segunda-feira, dezembro 31, 2018

10 filmes de 2018 [4]


* NO CORAÇÃO DA ESCURIDÃO, de Paul Schrader (EUA)

Ozu, Dreyer e Bresson são os cineastas que Schrader analisou na sua tese sobre "cinema transcendental", publicada em 1972. Do argumento de Taxi Driver (1976) aos muitos e notáveis títulos que escreveu e realizou, incluindo American Gigolo (1980) ou Mishima (1985), a transcendência manifesta-se no seu trabalho através da vibração da carne, da erotização dos pensamentos e de um perturbante conceito de missão. Neste caso (título original: First Reformed), Ethan Hawke interpreta um sacerdote cuja crença vacilante vai encontrar um desafio complementar na descoberta de um possível ataque terrorista montado por um dos seus paroquianos... Eis um filme descartado pelos mercados que, na sua teia de medo e desejo de redenção, será reconhecido, daqui a uma ou duas décadas, como um dos mais subtis testemunhos sobre o estado afectivo da América de Donald Trump.

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ROMA
TULLY
CUSTÓDIA PARTILHADA

Mrinal Sen (1923 - 2018)

É um dos nomes fundamentais entre os mestres do cinema da Índia: gravemente enfermo há alguns anos, Mrinal Sen faleceu em sua casa, em Bhowanipore, vitimado por um ataque cardíaco — contava 95 anos.
A par de Satyajit Ray (1921-1992), Guru Dutt (1925-1964) ou Ritwik Ghatak (1925-1976), foi um dos autores bengali que, reagindo ao artifício das produções de Bollywood, de raiz hindu, se bateu por um realismo austero, marcado pelas suas convicções marxistas, capaz de dar conta das vidas convulsivas de personagens de origem popular. Entre os seus títulos mais importantes incluem-se Interview (1971), Calcutta 71 (1971), Chorus (1975), À Procura da Fome (1981) ou Kharij (1982) — este último, retratando a reacção hipócrita de uma família à morte de um dos seus criados, valeu-lhe o Prémio do Júri no Festival de Cannes de 1983. A sua obra foi revelada em Portugal, na década de 70, pelo Festival da Figueira da Foz.
A derradeira realização de Mrinal Sen, Aamar Bhuvan/This Is My Land (2002), encena uma história de amor em contexto de grande agitação social e política. Em 2017, foi um dos cineastas convidados a integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

>>> Algumas imagens de Mrinal Sen em rodagem.



>>> Mrinal Sen: An Era in Cinema (2016), documentário de Rajdeep Paul.


>>> Obituário: Hindustan Times + The Hollywood Reporter.
>>> Entrevista de Gary Crowdus a Mrinal Sen na revista Cineaste.
>>> Site sobre Mrinal Sen (mantido pelo seu filho).

10 álbuns de 2018 [3]

* PRISM I, Danish String Quartet

A diluição de fronteiras musicais passou a servir para justificar as maiores banalidades. E também as mais empolgantes experimentações. Que é como quem diz: compreender as relações entre diversos domínios (ou autores) não é um mero jogo de contaminação. Será mesmo o contrário: porque é que, sendo tão diferentes, "eles" comunicam? Consolidando a sua relação com a ECM, o Danish String Quartet dá início, com Prism I, a um projecto de (re)interpretação dos prodigiosos quartetos de cordas que Beethoven compôs no final da sua vida, fazendo-os coabitar com uma fuga de Bach e outras composições de outros autores. Bach e Shostakovich são, assim, convocados para um álbum que desemboca no Quarteto nº 12 de Beethoven: o resultado possui qualquer coisa de celebração ritual, secreta, de indizível luminosidade — eis o video produzido pela ECM com os primeiros minutos da 'Elegia' do Quarteto nº 15 de Shostakovich.

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Neil Young
SOPHIE

"Play with Fire"
— uma memória dos Rolling Stones

O sol dos Stones a iluminar a América pré-Trump?...
Porque não? Veja-se o video promocional da próxima digressão americana dos Rolling Stones ['No Filter']. É, de facto, de fogo que se trata. Literalmente.
Isto porque a imprensa especializada dos EUA começa a especular sobre as canções que a banda poderá integrar (ou excluir...) nos concertos anunciados. Na revista Rolling Stone, Patrick Doyle propõe um curioso flashback, especulando sobre a possibilidade de ser recuperada uma das preciosidades mais "esquecidas" dos anos 60: Play with Fire, canção editada em 1965 como lado B do single The Last Time. Como Doyle recorda, depois de três décadas de silêncio, a canção reapareceu há pouco mais de um ano, a 7 de Setembro de 2017, num concerto em Hamburgo.
Curiosamente, na gravação original apenas participaram dois elementos dos Stones, Mick Jagger e Keith Richards (era o tempo de Brian Jones, Bill Wyman e Charlie Watts), acompanhados por Jack Nitzsche e Phil Spector — eis um registo amador de Hamburgo e a versão de Play with Fire incluída na antologia Singles Collection: The London Years, editada em CD em 2002; em baixo, o video de onde provém a imagem da Estátua da Liberdade.





domingo, dezembro 30, 2018

3 livros de 2018

* JOGOS DE RAIVA, de Rodrigo Guedes de Carvalho (Dom Quixote)

>>> Não há um de nós que, por uma vez que seja, não amaldiçoe o seu destino. Só que o destino é tudo o que temos, mesmo que acreditemos que poderemos mudá-lo. Não se chama destino por acaso.
(pág. 240)

