terça-feira, março 31, 2015

Nova digressão dos Rolling Stones

Sticky Fingers (1971), dos Rolling Stones, o álbum com fecho (zip) nas calças da capa, num lendário design de Andy Warhol, está de volta: será reeditado, em várias versões (incluindo uma Super-Deluxe, com o registo de um concerto, em Leeds, em Março de 1971), assinalando o arranque — no dia 24 de Maio, em San Diego — de uma nova digressão americana da banda de Mick Jagger, Keith Richards, Charlie Watts e Ronnie Wood.
Num trocadilho feliz com a noção de "código postal", a designação oficial do conjunto de concertos em 15 cidades dos EUA, será ZIP CODE — eis o respectivo spot e também um admirável lyric video de Wild Horses, um dos temas emblemáticos de Sticky Fingers.



Rossellini x 10

Anna Magnani — A Voz Humana (1948)
São dez filmes para ver e rever, descobrir ou redescobrir, a obra imensa de Roberto Rossellini — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Março), com o título 'Dez filmes para redescobrir Rossellini e... Anna Magnani!'.

O menos que se pode dizer do ciclo dedicado a Roberto Rossellini — começou no dia 26, em Lisboa (Espaço Nimas); a partir de 9 de Abril, no Porto (Teatro Municipal Campo Alegre) — é que através dos seus filmes será possível contrariar qualquer visão banalmente museológica da grande tradição cinematográfica italiana. Estamos perante uma dezena de títulos — de Roma, Cidade Aberta (1945) a Índia (1959) — que envolvem as transformações práticas e conceptuais do neo-realismo, ao mesmo tempo que rasgam os caminhos da modernidade cinematográfica.
Rossellini foi o arauto de uma revolução do olhar que, pelo menos transitoriamente, dispensou os artifícios tradicionais dos estúdios, celebrando as possibilidades humanas e narrativas de relação com a pulsação dos lugares. É bem certo que tal opção resultava também da realidade crua da guerra: em meados dos anos 40, os estúdios italianos estavam em ruínas e, como a sociedade em geral, careciam de reconstrução. Em todo o caso, quando Rossellini filma Alemanha, Ano Zero (1948), na sua crueza documental, a desolação da cidade de Berlim é também o princípio de uma elaborada dramaturgia. Ou quando coloca em cena Ingrid Bergman, por exemplo em Stromboli (1950) ou Viagem em Itália (1954), a luminosidade da actriz nasce do confronto das singularidades de um corpo com a magia da
paisagem (o vulcão, no primeiro caso, as ruínas de Pompeia, no segundo).
Neste nosso tempo tantas vezes seduzido pela desumanização figurativa do digital (o que, entenda-se, não envolve qualquer resistência de princípio às transformações do cinema através do digital), faz sentido sublinhar que a modernidade de Rossellini passa também por essa disponibilidade, estética e afectiva, para encontrar os caminhos dos filmes através dos actores.
As primeiras sessões do ciclo são mesmo dominadas por Anna Magnani (1908-1973). Não será ainda com a sua mais lendária interpretação com Rossellini, Roma, Cidade Aberta (primeira apresentação em Lisboa a 2 de Abril), mas sim através de um filme algo esquecido, O Amor (1948), reunindo duas histórias de muitos ecos simbólicos: A Voz Humana, sobre uma mulher ligada a um telefone de muitas angústias, adapta a peça homónima de Jean Cocteau; O Milagre centra-se numa mulher que, depois de aceitar água de um peregrino, acredita estar grávida de São José — o homem é interpretado por Federico Fellini, também autor da história original (as sessões de O Amor incluem também A Força e a Razão, registo de 1973, para a RAI, de uma conversa de Rossellini com Salvador Allende).
Antecipando o modelo de “filme-de-episódios”, muito popular durante a década de 60, O Amor envolve uma celebração dos dotes de representação de Anna Magnani (aliás, homenageada numa legenda assinada pelo próprio Rossellini). Mais do que isso: nos seus dois breves capítulos, especialmente em A Voz Humana, a relação carnal entre a actriz e a câmara de filmar condensa o fascínio radical do cinema como máquina de reprodução e recriação do mundo.

segunda-feira, março 30, 2015

A música segundo Tidal

Até há cerca de duas semanas, Tidal era um serviço de streaming de música e videos pertença da companhia sueca Aspiro — um claro sucesso (com um catálogo de 25 milhões de temas para mais de meio milhão de assinantes), mas relativamente distante das manchetes.
A 13 de Março, foi anunciada a compra da Tidal pela companhia Project Panther Bidco. Uma reconversão estratégica no mundo das grandes empresas, para mais tendo em conta que a Tidal chegou aos EUA no passado mês de Outubro? Sim. Mas acontece que o principal accionista da Project Panther Bidco é Shawn Carter, mais conhecido por Jay Z.
Dito de outro modo: a Tidal transformou-se num dos maiores desafios da nova paisagem digital, sustentada por um princípio básico de propriedade — serão os próprios artistas a controlar o serviço de streaming. E não se pode dizer que Jay Z esteja rodeado de personagens secundárias: Beyonce, Daft Punk, Alicia Keys, Madonna, Nicki Minaj, Rihanna, Kanye West e Jack White são apenas alguns dos nomes envolvidos — aconteça o que acontecer, o spot do novo Tidal fica para a história.

