quarta-feira, julho 30, 2008

Madonna 50 vezes (6/10)

A revista Egoísta assinalou os 50 anos do Casino Estoril com uma edição especial dedicada ao número "50" — este texto integra essa edição, com o título 'She's not me' [fotogramas do video de Love Don’t Live Here Anymore (1996), dirigido por Jean-Baptiste Mondino].

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6. Desse tempo ficou-me o gosto infantil de, face a uma palavra ambígua de um texto que leio, ou mesmo perante a incerteza daquilo que estou a escrever, ir automaticamente ao dicionário. Esperando alguma gratificação, confesso. Procuro uma espécie de luminosidade abstracta que subtraia as palavras ao rigor da lei, como se fosse possível encontrar um tempo anterior em que as palavras e as coisas coincidiam por inteiro. “Amante”: que ou aquele que ama.

7. A interdição de algumas palavras é uma escola dura, eventualmente nefasta, que nos deixa, no entanto, uma paixão nunca satisfeita pelo rigor do dizer e do escrever. Para compreender isto, talvez seja preciso ter crescido num tempo em que a palavra “merda” não era apenas calão, mas sintoma de degradação social. Uma vez, aos cinco ou seis anos, o meu filho disse-me que sabia uma asneira (“merda”). Eu disse-lhe que era pouco, que eu sabia muitas mais.

8. Em 1994, Madonna lançou uma canção (escrita por Björk) que fala do sentimento contraditório, feito de precisão e desgaste, que as palavras podem arrastar. Chama-se “Bedtime Story” e abre com uma declaração de abandono das palavras: “To-day is the last day that I’m using words / They’ve gone out, lost their meaning / Don’t function anymore.” Quando penso no que é, ou pode ser, uma declaração genuinamente política, penso nestes versos.

9. A palavra política é, hoje em dia, a mais degradada. Falo, não da política como arte superior de dirimirmos as perplexidades do nosso destino colectivo, mas da “cena política”, esse espaço de narcisismo decadente induzido e gerido pelas forças televisivas. A mediocridade instalada arregimentou mesmo uma palavra, “tabu”, para sugerir a suspensão informativa sobre a política. É assim o nosso tempo: políticos que nunca leram Freud e falam de “tabu”.

10. Quando a palavra “tabu” se banaliza, isso quer dizer que o tecido social já não tem noção dos seus próprios interditos: somos levados a crer que “não haver interditos” é a suprema consumação da ideia de felicidade. Em Portugal, isso traduz-se num novo pensamento totalitário que define o pré-25 de Abril como o tempo em que nada aconteceu, porque tudo era interdito. A noção de liberdade passou a confundir-se com a posse do último modelo de telemóvel.

[continua]