O poder do destino começa, afinal, do facto de se chamar... destino. Assim é a prosa de Rodrigo Guedes de Carvalho, continuando um admirável labor realista que não se esgota nos sinais do quotidiano, longe disso, porque existe, no essencial, como realismo da linguagem.
Encontramos em Jogos de Raiva (o título envolve uma calculada ironia cinéfila) o prolongamento exemplar de experiências que tiveram um desenvolvimento importante no anterior O Pianista de Hotel, expondo as conexões reais, imaginadas ou imaginárias entre elementos de um pequeno colectivo atravessado pelos laços, ilusões e símbolos de uma ideia primitiva de família. Certamente não por acaso há, aqui, alguém que escreve um romance que funciona, de uma só vez, como reflexo simbólico e espelho deformante do próprio romance que estamos a ler. Dito de outro modo: o trabalho literário existe como actividade sistematicamente impelida para questionar os seus poderes e limites, sobretudo num mundo em que, "socialmente" e em "rede", cedemos todos os dias à instrumentalização obscena ou mediática (muitas vezes obscena e mediática) da magia primordial da palavra — essa palavra que o cinema já expôs [Dreyer] na sua dimensão sagrada.
Tudo isto se desenvolve através de uma dramaturgia de durações e lugares cruzados, cada um deles alimentando a ambiguidade que o aproxima do seu contrário. É um método capaz de reconhecer a fragilidade em que passou a existir a tarefa prospectiva do escritor, por oposição à rotina instrumental do escrevente (para utilizarmos a oposição definida por Roland Barthes). Em última instância, é uma via para lidarmos com a complexidade do nosso tempo — português e universal.

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* CENTRE, de Philippe Sollers (Gallimard)

No interior de uma obra imensa e fascinante, os mais recentes romances de Philippe Sollers podem ler-se também como zonas mais ou menos autónomas de um bloco-notas dedicado às maravilhas e monstruosidades do nosso viver: da celebração do poder invencível da palavra até ao reconhecimento da mediocridade triunfante da sociedade "virtual" — leia-se a rede que se desenha através de L' Éclaircie, Médium, Mouvement e Beauté. De novo através de uma festiva brevidade — apenas 128 páginas, há algo da vertigem punk na escrita de Sollers —, Centre é mais um romance exemplar dessa dialéctica vivida entre o esvaziamento do social e o sagrado da relação amorosa. Com uma ambígua sugestão autobiográfica: Sollers é casado com a psicanalista Julia Kristeva, ela própria uma notável romancista (leia-se o prodigioso L'Horloge Enchantée), sendo o escritor/narrador de Centre casado com Nora, psicanalista de profissão... Nada a ver, entenda-se, com a pornografia confessional que nos rodeia — este é um objecto do mais radical pudor.

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* CAOS E RITMO, de José Gil (Relógio D'Água)

Esta é a escrita do corpo e das suas propriedades: porque um corpo possui essa capacidade de "emitir forças (partículas intensivas) que um outro corpo recebe e acolhe como suas" (pág. 26). José Gil percorre um leque de mundividências, dos estudos da criança por Françoise Dolto às propostas de Antonin Artaud em O Teatro e o seu Duplo, passando pela feitiçaria interior à tragédia de Macbeth. Na procura de quê? Trata-se de iluminar essas paisagens tão próximas, por vezes tão dificilmente pensáveis, em que o corpo se faz ideia, ou melhor, em que protagonizamos um renascimento alheio a qualquer formatação religiosa, embora realmente espiritual — porque, no dizer de Artaud, "as ideias não são senão os vazios do corpo." Eis um livro que se pode definir através da classificação tradicional de ensaio filosófico, mas que, no limite, se vai construindo como uma deambulação romanesca por um património de ideias com duas frentes: numa delas, continuamos a lutar por saber o que acontece quando aplicamos a palavra "eu"; na outra, porventura distante, mas complementar, revemo-nos no espaço de uma Europa problemática, assombrada pela sedução do seu equilíbrio instável: utopia ou distopia?

10 filmes de 2018 [3]


* ROMA, de Alfonso Cuarón (México)

Ecrã scope? Preto e branco? É verdade. Produzido e exibido pela Netflix — e também nas salas. O hibridismo da situação tornou-se um quase fetiche do audiovisual em 2018. E por boas razões. Seja como for, importa superar os limites de tal caracterização e destacar o facto de Cuarón se recolocar no interior de um sistema narrativo clássico em que o ecrã (muito grande ou muito pequeno) se vê, lê e imagina como a tela de um mundo cuja perturbação caótica acaba por ser devolvida a uma ordem primordial, poética e animista. Por isso, e muito mais, Roma é uma crónica histórica capaz de celebrar a pulsão realista como a mais bela fantasia artística.

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TULLY
CUSTÓDIA PARTILHADA

Ringo Lam (1955 - 2018)

Figura lendária do "cinema de acção" de Hong Kong, o cineasta Ringo Lam faleceu no dia 29 de Dezembro, depois de ter sido encontrado inanimado por sua mulher — contava 63 anos.
Tentou uma carreira de actor, mas preferiu sair de Hong Kong para, no Canadá, se dedicar ao estudo do cinema. De regresso às origens, estreou-se na realização com Esprit d'amour (1983), crónica romântica sobrenatural que lhe conferiu a dimensão de figura de culto. O seu título mais famoso, o policial City on Fire (1987), protagonizado por Chow Yun Fat (actor que dirigiu com frequência), é habitualmente citado como a influência mais forte de Quentin Tarantino na sua longa-metragem de estreia, Cães Danados (1992). Em contexto americano, veio a assinar três produções com Jean-Claude Van Damme. Triângulo (2007), filme de episódios co-realizado com Johnnie To e Tsui Hark, foi o seu derradeiro trabalho a chegar ao mercado português.

>>> Trailer original de City on Fire.


>>> Obituário no site Deadline.