O Novo Teatro do Mundo [citação]

>>> Instaurou-se uma harmonia, e ele não era o único a estar em harmonia. Essa harmonia, sensível por mais um longo segundo, era uma harmonia que o ligava aos outros na clareira. E esses outros não se diferenciavam em nada das personagens do Novo Teatro do Mundo. Cada uma delas encarnava um papel, um papel fundamentalmente diferente de cada vez, e ele também encarnava um papel, com essa particularidade de todos esses papéis distintos, opostos, antagonistas, se reunirem agora num único círculo: o círculo dos segundos, o círculo daquele segundo. Enquanto todos até então tinham surgido isoladamente, sem ligação com o homem da frente ou de trás, cada um, no espaço de um segundo, completava o outro na sua própria diferença, na sua própria oposição. E ele, o misantropo, tendo na cabeça o seu papel de louco furioso, harmonizava-se com eles.

PETER HANDKE
in La Grande Chute
Gallimard, 2014

domingo, março 29, 2015

No país de Alice Rohrwacher (1/2)

Com O País das Maravilhas, a italiana Alice Rohrwacher ganhou o Grande Prémio de Cannes: para ela, trata-se de construir ficções e filmá-las como se fossem documentários — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (25 Março), com o título '“Inventámos um mundo e depois fizemos um documentário”'.

A sua trajectória pessoal já passou por Portugal?
É verdade. Comecei por viver em Portugal como aluna do programa Erasmus; depois, estudei documentarismo na Videoteca Municipal de Lisboa e trabalhei como assistente de montagem de Luciana Fina, uma italiana, realizadora de documentários, que vive em Lisboa. E era frequentadora regular da Cinemateca.

Esta sua segunda longa-metragem de ficção, O País das Maravilhas [depois de Corpo Celeste, 2011], quase começa como um documentário sobre uma família no campo — o projecto envolvia essa vontade de documentar uma determinada realidade?
Em boa verdade, no filme tudo é falso, no sentido em que nada funciona num plano documental. Ao mesmo tempo, gosto de dizer que inventámos um mundo e, depois, de certa maneira, fizemos um documentário sobre esse mundo. Tudo é fabricado, estava tudo escrito, mas devido à consistência dessa fabricação, pode parecer um documentário.

Por exemplo?
Por exemplo, quando num filme há necessidade de ter uma horta, ou um jardim com plantas, muitas vezes compram-se as plantas já crescidas e colocam-se na terra — o que se procura é “aquela” imagem das plantas. No nosso caso, plantámos mesmo uma horta, ou seja, cinco meses antes da rodagem definimos que plantas queríamos, semeámo-las, tratámos delas e, no fim, tínhamos uma verdadeira horta. E durante a rodagem consumimos aquilo que tínhamos criado na horta.

Que efeitos esse processo teve no trabalho dos actores?
Sempre me interessou um cinema em que o método, a maneira de chegar a determinadas coisas, acaba por ser mais importante que as próprias coisas. Nesse sentido, os actores acabaram mesmo por viver naquele mundo, a ponto de todos acreditarmos profundamente naquela família — afinal, os seus membros existiam ali mesmo, à nossa frente.

E até que ponto os actores marcaram as personagens com elementos do seu próprio mundo interior?
Marcaram mesmo para além do próprio filme. Há até casos, como o de Cocò, interpretada por Sabine Timoteo, em que a personagem acabou por existir mais para nós do que na montagem final.

[continua]

Nas palavras de Herberto Helder (2/3)

[ 1 ]

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

H. H.
Photomaton & Vox
Assírio & Alvim (1995)

* * * * *

"A língua alumia-se". Por certo, a língua em que o poeta escreve. Mas também a língua/corpo com que se diz a outra língua, primordial para a história comum, nela e com ela procurando o enigma da outra boca.
Talvez se possa dizer (mas o que é que podemos dizer da escrita que nos expõe ao mistério do outro?) que a escrita de Herberto Helder nunca é confessional. Não o é, pelo menos, no sentido mediático corrente, medíocre e obsceno, de quem "desvenda" os bastidores de uma existência. Ao mesmo tempo, há nela uma radical afirmação de intimidade que nos faz sentir a singularidade da escrita como um dispositivo de convocação do mundo todo, todo mesmo, sem deixar nenhuma galáxia de fora. Não se pode ser mais político.

