pode envolver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Fevereiro), com o título 'A história de um Quarto onde cabe o mundo todo'.

Até que ponto um ser humano enclausurado, impedido de qualquer relação com o mundo exterior, consegue resistir? Na mitologia clássica do cinema, a pergunta poderia servir para descrever um tradicional filme de terror, centrado nas vítimas de uma personagem mais ou menos monstruosa. E é bem verdade que a nova realização de Lenny Abrahamson, Quarto, nos conta a odisseia de duas personagens — a jovem Jo e o seu filho Jack — que vivem aprisionadas num espaço reduzido, angustiante e claustrofóbico. Mas não é um filme de terror — é mesmo um objecto raro e fascinante que desafia qualquer definição convencional.
Aliás, os problemas de identificação de Quarto (título original: Room) começam na sua nacionalidade. Com quatro nomeações para os Oscars — incluindo melhor filme e melhor realizador —, é natural que seja automaticamente encarado como um produto americano. Mas não: apesar de a sua distribuição internacional estar assegurada por uma companhia sediada em Los Angeles (A24), trata-se de uma coprodução entre a Irlanda e o Canadá. Aliás, tanto Abrahamson como Emma Donoghue, autora do romance original (editado entre nós pela Porto Editora, com o título O Quarto de Jack), são irlandeses — a adaptação é da própria Donoghue, nomeada para o Oscar de melhor argumento adaptado.
A acção começa no dia em que Jack celebra cinco anos. Apesar da evidente pobreza do ambiente, dir-se-ia que estamos perante um ritual tão típico quanto universal: mãe e filho assinalam a data como uma espectacular barreira transposta na vida de Jack. É certo que não há velas para o bolo, mas isso não anula a vibração da cerimónia. Em poucos instantes, apercebemo-nos que Jo e Jack não podem sair do seu minúsculo quarto: para resistir à crueldade da sua prisão, a mãe foi ensinando o filho a encarar aquele austero quadrado como... o mundo todo.
Daí a originalidade da linguagem que prevalece na sua intimidade. O quarto não é ocupado nem entendido como uma sala de uma casa, mas sim como uma entidade esplendorosamente autónoma (é apenas uma austera cabana colocada no fundo de um quintal, mas nessa altura Jack ainda não sabe o que aconteceu). Tal como Donoghue escreve no romance, tudo se passa, não num qualquer quarto, mas no Quarto (com maiúscula), território cuja pequenez real se confunde com a imensidão simbólica de um país ou um planeta. O mesmo, aliás, acontece, com os objectos: a Planta, o Lavatório ou a Clarabóia (sempre com maiúsculas) são “personagens” de um universo que parece desligado de tudo o resto, até porque o que aparece na Televisão é tratado como fenómeno de magia.
Podemos dizer tudo isto da forma mais básica: estamos perante uma radical história de amor. De uma mãe que ensina ao filho a linguagem certa para resistir à sua clausura e, depois, colocar em prática um visceral desejo de fuga. E também de um filho que, nas comoventes singularidades dos seus cinco anos (“para a semana, quando eu fizer seis anos...”), é tanto o aluno aplicado da mãe como o seu providencial anjo da guarda.
Escusado será dizer que nada disto acontece sem um minucioso e exigente trabalho de representação dos dois invulgares intérpretes principais: Brie Larson no papel da mãe (é ela que tem a quarta nomeação do filme e, em Hollywood, quase todos acreditam que receberá o Oscar de melhor actriz) e, assumindo a frágil e heróica personagem de Jack, o talentoso Jacob Tremblay (tinha oito anos quando da rodagem do filme, nos meses finais de 2014).
Lenny Abrahamson
Abrahamson parece ter a vocação de expor os seus actores a situações extremas, envolvendo desafios pouco comuns. Basta recordar o exemplo do seu filme anterior, Frank (2014), em que Michael Fassbender interpretava o líder de uma banda rock que usava uma cabeça de cartão (literalmente...), não apenas nas performances públicas, mas em todas as situações do dia a dia.
Tocado pelas emoções do romance de Donoghue (a primeira edição surgiu em 2010), Abrahamson arriscou escrever à autora, manifestando o seu interesse em realizar um filme a partir do livro. A concentração de uma parte da acção num pequeno espaço fechado não lhe surgia como uma limitação: “O Quarto é pequeno em dimensão, mas fantasticamente rico em significados, densidade de acontecimentos e espaço ritualizado.” Encarava mesmo esse espaço como uma paisagem de inusitada variedade: “O Quarto integra os mais diversos cenários — debaixo da mesa, onde Jack vê o rato, dentro do armário, a cama, a banheira... Para Jack, cada coisa é um mundo à parte.”
Num misto de didactismo e contida poesia, o filme expõe a capacidade de resistência a uma situação criada para anular a própria vitalidade humana — é uma saga sobre a verdade visceral do amor e a intensidade das suas linguagens. Em última instância, Quarto conta-nos uma história de libertação com que o próprio cinema celebra a arte de contar histórias.

quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Manuel Maria Carrilho/Bárbara Guimarães
— o horror tablóide

A capa aqui reproduzida é apenas um exemplo, porventura dos mais "suaves", dos horrores do jornalismo tablóide que invadiu a vida dos portugueses. O conflito entre Manuel Maria Carrilho e Bárbara Guimarães tem levado mesmo algumas publicações a explorarem, de forma violentamente desumana, as declarações em tribunal do filho do casal.
Infelizmente, no interior do próprio jornalismo, são poucos os que manifestam a mais básica sobriedade no sentido de denunciar tais desmandos [que se manifestam muito para além da abordagem da vida dos "famosos" — lembremos a reacção dos jornais desportivos portugueses ao atentado na maratona de Boston]. Isto sem esquecer que há quem, modelarmente, saiba defender os seus direitos e não pactuar com a irresponsabilidade jornalística.
Hoje, nas páginas do Diário de Notícias, o jornalista Ferreira Fernandes volta a ser uma exemplar excepção (citando, aliás, o que Isabel Stilwell escreveu sobre o mesmo assunto) — vale a pena ler: 'Garoto de 12 anos foi traído e é assunto nosso'.

terça-feira, fevereiro 16, 2016

"Ficheiros Secretos": Mulder, Scully e nós

Ficheiros Secretos regressou fiel ao seu próprio espírito — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Fevereiro), com o título 'Na companhia de Mulder e Scully'.

A décima temporada de Ficheiros Secretos (Fox), quase catorze anos passados sobre o fim da temporada anterior, constitui um caso exemplar de um conceito que consegue resistir ao tempo. Dir-se-ia que, em 2002, as aventuras de Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson) tinham terminado sem continuação possível, até porque a série gerou uma multidão de descendentes (em televisão e cinema), lidando com os temas dos extra-terrestres e, convenhamos, nem sempre da forma mais interessante.
Perante a nova temporada de seis episódios (escrevo depois de ter visto os primeiros três), o menos que se pode dizer é que o criador Chris Carter — desta vez assumindo também a realização dos episódios nºs 1, 5 e 6 — soube manter o espírito do original, sem recalcar as marcas do tempo que passou.
As mais incontornáveis dessas marcas estão, obviamente, nos próprios actores: Duchovny e Anderson representam os seus papéis com um misto de desencanto e ironia face a um património de histórias de que eles, mais do que os “aliens” com que se cruzam, são os verdadeiros protagonistas. No terceiro episódio, centrado no encontro com um “monstro” desgastado com a sua encarnação humana, essa pose dramática desliza mesmo, com deliciosa felicidade, para um exuberante burlesco.
Baralham-se, assim, os dados tradicionais do idealismo de Mulder e do realismo de Scully, como se as personagens se questionassem sobre o lugar que ainda podem ocupar num mundo cujo cinismo dominante dispensa a nostalgia do seu heroísmo.
A nova temporada de Ficheiros Secretos reforça mesmo a perturbação simbólica que sempre circulou pela série: mais do que os seres de outras galáxias, são alguns humanos que, detendo os poderes da informação e da ciência, vão formatando a nossa visão do mundo. Em boa verdade, Mulder e Scully, mais do que agentes do FBI, são variações tocantes sobre as fragilidades do cidadão comum.

domingo, fevereiro 14, 2016

"The Revenant" vence os BAFTA

The Revenant: o Renascido foi o grande vencedor dos prémios de cinema BAFTA (British Academy of Film and Television Arts), arrebatando, para além do título de melhor filme de 2015, mais quatro prémios, nas categorias de realizador, actor, fotografia e som.
Como se esperava, Brie Larson (Quarto) foi distinguida como melhor actriz. O Caso Spotlight e A Queda de Wall Street ganharam os prémios de argumento (original e adaptado, respectivamente).
Mad Max: Estrada da Fúria foi o segundo filme com maior número de prémios: ganhou os BAFTA das categorias de montagem, caracterização, guarda-roupa e cenografia.

* MELHOR FILME: The Revenant: O Renascido

* MELHOR REALIZADOR: Alejandro Gonzalez Iñárritu (The Revenant: O Renascido)

* MELHOR ACTOR: Leonardo DiCaprio (The Revenant: O Renascido)

* MELHOR ACTRIZ: Brie Larson (Quarto)

* MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO: Mark Rylance (A Ponte dos Espiões)

* MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA: Kate Winslet (Steve Jobs)


>>> Lista completa dos vencedores no site oficial.

sábado, fevereiro 13, 2016

Edgar Pêra: filmar em 3D (1/2)

Em Lisbon Revisited, Edgar Pêra filma Lisboa a partir das palavras de Pessoa, desafiando os limites correntes do cinema a três dimensões — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (10 Fevereiro), com o título '“Os meus filmes não se contam por palavras"'.