10 álbuns de 2018 [2]

* SONGS FOR JUDY, Neil Young

Por alguma razão, o site oficial de Neil Young passou a adoptar o endereço 'neilyoungarchives.com'. Estamos, afinal, a falar de uma personalidade com um património de mais de meio século, património que, como se prova, continua a ser redescoberto e organizado. Construído a partir de uma evocação mítica de Judy Garland (1922-1969), esta é uma antologia de gravações inéditas de concertos realizados ao longo do ano de 1976, em grande parte marcados pelas memórias próximas do álbum Harvest (1972) e da chamada 'Ditch Trilogy', editada no período 1973-75 (Time Fades Away, On The Beach e Tonight's The Night). A organização de tão preciosa colecção fica a dever-se ao cineasta Cameron Crowe que, na altura, acompanhou Young na qualidade de jornalista da revista Rolling Stone — a sua experiência está, aliás, na base do seu filme Quase Famosos (2000). Este registo de Heart of Gold (tema de Harvest) data do começo dos anos 70.

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SOPHIE

sábado, dezembro 29, 2018

Norman Gimbel (1927 - 2018)

Autor das letras de largas dezenas de canções, muitas para televisão e cinema, premiado pela Academia de Hollywood, o compositor americano Norman Gimbel faleceu em Montecito, California, no dia 19 de Dezembro (a notícia só foi divulgada a 28) — contava 91 anos.
A lista de compositores com que Gimbel trabalhou é impressionante, incluindo nomes como Elmer Bernstein, Bill Conti, Dave Grusin, Maurice Jarre, Quincy Jones, Francis Lai e Lalo Schifrin. O emblema mais célebre do seu trabalho, com música de Charles Fox, será Killing Me Softly with His Song, tema consagrado pela versão de Roberta Flack, editada em 1973. Ganhou um Oscar de melhor canção, partilhado com o comnpositor David Shire, graças a It Goes Like It Goes, interpretada por Jennifer Warnes na banda sonora de Norma Rae (1979), o filme de Martin Ritt que valeu também um Oscar, de melhor actriz, a Sally Field. Em 1984, foi integrado no Songwriters Hall of Fame.

>>> Killing Me Softly with His Song: Roberta Flack + The Fugees (álbum: The Score, 1996).




>>> Obituário no Variety.

sexta-feira, dezembro 28, 2018

10 filmes de 2018 [2]


* TULLY, de Jason Reitman (EUA)

O filme tem como centro uma mãe stressada (Charlize Theron), a contas com uma não programada terceira gravidez. De facto, Tully (Mackenzie Davis) é a personagem "secundária", uma ama que a vem ajudar, um verdadeiro anjo da guarda... Ou talvez não. Num tempo em que tanto se falou das atribulações da identidade feminina, ficámos sem saber o que os discursos mais militantes pensam deste filme de inusitado secretismo, afinal celebrando as singularidades das suas mulheres — e com duas actrizes em estado de graça. Reitman é um realista raro: filma tudo aquilo que faz um ser humano (homem ou mulher), incluindo a dimensão fantasmática.

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CUSTÓDIA PARTILHADA

Amos Oz (1939 - 2018)

[FOTO: Micha Bar-Am / Magnum]
Autor fundamental na literatura de Israel, defensor de uma solução de dois estados para o conflito israelo-palestiniano, Amos Oz faleceu no dia 28 de Dezembro, em Tel Aviv, vítima de cancro — contava 79 anos.
De seu nome Amos Klausner, toda a sua existência foi profundamente marcada pelo suicídio da mãe, quando ele tinha 12 anos. Dois anos mais tarde, passou a viver num kibbutz, o Hulda, tendo tido duas experiências militares decisivas na consolidação da sua visão política: em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e em 1973, na Guerra do Yom Kippur, em 1973. Foi um dos fundadores da ONG 'Peace Now'. O seu livro mais famoso será Uma História de Amor e Trevas, romance autobiográfico publicado em 2002, treze anos mais tarde adaptado ao cinema, com Natalie Portman na dupla função de realizadora e actriz principal (no papel de Fania Klausner, mãe do escritor).
Entre os seus títulos mais conhecidos incluem-se ainda Meu Michael (1968), A Caixa Negra (1987), Cenas da Vida de Aldeia (2009), Judas (2014) e Caros Fanáticos - Fé, Fanatismo e Convivência no Século XXI (2017), este a sua mais recente reflexão sobre as convulsões da sociedade israelita e os cruzamentos religião/política (há poucas semanas editado no mercado português).
Terá sido com Judas, romance centrado num jovem que trabalha numa tese de doutoramente sobre Jesus, que recebeu mais distinções, incluindo o Prémio Stig Dagerman e o Prémio Tolstoi, atribuídos na Suécia e na Rússia, respectivamente — Judas surgiu também entre os finalistas do Man Booker Prize. Já tinha sido agraciado com o Prémio Goethe (2005) e o Prémio Príncipe das Astúrias (2007).

>>> — Nada se perde — disse ele [professor Samuel Hugo Bergman, no começo dos anos 60] num daqueles serões, e eu recordo-me tão bem que me parece que posso reproduzir aqui as suas palavras uma por uma —, nada se perde. Nunca. A própria palavra "perda" implica um universo finito do qual se pode sair. Mas na-da — (e acentuou intencionalmente a palavra nada) —, nada pode sair do universo. E entrar também não. Não se pode acrescentar nem tirar um único grão de pó. A matéria transforma-se em energia e a energia em matéria, os átomos agrupam-se e dispersam-se, tudo muda e se transforma, mas não é possível passar do ser ao nada. Nem sequer o pêlo mais pequeno da cauda de um vírus. O conceito de infinito é, portanto, completamente aberto, até ao infinito, mas simultaneamente protegido e hermeticamente fechado : nada sai nem entra.

in UMA HISTÓRIA DE AMOR E TREVAS
tradução de Lúcia Liba Mucznik
(Edições Asa, 2007)


>>> 'As raízes do fanatismo': entrevista conduzida por Yves Bossart, para a SRF (rádio e televisão da Suíça).