A IMAGEM: Lucie Soullier, 2015

LUCIE SOULLIER
Le Monde
29 Março 2015

sábado, março 28, 2015

András Schiff entre os séculos XVIII e XIX

* Terça, 24 Mar. 2015, 19:00 - Fundação Gulbenkian, Grande Auditório
> András Schiff (piano)
- Últimas Sonatas III
*Joseph Haydn
Sonata nº 62, em Mi bemol maior, Hob.XVI:52
*Ludwig van Beethoven
Sonata nº 32, em Dó menor, op. 111
*Wolfgang Amadeus Mozart
Sonata nº 18, em Ré Maior, K. 576
*Franz Schubert
Sonata em Si bemol maior, D. 960

Se outras razões não houvesse para celebrarmos o admirável concerto do húngaro András Schiff na Gulbenkian, a interpretação do segundo andamento (Arietta: Adagio molto, semplice e cantabile) da Sonata nº 32 de Beethoven seria mais que suficiente. Nesta "música de charneira que resume o passado e prepara o futuro", para usarmos a feliz expressão de Francisco Sassetti no programa, redescobrimos a fascinante vacilação de um mundo de pensamento e estruturas musicais em que tudo parece possível, à beira da decomposição, e ao mesmo tempo de uma consistência dramática que transcende qualquer contexto em que escutemos tais sons.
Vogámos, assim, entre 1789 (Mozart) e 1828 (Schubert), passando por 1794-95 (Haydn) e 1821-22 (Beethoven), revisitando esse turbilhão de invenções que liga — e, afinal, separa como dois corpos estranhos — os séculos XVIII e XIX. Nesta perspectiva, Schiff voltou a desenhar um mapa em que as peças interpretadas, sem nunca alienarem a sua identidade, parecem sustentar uma narrativa em que, de facto, em última instância, a sonata de Schubert emerge como a síntese paradoxalmente em aberto. Como sempre, a serena postura do pianista impôs-se como inseparável das convulsões para que nos convoca — momentos inesquecíveis, por certo dos mais depurados de toda esta temporada.

* * * * *
>>> Os 24 Prelúdios de Chopin, op. 28, interpretados por András Schiff.


>>> Site oficial de András Schiff.

Bond 24: o primeiro trailer

Será que James Bond vai ser liberto da obrigação de se confundir com um super-herói resgatado da BD, sustentado por efeitos especiais mais ou menos aparatosos e redundantes? A pergunta justifica-se em função das suas mais recentes proezas, incluindo o vistoso e monótono Skyfall (2012), assinado pelo talentoso Sam Mendes, obviamente reduzido a uma função meramente instrumental.
Mendes, precisamente, está de volta na realização de Spectre, 24º título oficial da saga cinematográfica de 007, quarto protagonizado por Daniel Craig. E o primeiro trailer (ou teaser-trailer, de acordo com a terminologia do marketing) surgiu na noite de 27 de Março, produzindo um desconcertante e interessante efeito de surpresa: a história de Spectre surge promovida, não através de uma acção "física" mais ou menos agitada, antes através de um curioso sublinhado das suas componentes dramáticas — a estreia mundial está agendada para 6 de Novembro.

Herberto Helder na televisão

PAUL KLEE
Stachel, Der Clown
1931
Como é que a morte de Herberto Helder foi noticiada no espaço televisivo? — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (27 Março), com o título 'Na morte do poeta'. 

Percorro as notícias televisivas sobre a morte de Herberto Helder. E não posso deixar de me fixar na insistência com que é referido o facto de o poeta ter sido avesso às formas de exposição pública. Verdade incontornável, sem dúvida: Herberto Helder não estava disponível para entrevistas, resistia a ser fotografado e não mostrava qualquer disponibilidade para ser uma personagem televisiva.
Percorro as notícias e pressinto o seu perverso subtexto. No fundo, aquilo que se noticia — mesmo na mais absoluta candura de quem lê a notícia — é a incómoda condição marginal do poeta. A saber: a sua exterioridade em relação ao universo específico da televisão, suas regras de exposição e matrizes de comunicação.
Podemos, aliás, compreender o reforço da sua marginalização, não através das notícias da sua morte, antes observando o modo como outros vivem — televisivamente, entenda-se. Assim, desde os protagonistas de Casa dos Segredos até ao mais patético dos “famosos”, todos os dias o espaço televisivo se dispõe a ser câmara de eco das mais apoteóticas mediocridades, sem que alguém se lembre de fazer uma notícia que, a propósito, integre o voto de silêncio do poeta. Como? Cada vez que uma dessas personagens degrada um pouco mais as palavras e a língua que é de todos nós, faz-nos falta a coragem rudimentar de fazer a verdadeira notícia. Qual? Uma que comece assim: “Fulano de tal arriscou não ficar calado...”
Acontece que o silêncio de Herberto Helder é de uma violência ensurdecedora, remetendo cada um para a verdade mais íntima da sua identidade cultural — viram a falsidade humana de algumas figuras da cena política ao cumprirem a obrigação (?) de proclamarem que Herberto Helder foi “um grande poeta”?
Mas não desesperemos. No instante seguinte, volta a ser possível repor a preguiça de todas as formatações, reocupando o espaço social com as rotinas da reality TV, novelas, concursos e a “justiça” dos resultados do futebol... Perdoemos o poeta e o seu atrevimento de morrer — e ser notícia.

