quinta-feira, fevereiro 18, 2016

Um Quarto onde cabe o mundo todo (1/2)

Brie Larson e Jacob Tremblay
Experiência cinematográfica e humana absolutamente fascinante: Quarto, de Lenny Abrahamson, com Brie Larson e Jacob Tremblay, reconcilia-nos com o realismo e a transcendência que o cinema pode envolver — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Fevereiro), com o título 'A história de um Quarto onde cabe o mundo todo'.

Até que ponto um ser humano enclausurado, impedido de qualquer relação com o mundo exterior, consegue resistir? Na mitologia clássica do cinema, a pergunta poderia servir para descrever um tradicional filme de terror, centrado nas vítimas de uma personagem mais ou menos monstruosa. E é bem verdade que a nova realização de Lenny Abrahamson, Quarto, nos conta a odisseia de duas personagens — a jovem Jo e o seu filho Jack — que vivem aprisionadas num espaço reduzido, angustiante e claustrofóbico. Mas não é um filme de terror — é mesmo um objecto raro e fascinante que desafia qualquer definição convencional.
Aliás, os problemas de identificação de Quarto (título original: Room) começam na sua nacionalidade. Com quatro nomeações para os Oscars — incluindo melhor filme e melhor realizador —, é natural que seja automaticamente encarado como um produto americano. Mas não: apesar de a sua distribuição internacional estar assegurada por uma companhia sediada em Los Angeles (A24), trata-se de uma coprodução entre a Irlanda e o Canadá. Aliás, tanto Abrahamson como Emma Donoghue, autora do romance original (editado entre nós pela Porto Editora, com o título O Quarto de Jack), são irlandeses — a adaptação é da própria Donoghue, nomeada para o Oscar de melhor argumento adaptado.
A acção começa no dia em que Jack celebra cinco anos. Apesar da evidente pobreza do ambiente, dir-se-ia que estamos perante um ritual tão típico quanto universal: mãe e filho assinalam a data como uma espectacular barreira transposta na vida de Jack. É certo que não há velas para o bolo, mas isso não anula a vibração da cerimónia. Em poucos instantes, apercebemo-nos que Jo e Jack não podem sair do seu minúsculo quarto: para resistir à crueldade da sua prisão, a mãe foi ensinando o filho a encarar aquele austero quadrado como... o mundo todo.
Daí a originalidade da linguagem que prevalece na sua intimidade. O quarto não é ocupado nem entendido como uma sala de uma casa, mas sim como uma entidade esplendorosamente autónoma (é apenas uma austera cabana colocada no fundo de um quintal, mas nessa altura Jack ainda não sabe o que aconteceu). Tal como Donoghue escreve no romance, tudo se passa, não num qualquer quarto, mas no Quarto (com maiúscula), território cuja pequenez real se confunde com a imensidão simbólica de um país ou um planeta. O mesmo, aliás, acontece, com os objectos: a Planta, o Lavatório ou a Clarabóia (sempre com maiúsculas) são “personagens” de um universo que parece desligado de tudo o resto, até porque o que aparece na Televisão é tratado como fenómeno de magia.
Podemos dizer tudo isto da forma mais básica: estamos perante uma radical história de amor. De uma mãe que ensina ao filho a linguagem certa para resistir à sua clausura e, depois, colocar em prática um visceral desejo de fuga. E também de um filho que, nas comoventes singularidades dos seus cinco anos (“para a semana, quando eu fizer seis anos...”), é tanto o aluno aplicado da mãe como o seu providencial anjo da guarda.
Escusado será dizer que nada disto acontece sem um minucioso e exigente trabalho de representação dos dois invulgares intérpretes principais: Brie Larson no papel da mãe (é ela que tem a quarta nomeação do filme e, em Hollywood, quase todos acreditam que receberá o Oscar de melhor actriz) e, assumindo a frágil e heróica personagem de Jack, o talentoso Jacob Tremblay (tinha oito anos quando da rodagem do filme, nos meses finais de 2014).
Lenny Abrahamson
Abrahamson parece ter a vocação de expor os seus actores a situações extremas, envolvendo desafios pouco comuns. Basta recordar o exemplo do seu filme anterior, Frank (2014), em que Michael Fassbender interpretava o líder de uma banda rock que usava uma cabeça de cartão (literalmente...), não apenas nas performances públicas, mas em todas as situações do dia a dia.
Tocado pelas emoções do romance de Donoghue (a primeira edição surgiu em 2010), Abrahamson arriscou escrever à autora, manifestando o seu interesse em realizar um filme a partir do livro. A concentração de uma parte da acção num pequeno espaço fechado não lhe surgia como uma limitação: “O Quarto é pequeno em dimensão, mas fantasticamente rico em significados, densidade de acontecimentos e espaço ritualizado.” Encarava mesmo esse espaço como uma paisagem de inusitada variedade: “O Quarto integra os mais diversos cenários — debaixo da mesa, onde Jack vê o rato, dentro do armário, a cama, a banheira... Para Jack, cada coisa é um mundo à parte.”
Num misto de didactismo e contida poesia, o filme expõe a capacidade de resistência a uma situação criada para anular a própria vitalidade humana — é uma saga sobre a verdade visceral do amor e a intensidade das suas linguagens. Em última instância, Quarto conta-nos uma história de libertação com que o próprio cinema celebra a arte de contar histórias.