Qual é o ponto de partida de Lisbon Revisited? As palavras de Fernando Pessoa ou as imagens da cidade?
Comecei por imaginar uma cidade apocalíptica, sem pessoas, ocupada pelo universo vegetal. A ideia das vozes-fantasma pessoanas surgiu depois, numa segunda fase de rodagem. Daí a grande liberdade da escolha dos textos: não houve uma preocupação de ilustração das palavras de Pessoa ou vice-versa. A complementaridade palavra/imagem/som foi feita de “sincronicidades” propositadamente acidentais durante a montagem. Só houve a preocupação de criar harmonia entre texto, imagem e banda sonora. Os fantasmas não narram o que vêm, exibem as suas obsessões.

Como é que fica estabelecida a estrutura final do filme? Em particular, como são tomadas as decisões para manipular as imagens?
A primeira grande decisão de manipulação/montagem foi a de inverter, em diferentes matizes, as cores das imagens filmadas durante o dia e manter o foto-realismo das imagens da noite. Assim, à noite, o Real assoma-se, e de dia só existem imagens-fantasma. A divisão em capítulos com títulos pessoanos, cria, a meu ver, uma estrutura mais livre. O grande desafio foi criar algo que não aparente ser programado, a acontecer em tempo real e sob um prisma trans-realista. Em vez de um Delírio em Las Vegas é um Delírio em Lisboa, como já li numa crítica italiana, quando o filme estreou em Locarno. Prefiro o termo delirante a psicadélico, por exemplo.

Aceita que se diga que o seu cinema é experimental? Porquê?
Tenho dificuldade em aceitar o termo experimental, que é tendencialmente uma forma de rotular tudo o que não se adapta nem à lógica de Hollywood nem à lógica do “cinema de autor”, o que faz com que esse de cinema permaneça longe das salas. Faço muitas experiências antes de filmar e nesse sentido aproximo-me de Hollywood, que faz inúmeros testes antes da rodagem. No meu caso, os testes podem prolongar-se até à montagem. Mas o filme não é um exercício de laboratório. No entanto, se substituíssemos experimental por experiencial, já não me oporia a esse termo. Pretendo que os meus filmes sejam algo de indizível, que não se conta por palavras. É preciso experienciá-los. Mas não tenho qualquer problema em fazer um filme-romance, desde que haja dinheiro (aliás, tenho na gaveta muitos guiões rejeitados). Senão fico-me pela cine-poesia.

Quais são (ou seriam) as boas condições de difusão de um filme como Lisbon Revisited? A evolução do mercado tem favorecido a diversidade, em particular no que se refere ao cinema português?
Há sempre um problema quando se filma em 3D, que é a escassez de salas equipadas. Lisbon Revisited foi auto-financiado, sem os apoios imprescindíveis do ICA (o projecto foi recusado). No entanto, conseguimos um apoio da CML e da Casa Fernando Pessoa, que nos permitiu organizar uma exposição de fotografias anaglíficas 3D e uma instalação, que prolonga o filme. As fotografias anaglíficas são à primeira vista bidimensionais, mas como que por magia transformam-se em objectos tridimensionais. Estou muito satisfeito que a Casa da Liberdade acolhesse a exposição (que inaugurará dia 17).

Como espectador, que filme ou filmes o impressionaram mais nos últimos tempos? E porquê?
Sou espectador das minhas imagens (e sons) uma parte substancial do dia, e sobra pouco tempo para ir ao cinema. Mas os filmes vêm ter a minha casa sob a forma de séries ditas televisivas. A última que vi com extremo agrado foi a primeira temporada de Fargo. Há um travelling que acompanha do exterior de um edifício uma matança em off, que é do melhor cinema que vi nos últimos tempos.

St. Vincent refaz canção dos Stones

Lembram-se desse fenómeno de hiper-romantismo que era Eu Sou o Amor (2009), do italiano Luca Guadagnino? O mais recente filme de Guadagnino, A Bigger Splash (2015), inclui uma admirável versão de Emotional Rescue, dos Rolling Stones (tema título do 15º álbum de estúdio da banda, lançado em 1980), cantada pela sempre rigorosa Anne Clark, aliás, St. Vincent.
Aqui fica a árvore genealógica que se impõe: primeiro, o som da nova versão; depois, o trailer do filme; enfim, o original.