sexta-feira, março 27, 2015

Nova Iorque em Kodachrome

Robert Herman é um fotógrafo de Nova Iorque que, ao longo das décadas, acumulou uma obra de invulgar consistência e coerência. O seu livro The New Yorkers possui qualquer coisa de melancólico e irrecuperável — porque vemos o próprio movimento da cidade a fazer-se e refazer-se, mas também porque estas são fotografias obtidas, entre 1978 e 2005, com a maravilhosa (e defunta) película Kodachrome. E ficamos sem saber se são as imagens que perderam alegria ou se tem sido o mundo a perder cor.

quinta-feira, março 26, 2015

Ringo Starr, opus 18

Uma sugestão de viagem, uma pose bem disposta, discretamente nonchalante, e um som rock, simples e directo, sem complexos de se entregar ao primitivismo da sua energia, embora sem cultivar qualquer mágoa nostálgica — assim é Ringo Starr, sempre fiel à herança dos anos 60 que ele e os seus três companheiros de Liverpool moldaram de forma irreversível. O certo é que o Sr. Richard Starkey Jr. já vai no seu 18º álbum a solo, Postcards from Paradise, mais uma vez mobilizando velhas raposas como Todd Rundgren, Joe Walsh e Dave Stewart. O tema título, composto com Rundgren, tem um delicioso e sofisticado lyric video, encenando uma canção em que Ringo decide construir todo um poema a partir de versos roubados ao património dos Beatles [citações].

Rossellini, aqui e agora (2/2)

Grande acontecimento no panorama do cinema nas salas (mais tarde chegará ao DVD): dez filmes de Roberto Rossellini são repostos em cópias restauradas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'Para redescobrir a herança estética e a exigência ética de Rossellini'.

[ 1 ]

Desde os títulos emblemáticos do neo-realismo italiano — Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (1948) —, Rossellini desenvolveu uma visão do mundo que nunca foi indiferente a um impulso visceralmente documental. Claro que todos são inseparáveis de elaborados argumentos, escritos com colaboradores como Sergio Amidei, Carlo Lizzani ou Federico Fellini (que assinaria a primeira longa-metragem a solo, O Sheik Branco, em 1952); o certo é que Rossellini arriscava muitas vezes na utilização de cenários reais para inscrever histórias em que se avaliavam as heranças dramáticas da Segunda Guerra Mundial. Alemanha, Ano Zero encena mesmo a saga de um rapaz no labirinto muito real das ruínas de Berlim, conseguindo a proeza, de uma só vez cinematográfica e política, de olhar para o “outro” lado da história para além de qualquer maniqueísmo moral ou ideológico.
Tal capacidade adquire uma intensidade paradoxal em filmes que não são estranhos a uma sofisticada sensibilidade melodramática, em particular aqueles em que Rossellini dirigiu Ingrid Bergman (com quem foi casado no período 1950-57). Viagem em Itália (1954) constitui, nesse aspecto, uma proeza radical, desmontando a crise de um casal como um processo íntimo de descoberta dos próprios lugares — e isto através dos mais rudimentares meios de produção. Sempre com admirável poder de síntese, Godard recordava o espanto que foi a sua descoberta: afinal de contas, era possível fazer um filme “com alguns trocos” e, no limite, “com duas pessoas dentro de um carro”.
Exemplo extremo e fascinante dessa dinâmica entre personagens e lugares será Stromboli (1950), o primeiro dos cinco títulos em que Rossellini dirigiu Ingrid Bergman (o ciclo inclui ainda Europa 51 e O Medo, respectivamente de 1952 e 1954, só faltando Giovana d’Arco al Rogo, de 1954). A história da solidão de uma mulher na ilha de Stromboli projecta-nos numa dimensão trágica, de perturbante simbolismo, em que tudo passa pela sensação muito física de “reportagem” através da paisagem assombrada pelo vulcão da ilha.
O programa de reposições inclui ainda dois dos mais raros e sugestivos “desvios” da obra de Rossellini: O Amor (1948), com Anna Magnani, e A Máquina de Matar Pessoas (1952), uma inclassificável comédia. Seja como for, a sua herança não pode ser desligada de uma paixão realista que, curiosamente, na fase final da sua carreira, passou pela produção televisiva.
Falecido em 1977, contava 71 anos, Rossellini acreditou que a televisão podia ser o espaço de uma renovada linguagem de formação cívica e conhecimento histórico (este ciclo inclui também A Força e a Razão, uma entrevista a Salvador Allende, produzida pela RAI e difundida em 1973). Nessa medida, a par de Godard ou Michelangelo Antonioni, foi pioneiro na descomplexada abordagem do modelo de telefilme, a começar por A Tomada do Poder por Luís XIV (1966). Se Rossellini deparasse com os horrores quotidianos da reality TV, não tenhamos dúvidas que seria um dos mais empenhados resistentes a todas as formas de populismo contemporâneo — razão suplementar para, ao redescobrirmos os seus filmes, revalorizarmos a crença mais clássica nos valores básicos do humanismo.