>>> Entrevista conduzida por João Céu e Silva, em 2016, a propósito do romance Judas (Diário de Notícias).
>>> Trailer do filme Uma História de Amor e Trevas.

10 álbuns de 2018 [1]

* OIL OF EVERY PEARL'S UN-INSIDE, SOPHIE

Escocesa, nascida em 1986, Sophie Xeon move-se através das mais festivas ambivalências: musicais e sexuais, concretas e abstractas, electrónicas e cinematográficas — sim, porque a montagem interior das suas canções possui qualquer coisa de narrativa fílmica. Interpretando peças do mais depurado experimentalismo, como Ponyboy e Faceshopping, ou arriscando nas paisagens de um hiper-romantismo sem preconceitos, como acontece em It's Okay To Cry [video], a sua estreia com Oil of Every Pearl's Un-Insides revela uma singular energia criativa, deliciosamente inclassificável. E não é erro: o nome artístico, SOPHIE, deve escrever-se assim mesmo, só com maiúsculas.

quinta-feira, dezembro 27, 2018

10 filmes de 2018 [1]


* CUSTÓDIA PARTILHADA, de Xavier Legrand (França)

Ah, a magia clássica do formato largo! Não necessariamente dos televisores mais ou menos futuristas, antes de um cinema que, há mais de meio século, com Elia Kazan, Nicholas Ray, etc., descobriu a tensão entre a dilatação das imagens e a vibração dos corpos. Legrand filma um divórcio atribulado a partir do ponto de vista mais problemático: vemos com os olhos da criança, não apenas a agressividade das palavras e a violência dos gestos, mas a própria decomposição afectiva (que começa por ser eminentemente física) do território da família — grande cinema do espaço.

Bruce Springsteen: "No Nukes"

Em 1980, o filme No Nukes (entre nós lançado como Nuclear? Não, Obrigado!) envolveu uma espectacular revelação de Bruce Springsteen.
Não que ele fosse um desconhecido. Longe disso: os álbuns Greetings from Asbury Park, N.J. (1973), The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle (1973), Born to Run (1975) e Darkness on the Edge of Town (1978) faziam dele, aos 31 anos, um genuíno clássico, cumprindo o mítico voto de Jon Landau, formulado numa crítica a um concerto de 1974: "Eu vi o futuro do rock and roll, e o seu nome é Bruce Springsteen."
De facto, foi nas duas noites de No Nukes (Madison Square Garden, 21-22 Setembro 1979) que aconteceu aquela que foi a primeira performance oficial da E Street Band. Ou seja:
— Bruce Springsteen (voz, guitarra, harmónica)
— Roy Bittan (piano)
— Clarence Clemons (saxofones, percussão)
— Danny Federici (órgão)
— Garry Tallent (baixo)
— Stevie Van Zandt (guitarra)
— Max Weinberg (bateria)
Mais do que isso: com impressionante intensidade emocional, Springsteen cantou pela primeira vez em público um dos seus clássicos absolutos, The River (o álbum homónimo surgiria cerca de três semanas mais tarde). E se é um facto que o concerto — organizado pelo grupo anti-nuclear MUSE (Musicians United for Safe Energy) — contou com contributos de gente tão talentosa como Jackson Browne, Crosby, Still and Nash, Gil Scott-Heron, James Taylor ou Carly Simon, o certo é que, para a história, ficou como o momento mágico de revelação da aliança criativa de Springsteen e a sua banda.
Pois bem, tão extraordinária performance permaneceu uma curiosidade rara ou, mais exactamente, sempre incompleta: três canções estão em No Nukes (incluindo The River), mas o filme — assinado por um trio: Julian Schlossberg, Danny Goldberg e Anthony Potenza — continua a não estar editado em DVD; além disso, o próprio Springsteen incluiu duas dessas canções em The Complete Video Anthology / 1978-2000.
Agora, finalmente, poderemos escutar os sets das duas noites (o primeiro com 12 temas, o segundo com 11): o CD No Nukes 1979 estará à venda no dia 21 de Janeiro — eis o video oficial de apresentação, incluindo o som de The River; em baixo, podemos ver as imagens de The River em No Nukes (numa transcrição de fraca qualidade). Da venda de cada unidade do novo álbum, 2 dólares serão entregues ao colectivo MUSE.



Courtney Barnett em Newport

[FOTO: Adam Kissick/para a NPR]
Bela foto! E bela oferta da NPR: este é o registo do concerto de Courtney Barnett no Newport Folk Festival deste ano, cruzando temas dos seus dois álbuns, Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit (2015) e Tell Me How You Really Feel (2018) — ou como o factor ao vivo intensifica a poesia paradoxal, suave e rude, da australiana de 31 anos. Em baixo, um breve video de balanço oficial do festival.

quarta-feira, dezembro 26, 2018

O humanismo segundo David Ake

Nome: David Ake — cidadão americano, pianista, compositor, autor dos livros Jazz Cultures (2002) e Jazz Matters (2010), professor na Universidade de Miami... Ou como escreve Dan Bilawsky em All About Jazz, um "homem difícil de classificar".
É um elogio, entenda-se. E bem merecido face a este Humanities, gravado na companhia de Ralph Alessi (trompete), Ben Monder (guitarra), Drew Gress (contrabaixo) e Mark Ferber (bateria). Encontramos aqui as marcas de um património de muitas influências cruzadas, por vezes, estranhamente ou não, fazendo lembrar algumas reinvenções jazzísticas, austeras e intimistas, de raiz escandinava. Tudo no espírito humanista que o título convoca. Dois temas para escutar: Hoofer e Drinking Song.



terça-feira, dezembro 25, 2018

Kevin Spacey e o seu fantasma

HOUSE OF CARDS [fragmento de imagem promocional]
I. Kevin Spacey regressou. Em video. No YouTube. Assumindo a personagem do Presidente Frank Underwood, da série House of Cards... Ou talvez não.

