A revista Egoísta assinalou os 50 anos do Casino Estoril com uma edição especial dedicada ao número "50" — este texto integra essa edição, com o título 'She's not me' [fotogramas do video de Love Don’t Live Here Anymore (1996), dirigido por Jean-Baptiste Mondino].
[1/5] [6/10] [11/15] [16/20] [21/25] [26/30] [31/35] [36/40]
41. Que significa repetir, na Terra (e não no Céu) o nome de Maria, mãe de Jesus? Que espécie de bênção, porventura de assombramento, se transporta num nome que, em boa verdade, sinaliza toda a história ocidental da “mãe” e, mais do que isso, da “mulher”? Madonna cantou a estranha carnalidade do (seu) nome em “Like a Prayer” (1989): “Life is a mistery / Everyone must stand alone / I hear you call my name / And it feels like home.”
42. O teledisco de “Like a Prayer”, dirigido por Mary Lambert, é o mais “religioso” de toda a iconografia de Madonna. Ela encena-se como “madonna” de um homem perseguido, homem que se duplica na figura de um santo numa igreja. O homem é negro, ela é branca e isso não tem nenhuma causa determinista: é assim, porque a representação assim o quis. O desafio é tanto maior quanto, no fim, todos agradecem como num teatro, o pano fecha-se e aparece “The end”.
43. Um dos valores mais sistemáticos e, por assim dizer, mais sistematizados do universo de Madonna é a sua permanente celebração de todos os artifícios. Ou melhor: a certeza de que, mesmo o gesto mais confessional, não exclui, pode mesmo atrair, algum sentido de exibição e pose (“Strike a pose!”, diz-se na letra de “Vogue”). Há nesta atitude uma recusa simples, mas muito política, da falsa transparência de todas as formas de espontaneísmo.
44. Madonna é uma actriz. Não falo da discussão banal sobre os seus “méritos” ou “deméritos” como actriz de cinema (para mim, a sua composição em “Dangerous Game”, filme de 1993 dirigido por Abel Ferrara, bastaria para lhe conferir um lugar na história do cinema). Falo da consciência activa do corpo como instrumento de verdade e representação, existência concreta e pose abstracta. Possuir essa consciência é também conhecer um pouco da sua identidade política.
45. Penso muitas vezes que a consciência da arte de representar (dançar, cantar, ser outro corpo dentro do seu corpo) faltou, irremediavelmente, na história da minha geração. Crescemos com o sentimento do corpo como um factor de medo. Ninguém nos disse para sentirmos isso, mas era isso que nos faziam sentir. Crescemos sem palavras para dizer o corpo, os desejos, as sexualidades. Só nos libertámos um pouco quando vencemos a vergonha do nosso próprio medo. Um pouco.
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41. Que significa repetir, na Terra (e não no Céu) o nome de Maria, mãe de Jesus? Que espécie de bênção, porventura de assombramento, se transporta num nome que, em boa verdade, sinaliza toda a história ocidental da “mãe” e, mais do que isso, da “mulher”? Madonna cantou a estranha carnalidade do (seu) nome em “Like a Prayer” (1989): “Life is a mistery / Everyone must stand alone / I hear you call my name / And it feels like home.”
42. O teledisco de “Like a Prayer”, dirigido por Mary Lambert, é o mais “religioso” de toda a iconografia de Madonna. Ela encena-se como “madonna” de um homem perseguido, homem que se duplica na figura de um santo numa igreja. O homem é negro, ela é branca e isso não tem nenhuma causa determinista: é assim, porque a representação assim o quis. O desafio é tanto maior quanto, no fim, todos agradecem como num teatro, o pano fecha-se e aparece “The end”.
43. Um dos valores mais sistemáticos e, por assim dizer, mais sistematizados do universo de Madonna é a sua permanente celebração de todos os artifícios. Ou melhor: a certeza de que, mesmo o gesto mais confessional, não exclui, pode mesmo atrair, algum sentido de exibição e pose (“Strike a pose!”, diz-se na letra de “Vogue”). Há nesta atitude uma recusa simples, mas muito política, da falsa transparência de todas as formas de espontaneísmo.
44. Madonna é uma actriz. Não falo da discussão banal sobre os seus “méritos” ou “deméritos” como actriz de cinema (para mim, a sua composição em “Dangerous Game”, filme de 1993 dirigido por Abel Ferrara, bastaria para lhe conferir um lugar na história do cinema). Falo da consciência activa do corpo como instrumento de verdade e representação, existência concreta e pose abstracta. Possuir essa consciência é também conhecer um pouco da sua identidade política.
45. Penso muitas vezes que a consciência da arte de representar (dançar, cantar, ser outro corpo dentro do seu corpo) faltou, irremediavelmente, na história da minha geração. Crescemos com o sentimento do corpo como um factor de medo. Ninguém nos disse para sentirmos isso, mas era isso que nos faziam sentir. Crescemos sem palavras para dizer o corpo, os desejos, as sexualidades. Só nos libertámos um pouco quando vencemos a vergonha do nosso próprio medo. Um pouco.
[continua]