Nas palavras de Herberto Helder (1/3)


Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada.

MuIheres que eu amo com um des-
espero .fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.

H.H.
Lugar / Poesia Toda
Assírio & Alvim (1979)

* * * * *

As cidades. As mulheres. Um lugar para viver. A presença que se faz ausência, regressando ainda mais intensa, reconvertendo o lugar até à abstracção muito concreta do pensamento.
Há na poesia de Herberto Helder uma pulsão fantástica (nada a ver com fantasista) que, em boa verdade, faz regressar o poeta — convocando o leitor para a mesma aventura — a tudo aquilo que se diz, sente e edifica à flor da pele, num desespero feliz em que pressentimos a possibilidade de uma relação humana. Esta solidão partilhada não tenta saturar o mundo de significados, televisionando-o como coisa fechada — trata-se antes de reconhecer que o mundo não pára de significar, e a uma velocidade superior à de qualquer escrita. Provavelmente, a poesia é a arte de reconhecer, e escrever, essa lentidão.

Ver + ouvir:
Björk, Lionsong



Teledisco criado para uma das canções do álbum Vulnicura, o mais recente disco de estúdio de Björk.

Novas edições:
Courtney Barnett

“Sometimes I Sit and Think and Sometimes I Just Sit”
CD, Marathon Artists / Popstock
4 / 5

Estará na hora de juntar uma nova voz a um grupo seleto de vozes femininas que usam o saber da palavra e a angulosidade da guitarra para desenhar canções que são expressão do que somos e do tempo em que vivemos? Talvez seja cedo para conclusões de longo prazo, mas a verdade é que depois de promissores EPs lançados ao longo dos dois últimos anos, a estreia em álbum da australiana Courtney Barnett não só confirma em pleno as melhores expectativas como nos coloca perante um dos melhores discos que a cultura rock nos mostrou nos últimos tempos (e convenhamos que tem sido departamento em relativa dieta de boas ideias nos anos mais recentes).

O cativante, bem humorado e longo título Sometimes I Sit and Think and Sometimes I Just Sit sugere que há talvez aqui alguém que pense mais que apenas se sente sem pensar. E é na força dos jogos de palavras, que escutamos por uma voz entre o falado e cantado, que com bom humor e também a crua franqueza com que nos diz que se a pusermos num pedestal nos vai desiludir, que pode residir uma primeira abordagem a um conjunto de canções das quais, audição após audição, surge precisamente a ideia do contrário do alerta lançado. Ou seja: não desapontam (mas vale a pena não a colocar já num pedestal, que há ainda muita estrada e conquistas pela frente). Nota-se sobretudo um saber de contador de histórias, tendo já havido que a apontasse como continuadora de uma escola (também vinda daqueles lados do mundo) que teve os Go Betweens – ou seja a dupla Grant e McLennan – como referência maior (e que responsabilidade nesta comparação!).

Musicalmente o disco não foge ao que os EPs já conhecidos sugeriam (e aí afasta-se do terreno dos criadores de Cattle and Cane). Ou seja, há por aqui ecos de uma formação feita entre heranças do grunge e de uma certa luminosidade brit pop (não deixo de pensar nas Elastica ao escutar Pedestrian at Best ou nuns Sleeper ao ouvir Aqua Profunda!) e em Debbie Downer há mesmo umas teclas subtis com alma vintage que lembram a ingenuidade pop da new wave de primeira geração). Há também aquele tom desencantado na relação do canto com a guitarra que Patti Smith ou PJ Harvey assimilaram e transformaram cada qual na sua voz. E há sobretudo sinais de não alinhamento nas muitas micro-tendências dos caminhosindie recentes. Courtney Barnett tem a sua voz, as suas memórias, conta as suas histórias e estas são as suas canções.