II. Eis um episódio sintomático deste tempo fantasmático em que vivemos: ser ou não ser deixou de funcionar como aparato filosófico de existência, dando lugar a um caldeirão de identidades em que o ser se confunde com a imagem, ou melhor, com a capacidade de cada indivíduo se produzir enquanto imagem — problema que as "redes sociais" olimpicamente ignoram, já que vivem (e proliferam) através da patética ilusão de uma transparência, automática e reveladora, de qualquer imagem.

III. É isso que faz Spacey, quer dizer, regressar enquanto imagem — e com uma inteligência perversa a que não é possível ficar indiferente. Sob o lema "Let me be Frank", o actor retoma o seu papel de Frank Underwood, Presidente dos EUA na série House of Cards (de que foi despedido quando surgiram várias acusações de assédio sexual, uma das quais o levará a tribunal, daqui a poucos dias, em Boston).

IV. Claro que não é fácil pensar tão perturbante ambiguidade — sobretudo num tempo em que o "social" está reduzido à miséria justiceira de dividir o mundo, de uma vez por todas, em puros e impuros. Acima de tudo, na maior parte dos contextos, tornou-se impossível fazer passar o mais básico dos pressupostos. A saber: discutir a representação pública de Spacey não é o mesmo que branquear as acusações de que ele é alvo — escusado será sublinhar que pertence à justiça esclarecer a pertinência dessas acusações, aplicando as sanções legais decorrentes dos crimes que forem provados.

V. Acontece que a nova performance de Spacey (depois de mais de um ano de silêncio, na sequência da sua supressão do filme Todo o Dinheiro do Mundo) se apoia numa vertigem que, todos os dias, consumimos — a de termos passado a habitar um universo, de uma só vez mediático e social, em que a representação face a uma câmara tende a substituir qualquer princípio de naturalidade ou naturalismo. Perguntamo-nos, assim, se devemos aceitar a sugestão de Spacey: fala-nos do lugar ficcionado do seu "Frank", ou está a solicitar-nos que aceitemos a sua "franqueza"? Os fantasmas distinguem-se, precisamente, pela crueza do seu poder: assustadores ou não, são sempre sedutores.

Godard + Rolling Stones

Foi há 50 anos que os Rolling Stones lançaram o seu álbum Beggars Banquet... e Jean-Luc Godard estava lá para os filmar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Dezembro), com o título 'O “Diabo” dos Rolling Stones já tem 50 anos'.

Uma das grandes efemérides musicais deste final de ano é o cinquentenário do álbum Beggars Banquet, dos Rolling Stones (tendo, aliás, surgido no mercado uma edição comemorativa). Lançado a 6 de Dezembro de 1968, entrou para a história como um retorno da banda de Mick Jagger e Keith Richards aos valores mais primitivos do rock, depois das derivações psicadélicas que tinham marcado o registo anterior, Their Satanic Majesties Request (1967).
Quase sempre esquecido é o facto de existir um filme sobre as sessões de gravação de Beggars Banquet, peça central na estética e no imaginário político de finais da atribulada década de 60. Chama-se One Plus One e corresponde a uma das primeiras derivações experimentais de Jean-Luc Godard na ressaca de Maio de 68. Mais exactamente, Godard esteve em Londres, nos Olympic Sound Studios, registando, em particular, os ensaios daquela que viria a ser a faixa nº 1 do disco, transformando-se numa das canções mais emblemáticas dos Stones, com Jagger a encarnar um “Diabo” em pose cavalheiresca: Sympathy for the Devil.
O filme possui um precioso valor de testemunho. Nele encontramos, de facto, algumas das derradeiras imagens de Brian Jones, que viria a falecer a 3 de Julho de 1969, contava 27 anos (Bill Wyman e Charlie Watts completavam, na altura, a formação da banda). Mais do que isso: em vez de fazer um registo mais ou menos apologético e decorativista das suas “vedetas”, Godard encara os Stones através de uma das fundamentais linhas de força de todo o seu universo criativo. A saber: os gestos do trabalho.
Brian Jones + Keith Richards + Mick Jagger
One plus One apresenta-se, assim, como um registo do trabalho através do qual nasce uma canção. Para Godard, tal registo correspondia também à possibilidade de reagir ao desencanto gerado por Maio, recomeçando a partir do zero (o título original sugere mesmo o arranque de uma nova aritmética artística: “um mais um”).
Assim, as cenas documentais vão alternando com momentos fortemente teatralizados em que são tratados temas quentes da época, desde as guerrilhas armadas até à proliferação de uma sub-cultura de banda desenhada e livros policiais mais ou menos “eróticos”. Por vezes, as referências do presente surgem transfiguradas através de elementos de bizarro simbolismo — num dos quadros do filme, Anne Wiazemsky (então casada com Godard) surge a interpretar uma personagem que tem algo de oráculo primitivo, sendo o seu nome “Eva Democracia”.
Num tempo como o nosso em que as imagens das actividades políticas surgem tantas vezes formatadas pela “aceleração” televisiva, ou reduzidas à vertigem fácil de muitos directos, One Plus One permanece como um exemplar exercício pedagógico: conhecer o mundo através das imagens é (também) discutir a sua ilusória transparência.
Para a história, registe-se o conflito que sempre acompanhou o título deste filme: nos circuitos internacionais passou a ser designado como Sympathy for the Devil, mas Godard nunca abdicou de o considerar o seu One plus One.

segunda-feira, dezembro 24, 2018

Um conto de Natal


>>> Filme publicitário do Erste Group (Áustria) para o Natal de 2018.

