O Chile visto e revisto, literalmente, a partir das estrelas, num singular desafio documental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Fevereiro), com o título ''Memórias que vêm do Chile'.
A obra cinematográfica do chileno Patrício Guzmán (n. 1941) está marcada pelas memórias de Salvador Allende, do golpe de Estado de Augusto Pinochet que derrubou o seu governo democrático e, enfim, da sangrenta ditadura militar (1973-1990) que se seguiu. Ele é, aliás, autor de um título de referência sobre todas essas convulsões históricas, A Batalha do Chile (1975-79), bem como do documentário Salvador Allende (2004).
O lançamento dos dois filmes mais recentes de Guzmán — Nostalgia da Luz (2010) e O Botão de Nácar (2015) — é um acontecimento tanto mais importante quanto neles encontramos uma invulgar proposta de interacção entre o pensamento científico e o conhecimento da história.
A sua maior limitação estrutural decorrerá da aplicação, sóbria sem dúvida, mas académica, de uma voz off linear e “descritiva”. Em todo o caso, pode também argumentar-se que a presença dominadora dessa voz (do próprio Guzmán) constitui um elemento fundamental para não projectar os filmes numa qualquer abstracção “teórica”, conferindo-lhes as marcas de uma autobiografia em permanente processo de prospecção, interrogação e enriquecimento.

A água é a matéria central de O Botão de Nácar. Sublinhando o facto de o Chile ser um dos países com maior extensão costeira (mais de 4 mil quilómetros), Guzmán recorda os povos que viviam pacificamente como “nómadas da água”, tendo sido dizimados, em nome da “civilização”, pelos colonos do séc. XIX. A sua evocação desemboca nas medidas de Allende, no sentido de devolver aos sobreviventes as terras dos seus antepassados, e depois nas práticas da ditadura, lançando ao mar muitas das suas vítimas.
O cinema de Guzmán existe, assim, comandado por um desejo de história que está longe de se esgotar na acumulação de sinais mais ou menos “simbólicos” do passado. E não apenas porque nele encontramos algumas pistas essenciais para acedermos à complexidade da história do Chile. Também porque a sua capacidade de ligar o infinitamente grande e o infinitamente pequeno relança as potencialidades do clássico olhar documental. Ele próprio o diz, de forma sugestiva, na narrativa de O Botão de Nácar: “Um oceanógrafo ensinou-me que a actividade de pensar se assemelha ao oceano. As leis do pensamento são as mesmas que as da água, sempre disposta a moldar-se a tudo.”