As canções revelam uma alma inteligente, atenta e capaz de escrever pequenos retratos do mundano desinteressante do nosso tempo e comentários sobre pequenos nadas na forma de canções simples e diretas. O alinhamento de Sometimes I Sit and Think and Sometimes I Just Sit foge (sem a intenção de mostrar que está a fugir) aos sabores do momento. Cruza uma intemporalidade rock’n’roll com um gosto vintage por referências da cultura elétrica de finais do século XX. Ao contrário do que o título sugere, o rock aqui levanta-se da cadeira, vibra e pensa.

Courtney Barnett é nome a acompanhar com atenção e este álbum é um dos melhores cartões de visita em clima rock que o ano escutou neste primeiro trimestre.

Este texto foi originalmente publicado na Máquina de Escrever

Para ouvir: o regresso de Roisín Murphy


Após longa ausência do universo dos discos de longa duração Roisin Murphy está de regresso... Aqui fica um aperitivo. Promete...

Para ler: os 'Ficheiros Secretos'
e a ressurreição de séries de TV

A notícia do regresso de X-Files gerou uma série de reações. Este artigo no Guardian reflete sobre o caminho que este tipo de regressos pode comportar.

Podem ler aqui

quarta-feira, março 25, 2015

Pasolini, 40 anos depois

Franco Citti, ACCATTONE (1961)
Em 2015, assinalam-se 40 anos sobre a morte de Pier Paolo Pasolini: como lidamos com a sua herança? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Março), com o título 'Sob o signo de Pier Paolo Pasolini'.

Os partidos políticos há muito desistiram de qualquer reflexão regular sobre a realidade das imagens. Dir-se-ia que lhes bastam as compensações narcisistas do espelho fátuo da televisão. E, no entanto, no nosso presente de muitas mediatizações, a questão das imagens realistas — ou melhor, do realismo enquanto fenómeno imagético — não pode deixar de estar no centro de qualquer pensamento político minimamente exigente.
Há uma razão quotidiana, incontornável, para tal exigência: o agressivo e despudorado triunfo do Big Brother e seus derivados gerou um novo dispositivo de percepção do povo. O povo? Precisamente. A palavra caiu em desuso em todos os discursos políticos, mas regressou pela porta da reality TV. Pode mesmo dizer-se que a reality TV se apropriou de um enunciado militante que, em contexto bem diverso, alimentou outras celebrações, algumas euforias e não poucos desastres de comunicação: “Se isto não é o povo, onde é que está o povo?”.
Estes temas vão, por certo, regressar ao longo do ano, quanto mais não seja por causa do efeito de uma efeméride: no dia 2 de Novembro, completar-se-ão 40 anos sobre o assassínio de Pier Paolo Pasolini, cineasta, cidadão do mundo, que nunca abdicou de reflectir sobre os modos de representação das classes populares e, em particular, sobre as ilusões consumistas (em grande parte televisivas) que, com metódica angústia, observava na sua Itália.
Que a herança estética de Pasolini permanece muito viva, eis o que pudemos observar através de dois filmes que, em meses recentes, chegaram às salas portuguesas: Pasolini, do americano Abel Ferrara, um retrato íntimo, não tanto do realizador de filmes, mas mais do intelectual que nunca cedeu a qualquer facilidade populista; e O Pequeno Quinquin, do francês Bruno Dumont, saga rural que revaloriza esse realismo muito “pasoliniano” que começa na integração de actores populares.
Uma das primeiras evocações dos 40 anos do desaparecimento de Pasolini foi um magnífico dossier, intitulado “Génies de Pasolini”, publicado pela revista francesa Le Magazine Littéraire (Janeiro 2015). Num artigo desse dossier, o historiador Luciano de Giusti evoca o modo como Pasolini explicou a sua “passagem” da literatura para o cinema como uma espécie de libertação dos “signos linguísticos”. Dizia ele: “Quando faço um filme, não há entre mim e a realidade o filtro do símbolo ou da convenção, como acontece na literatura. Por isso, na prática, o cinema foi uma afirmação do meu amor pela realidade.”
Quando vemos ou revemos presenças como a de Franco Citti em Accattone (primeira longa-metragem de Pasolini, lançada em 1961), compreendemos que o seu retrato dos subúrbios de Roma nada tem a ver com qualquer paternalismo mais ou menos pitoresco. No universo pasoliniano, o povo não é uma caução estética, mas sim uma entidade que desafia a estabilidade de qualquer estética — eis um risco político que o nosso presente tão mal conhece.