A guerra pela verdade [citação]

>>> Quando a televisão chegou aos lares [dos EUA], através de ondas fisicamente raras, a autorização para emitir foi considerada um valor público, com a Federal Communications Commission a fazer cumprir a 'Doutrina da Equidade', a qual obrigava as estações a cobrir as controvérsias públicas, dando voz a mais do que um dos lados. As centenas de canais gerados pelo cabo tornaram a premissa da raridade obsoleta como justificação para a regulamentação (a 'Doutrina da Equidade' foi abandonada em 1987), e a bomba de incêndio que é a Internet apagou os seus derradeiros vestígios. De tal modo que as notícias televisivas deixaram de ser uma força discretamente unificadora, em grande parte confinada a noticiários nocturnos de meia hora, para passarem a existir como uma companhia constante, seccionando o país em campos partidários.

KARL VICK
'Os Guardiões e a Guerra pela Verdade'
in Time (24 Dez./31 Dez. 2018)

"A alma é corpo" [citação]

Antonin Artaud em A Paixão de Joana d'Arc (1928), de Carl Th. Dreyer
>>> Estava a pôr-me um problema que é o da doença da alma doente de estar num falso corpo e perguntava-me onde começara essa alma, desde antes do começo, e quem a pusera nesse falso corpo, no qual somos os antigos escravos de um eu, que nunca teve eu, senão de se afirmar diante de nós o nosso, com o auxílio das nossas perdas de corpo, nessas horas sombrias do ser, em que sentíamos que perdemos corpo uma vez que viver é perder-se o seu corpo. E que é assim que caminhávamos para a tumba, pela velhice, a doença, a morte, em vez de irmos a caminho da insurreição eterna alma corpo, e corpo em corpo pela alma, alma sobre alma como corpo sobre corpo. A alma é corpo, e o corpo é alma também, mas não do lado limitável do corpo, mas do ilimitado da alma, que não ultrapassa o seu infinito uma vez que é todo esse infinito que ele mesmo se ultrapassa sempre, não transcendendo o infinito mas tumulizando, como por tumulus de tumbas, tumulizando digo esse infinito.
 
— carta a Jean Paulhan, 10 de Setembro de 1945
(citado por José Gil,
in Caos e Ritmo, Relógio D'Água, 2018)

domingo, dezembro 23, 2018

"Coletes amarelos" — a ressaca

GIORGIO DE CHIRICO
A Canção do Amor
1914
A. Na ressaca da manifestação dos "coletes amarelos", assistimos ao triunfo mediático de uma insólita transferência temática: já não se pensa (se é que alguma vez se pensou) o que é, ou seria, tal manifestação; agora quase tudo parece ter a ver com o jornalismo e a "comunicação social". Daí três "análises" que têm circulado:
1 — a "comunicação social" exagerou na antecipação da manifestação e da sua potencial dimensão;
2 — os "coletes amarelos" portugueses são uma derivação redutora e, no limite, simplista do fenómeno francês;
3 — o jornalismo dominante passou a existir como eco automático, sem pensamento, das chamadas "redes sociais".

B. Podemos reconhecer que qualquer uma dessas considerações terá algum fundamento, em especial no que diz respeito à cedência de muitas formas de jornalismo à mediocridade panfletária e argumentativa que se socializou nas chamadas "redes sociais". Afinal de contas, a vida vivida, do espaço singular de cada cidadão aos mecanismos de informação, possui algo de sistema de vasos comunicantes — tudo o que acontece não pode ser compreendido através da sua inserção num qualquer domínio fechado, acontece através de um jogo de relações, influências e contaminações que resiste a ser descrito de forma mecânica, estritamente racional. Resta saber que consciência temos disso enquanto sociedade.

C. Assistimos, enfim, ao triunfo de um esvaziamento, metódico e quotidiano, do factor social. Desde logo porque a maior parte dos meios de comunicação (e também muitos cidadãos) deixaram de usar a palavra social para se referirem à complexidade das relações humanas — há mesmo algum jornalismo cego ao espaço/tempo em que existe, só reconhecendo que algo de social acontece quando uma qualquer agitação, por mais anedótica que seja, de preferência estúpida e pueril, surge em "rede". Um eventual resgate caricatural daquilo que aconteceu com os "coletes amarelos" portugueses não passa, por isso, de um sintoma da nossa fragilidade enquanto colectivo — temos "redes", "links" e polegares em frenética actividade; faltam-nos ideias para lidar com o outro.

P.S. — Em tempos de triunfo das "redes sociais", a solidão individual constitui a verdade mais radical do nosso mal viver — estamos a ser (des)educados para ignorar e, no limite, menosprezar o nosso semelhante.

sábado, dezembro 22, 2018

"Aconteceu no Oeste" há 50 anos

Henry Fonda, Claudia Cardinale, Sergio Leone, Charles Bronson e Jason Robards
— rodagem de Aconteceu no Oeste
Na história do “western spaghetti”, Aconteceu no Oeste ficou como um dos momentos mais espectaculares: o filme de Sergio Leone estreou-se há cinquenta anos — este texto foi publicado no Diário de Notícias.

