O conhecimento dos clássicos do cinema passa (ou pode passar) cada vez mais pelo espaço televisivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 fevereiro), com o título 'Uma lição de "suspense"'.
Descubro uma cópia esplendorosa de A Corda (1948), de Alfred Hitchcock, a passar no TV Cine (próximas exibições: 13 e 14 de Março). E não posso deixar de evocar as singularidades de um filme que envolveu uma proeza que está longe de ser anedótica ou irrelevante.
Na época, Hitchcock estava especialmente fascinado pela possibilidade de construir grandes blocos narrativos, em continuidade (“planos sequência”), tirando partido da duração máxima das bobinas de película (cerca de 10 minutos). Em A Corda, apostou no “impossível”: fazer um filme que fosse, todo ele, em continuidade. Como? Ligando as várias “takes” de modo a escamotear o corte de cada uma delas para o seguinte e, desse modo, criando a ilusão de que tudo acontece de forma contínua.
Na prática, temos um filme cuja duração (cerca de 80 minutos) coincide com a duração da própria acção. Logo a abrir, num apartamento de Nova Iorque onde se vai realizar uma festa, um homem é assassinado; depois, durante a festa, vai desenvolver-se um subtil processo de revelação que desembocará na identificação dos responsáveis pelo crime.
Um lugar-comum muito televisivo, hoje em dia traduzido na celebração beata dos “efeitos especiais”, tenderá a exaltar a proeza técnica de Hitchcock. Claro que é um feito admirável, mas importa observá-lo para além de qualquer tecnicismo. A sensação de continuidade temporal que o filme transmite não é um fim em si mesmo, antes um dispositivo para expor o próprio processo mental de decifração dos factos.
E com um pormenor que está longe de ser secundário: o “suspense” (o célebre “suspense” com que tantas vezes se define Hitchcock sem pensar o que tal significa) não decorre um efeito final de “surpresa” — e o criminoso é... Bem pelo contrário: sabemos desde o primeiro minuto quem é responsável pelo crime, mas isso não impede que se instale uma tensão que resulta das diferenças de saber entre espectador e personagens — é uma belíssima lição narrativa e, à sua maneira, moral.