Nova canção de Torres

Sprinter, segundo álbum de Torres, nome artístico de Mackenzie Scott, está anunciado para 18 de Maio. E depois de Strange Hellos, aqui está a canção-título, a provar que a sua condição de grande revelação de 2013 não foi um acidente — indie, quase folk, discretamente pop, som genuíno.

terça-feira, março 24, 2015

Herberto Helder (1930 - 2015)

Com uma pêra, dou-lhe um nome de erro
entre mim e tudo, na mão, amadureço
enquanto ela se torna propícia,
amarela ao influxo do vento de estrela para estrela.
O sangue da mão ensombra a fruta na sua volta
de átomos, abala
imagem, arquitectura.
E o espaço que isto cria: a noite
aparece no ar. E dura, leve, tersa, curva,
a linha
do fogo entrecruza
os pontos paralelos: a pêra desde o esplendor,
a mão desde
o equilíbrio, os centros
do sistema geral do corpo, o buraco negro.
Morro?
Escrevo apenas, e o hausto aspira
dedos e pêra, enigma e sentido, ordem, peso, o papel onde assenta
a constelação do mundo com esse buraco
negro e as palavras em torno.
No instante extremo de
desaparecerem.
Se morro, é por exemplo.

H. H.
Do Mundo
Assírio & Alvim, 1994

Rossellini, aqui e agora (1/2)

Grande acontecimento no panorama do cinema nas salas (mais tarde chegará ao DVD): dez filmes de Roberto Rossellini são repostos em cópias restauradas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'Para redescobrir a herança estética e a exigência ética de Rossellini'.

Alfred Hitchcock. David Lean. Ingmar Bergman. Yasujiro Ozu. Charlie Chaplin. Eis alguns autores clássicos que têm reaparecido nas salas de cinema (e também no mercado do DVD). Se é verdade que a cinefilia se enraíza num gosto obstinado pela preservação dos filmes e suas memórias, então podemos dizer que o mercado português, mesmo com as suas lacunas e desequilíbrios estratégicos, não se tem esquecido dos clássicos. E de um fundamental valor cultural e comercial: a possibilidade da sua redescoberta através de cópias restauradas para os novos formatos digitais.
Roberto Rossellini é mais um nome que podemos incluir nessa lista de ilustres mestres da sétima arte. Assim, estão a chegar às salas nada mais nada menos que dez títulos de Rossellini, cumprindo uma temporada de exibição (começa dia 26, em Lisboa; a partir de 9 de Abril, no Porto) que nos poderá permitir redescobrir a herança estética, e também a exigência ética, de um criador sem o qual nunca será possível compreender a eclosão da modernidade cinematográfica.
Em 1959, nos tempos heróicos da Nova Vaga francesa, Jean-Luc Godard publicou na revista Arts uma entrevista (imaginária) com Rossellini a que deu um título de poética contundência: “Um cineasta é também um missionário”. Tinha acabado de sair o filme Índia (na altura conhecido como Índia 58) e, numa apaixonada celebração da solidão criativa de Rossellini, escrevia o futuro autor de Pedro, o Louco: “(...) humildade e lógica eram os dois singulares valores que iluminavam esta viagem ao fim da noite cinematográfica, viagem que o conduziu ao berço da civilização indo-europeia”.

segunda-feira, março 23, 2015

Cannes sob o signo de Bergman

Ingrid, entenda-se. Ingrid Bergman será o rosto simbólico da 68ª edição do Festival de Cannes (13/24 Maio): o cartaz oficial do certame é feito com uma fotografia da actriz de Casablanca (1942), Difamação (1946) e Stromboli (1950), da autoria de David Seymour (um dos fundadores da agência Magnum).
A escolha ocorre no ano em que se assinala o centenário do nascimento de Ingrid Bergman, facto que dará origem, em Setembro, a um espectáculo (Ingrid Bergman Tribute) que está a será preparado pela filha, Isabella Rossellini. Entretanto, espera-se que a secção Cannes Classics dê especial destaque a alguns títulos da filmografia da actriz — para já, está anunciado o documentário Ingrid Bergman, In Her Own Words [foto], realizado por Stig Björkman.

Os filmes de Laura Marling

O novo álbum de Laura Marling chama-se Short Movie. Sugestão cinematográfica? Muito provavelmente, sobretudo porque a sua delicadeza folk continua a possuir a dimensão confessional de pequenas histórias que se fazem e desfazem através do próprio canto (ela já nem sequer está com o cabelo escuro...). Por vezes, tudo isso pode acontecer através de desenhos animados tão transparentes quanto assombrados — eis o teledisco do tema-título.

domingo, março 22, 2015

Cinderela vs. Cinderela

2015
O projecto dos estúdios Disney de refazer os clássicos de animação "encalhou" na nova Cinderela — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Março), com o título 'Estudando os clássicos'.