Para as gerações mais jovens que frequentavam as salas de cinema em finais da década de 60, os filmes de “cowboys” não eram uma curiosidade rara, mais ou menos pitoresca. Nada disso: as aventuras do Oeste americano eram peças fundamentais do imaginário popular e constituíam mesmo um dos trunfos mais fortes do mercado. Por isso, a estreia de Aconteceu no Oeste, de Sergio Leone, foi celebrada com especial fervor — o épico com Claudia Cardinale, Charles Bronson e Henry Fonda chegou às salas italianas no dia 21 de Dezembro de 1968, faz [hoje] cinquenta anos.


Pormenor a ter em conta: a estreia absoluta ocorreu, de facto, em Itália, uma vez que esta saga do Oeste foi gerada no continente europeu, numa produção de raiz italiana que, em qualquer caso, chegaria aos mercados internacionais através da distribuição de um grande estúdio americano (Paramount). Dito de outro modo: Leone, italiano, nascido em 1929, em Roma (onde viria falecer em 1989), tinha-se afirmado como figura central de um género que entraria para a história com a sugestiva designação de “western spaghetti”.
Que estava, então, em jogo? Antes do mais, uma recriação formal, recheada de ironia, por vezes paródica, do clássico “western” de Hollywood. A trilogia inicial de Leone foi mesmo decisiva na identificação e consolidação do género: Por um Punhado de Dólares (1964), Por Mais Alguns Dólares (1965) e O Bom, o Mau e o Vilão (1965) triunfaram nos mais diversos mercados, além do mais popularizando um actor americano quase desconhecido na Europa, de seu nome... Clint Eastwood.
Nesses filmes, Eastwood era um herói puro, de figura austera e enigmática, impondo os valores do Bem contra a maldade e a corrupção. Aconteceu no Oeste distingue-se por uma diferença que está longe de ser secundária. É certo que Charles Bronson interpreta uma personagem que ainda se distingue por esse modelo de heroísmo: ele é o “homem da harmónica”, pontuando o filme com as notas do tema central na banda sonora composta por Ennio Morricone (colaborador habitual de Leone). Em todo o caso, através da construção do caminho de ferro ao longo da imensidão das paisagens do Oeste, Leone introduz as componentes de uma história atribulada, de uma só vez económica e mitológica, em que as famílias lutam por encontrar um lugar naquela que foi, afinal, a saga de toda uma nação — a pureza dos ideais dá lugar ao pragmatismo, por vezes, à extrema violência das convulsões da história colectiva.
Também para a história, Aconteceu no Oeste ficou como uma epopeia capaz de conciliar a intensidade do fresco histórico com as marcas de um estilo imponente que Leone tinha apurado e depurado ao longo dos filmes anteriores. A cena inicial em que Bronson chega a uma estação de caminho de ferro no meio deserto, sendo recebido por três pistoleiros ameaçadores, ficou como símbolo perfeito da “mise en scène” de Leone — tudo é monumental, desde o mais discreto movimento dos olhares até ao tratamento do espaço no rectângulo do ecrã de “scope”.


A trajectória criativa de Leone acabaria por levá-lo de novo aos EUA para rodar, em Nova Iorque, Era uma Vez na América, tragédia sobre o crime organizado na primeira metade do séc. XX, com Robert De Niro, James Woods e Joe Pesci, entre outros. Lançado em 1984, seria o seu derradeiro filme, um verdadeiro testamento temático e estético.

O Natal segundo a PETA

Os animais não são presentes de Natal — eis uma mensagem simples, mas essencial, uma vez mais posta a circular pela PETA [People for the Ethical Treatment of Animals], lembrando que muitos dos animais que são "celebrados" como prendas na quadra natalícia, acabam por ser abandonados depois das festas. Em cartaz e também em video.

sexta-feira, dezembro 21, 2018

A IMAGEM: Cine-Teatro Monumental, 1951

CINE-TEATRO MONUMENTAL
Postal ilustrado (1951)
— imagem publicada no blog 'Lisboa de Antigamente'

"Roma", Netflix & etc.

A estreia de Roma, de Alfonso Cuarón, veio relançar muitas questões urgentes do mercado cinematográfico; em Portugal, talvez ganhássemos em tentar pensar tais questões para além da exaltação tecnológica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Dezembro), com o título 'Pensar o cinema para além da tecnocracia'.

Como as pessoas interessadas em cinema saberão, o filme Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, teve a sua estreia nas salas portuguesas na quinta-feira, 13 [Dezembro], estando também disponível na Netflix desde o dia 14. É, a meu ver, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico.
Seja como for, e para além de qualquer juízo de valor, creio que vale a pena sublinhar as condições em que Roma chegou ao mercado português. Até porque convém não esquecer que tais condições são apenas um sintoma parcelar de um drama que está a contaminar toda a paisagem global do cinema. A saber: que relações existem entre as plataformas de “streaming” e o circuito clássico das salas? Mais concretamente: que relações podem existir entre tais entidades?
Alfonso Cuarón
No contexto português, a divulgação e apresentação de Roma aos jornalistas foi pontuada por um misto de secretismo e (des)informação que, em boa verdade, importa não empolar. As hesitações, incertezas e contradições dos agentes do mercado não são nacionais, atravessam fronteiras e envolvem uma guerra comercial e simbólica cujas peripécias têm os EUA como palco central. Desde logo, porque a Netflix continua a não querer divulgar as receitas dos seus filmes nas salas, desse modo desafiando a tradição de transparência do mercado americano; depois, porque, pragmaticamente, a Netflix necessita de colocar Roma nas salas americanas para poder concorrer às nomeações para os Oscars (o que, aliás, me parece um objectivo completamente legítimo).
Entre nós, não deixa de ser interessante referir que, independentemente do caso do filme de Cuarón, um dos discursos dominantes do mercado — visando os consumidores e a própria comunicação social — envolve a consagração da crescente sofisticação técnica de muitas salas escuras (Portugal foi, aliás, um dos países a consumar com mais rapidez a passagem para a projecção digital). Ora, ninguém põe em causa a importância das condições de projecção dos filmes — ao longo das décadas, alguma crítica de cinema tem tido (e continua a ter) um papel activo nesse processo. Resta saber se a ilusão tecnocrática de que estamos na “linha da frente” do digital resolve os problemas endémicos do mercado.
Isto porque importa não fechar os olhos a uma crise que nunca será superada pela mera ostentação tecnológica. Por exemplo: de acordo com os dados oficiais do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), entre Janeiro e Outubro deste ano foram ao cinema 11,8 milhões de espectadores, o que corresponde a uma quebra de 8,3% em relação ao mesmo período de 2017.
Steven Soderbergh
Não bastam estes números para compreendermos o que está a acontecer (os valores do primeiro semestre eram ainda mais negativos, tendo sido “corrigidos” pelo facto de a Festa do Cinema, em Outubro, com três dias de preços de bilhetes reduzidos, ter atraído uma importante vaga de espectadores). Ainda assim, chamam-nos a atenção para a insuficiência, para não dizer inadequação, de uma atitude que se compraz na celebração dos recursos técnicos, ignorando a complexidade dessa entidade a que damos o nome de “público” — complexidade, entenda-se, diversidade interna.
Estamos, enfim, perante um típico fenómeno dos nossos dias: o endeusamento da tecnologia. Nos EUA, há mesmo quem considere que as entidades com mais poder industrial e comercial estão a menosprezar (e, no limite, a destruir) a pluralidade artística e financeira do cinema. Em 2013, numa conferência no Festival de São Francisco, Steven Soderbergh sustentou uma análise cujos ecos em Hollywood e nos circuitos independentes não se dissiparam. Assim, o cineasta de Ocean’s 11 fez questão em descrever a sua perturbante relação pessoal com muitos executivos dos grandes estúdios: dizia ele que não podia deixar de sentir que eles não gostam de cinema e, no limite, nem sequer vêem os filmes.
Que fazer? Sugiro que comecemos por reconhecer que, salvo melhor opinião, Soderbergh não é um porta-voz da crítica de cinema, seja ela qual for. Além do mais, não me parece fácil rotulá-lo de artista indiferente à economia do cinema e ao valor comercial dos filmes.

quinta-feira, dezembro 20, 2018

Trump, personagem burlesca

Na cena mediática, será que os incidentes mais ou menos burlescos protagonizados por uma determinada personalidade política esgotam a sua identidade pública?
A resposta é clara: não. Só mesmo a televisão mais populista e os tablóides mais oportunistas vivem dessa obscena "dialéctica". A saber: promover os incidentes ao estatuto de ridículo sem remissão.
Ainda assim, há nuances. Quando uma personalidade política se vai distinguindo pela mediocridade ideológica, demagogia argumentativa ou falsidade moral do seu discurso, cada incidente pode passar da condição de mero percalço ao estatuto de elemento revelador — o acaso transfigura-se em sintoma.
Sintomático é Donald Trump. Foi isso mesmo que, no balanço do ano, foi reconhecido, com notável sagacidade e ironia, pela redacção do jornal The Washington Post — eis o balanço dos "momentos mais constrangedores" do 45º Presidente dos EUA ao longo do ano da graça de 2018.

The Raconteurs — duas novas canções

Brendan Benson, Jack White, Patrick Keeler e Jack Lawrence
Um dos projectos "marginais" de Jack White está de volta: The Raconteurs deverão lançar um novo álbum em 2019, o que não acontece desde Consolers of the Lonely (2008). Para já, temos direito a duas canções — Sunday Driver e Now That You're Gone — em tudo e tudo por tudo fiéis ao espírito cru, mas singularmente metódico, desta banda formada em Detroit, Michigan, em 2005. Que é como quem diz: as notícias da morte de The Raconteurs eram francamente exageradas...



Penny Marshall (1943 - 2018)

Revelada na televisão, como actriz, realizou vários filmes de grande impacto popular: a americana Penny Marshall faleceu no dia 17 de Dezembro, em Los Angeles, devido a complicações de diabetes — contava 75 anos.
Nascida numa família ligada à representação e às artes do espectáculo — Garry Marshall terá sido o mais conhecido dos seus irmãos —, começou por se destacar em papéis das mais diversas produções televisivas, até que a série Laverne & Shirley (1976-1983), contracenando com Cindy Williams, lhe trouxe grande popularidade junto do público americano — valeu-lhe três nomeações nos Globos de Ouro. Em qualquer caso, seria a realização da comédia Big (1988), um grande sucesso com Tom Hanks, que a projectou na produção de Hollywood. Seguiram-se títulos como Despertares (1990), com Robert De Niro, adaptando um livro de Oliver Sacks sobre a sua experiência no domínio da investigação neurológica, ou Liga de Mulheres (1992), sobre uma equipa feminina de baseball na década de 1940, com Geena Davis, Madonna, Rosie O'Donnell e, de novo, Tom Hanks; a comédia dramática Os Rapazes da Minha Vida (2001), com Drew Barrymore, condensa a sua visão amarga e doce da passagem à idade adulta, a par das atribulações da condição feminina. Em 2012, publicou a autobiografia My Mother Was Nuts.
>>> Trailer de Liga de Mulheres.


>>> Obituário no Variety.

quarta-feira, dezembro 19, 2018

Paul McCartney & Emma Stone

Mais um teledisco de Egypt Station, 17º álbum a solo de Paul McCartney: para cantar Who Cares, McCartney assume-se como psicoterapeuta de Emma Stone... O resultado é cristalino e festivo, numa palavra, pop.