Os críticos não gostam de filmes de efeitos especiais... Eis um lugar-comum de agressiva ignorância. Para além de tratar os “críticos” como um rebanho de gente desmiolada, o seu uso tem-se reduzido a produções recentes, de preferência com super-heróis a destruir arranha-céus...
1950
Assim se mascara o facto de o conceito de efeito especial ser tão antigo como o próprio cinema (vejam-se os filmes de Georges Méliès, realizados há mais de cem anos), estando muito longe de se restringir aos blockbusters da última década (quem reparou que um momento decisivo na evolução da tecnologia cinematográfica se chama Irmãos Inseparáveis, foi realizado por David Cronenberg em 1988 e encena Jeremy Irons a dialogar com... Jeremy Irons?).
Vem isto a propósito da frustrante ostentação da nova Cinderela. O problema não é a utilização de efeitos especiais, mas sim a sua pacatez: a transformação da abóbora em carruagem dourada é de tal modo amadorística que não faz justiça ao tradicional rigor dos estúdios Disney. Mais do que isso: o filme confunde artifício e ruído com a subtileza de uma fábula, a ponto de reduzir a cruel madrasta a uma desastrada caricatura, para mais condenando uma actriz como Cate Blanchett a passar o filme a fazer caretas para grandes planos tão breves quanto banalmente instrumentais.
Maléfica, outra produção recente com chancela Disney, pode servir de contraponto: porque arriscava transfigurar a história original de forma feliz e contagiante, e também porque oferecia aos seus actores (a começar, claro, por Angelina Jolie) a possibilidade de existirem face à câmara. Além do mais, quando revemos a serena elegância narrativa do desenho animado Cinderela (foi em 1950!), não podemos deixar de reconhecer que vale mesmo a pena estudar os clássicos.

sábado, março 21, 2015

"House of Cards", política & etc.

Na sua terceira temporada, House of Cards continua a ser um exemplo da mais sofisticada ficção televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Março), com o título 'Na intimidade da política'.

Quais são os impulsos temáticos que podem ajudar a explicar certos fenómenos de popularidade? Por certo temas universais como a paixão amorosa ou o medo da morte... Nesse aspecto, de Shakespeare às modernas grelhas televisivas, talvez as coisas não tenham mudado tanto quanto pensamos (ou queremos acreditar).
É evidente que a série House of Cards — cuja terceira temporada arrancou, há poucas semanas, no TV Séries — ilustra de forma exemplar esse poder universal da ficção. Afinal de contas, através das atribulações da personagem de Frank Underwood (Kevin Spacey), agora chegado à condição de Presidente dos EUA, deparamos com as convulsões mais radicais da política, vividas entre a vida e a morte (literalmente, como bem sabem os espectadores fiéis).
Ainda assim, julgo que será importante não cairmos no cinismo corrente, sempre empenhado em empolar as desilusões que muitos protagonistas da cena política vão provocando nos seus eleitores. House of Cards não é, longe disso, uma banal demonização dos políticos (coisa que, infelizmente, parece ser o único plano de trabalho de algumas linguagens que encontramos no domínio jornalístico). Se há tema subjacente à dinâmica da série, particularmente reforçado nesta terceira temporada, dir-se-ia que é o de um trágico intimismo.
Repare-se na transfiguração a que Frank é sujeito, quando compreende que a consolidação do seu poder não é acompanhada pelas figuras do seu círculo interior que, ao terceiro episódio da nova temporada, lhe dão a conhecer a decisão de não o apoiar nas eleições de 2016. E observe-se, sobretudo, a evolução da personagem da mulher do Presidente, Claire Underwood, algo perdida (ou talvez não) na teia de poder que ela própria construiu.
A crescente importância afectiva e simbólica de Claire reforçou o peso subtil da sua intérprete, Robin Wright, inclusive enquanto realizadora — já tinha assinado um episódio na segunda temporada, dirigindo mais dois (9º e 12º) na terceira.

sexta-feira, março 20, 2015

Blur, opus 8

Sem menosprezo pelas digressões musicais, mais ou menos virtuais, de Damon Albarn,  o certo é que continuávamos a aguardar um novo álbum dos Blur. Pois bem, está a chegar (a 27 de Abril): The Magic Whip surgirá doze anos depois do anterior, Think Tank (2003), e o mínimo que se pode dizer é que parece haver nele uma clara pulsão... asiática! Veja-se a capa e os dois primeiros telediscos: Go Out e There Are Too Many of Us.



Duras & Godard

Marguerite Duras e Jean-Luc Godard mantiveram um diálogo que, recentemente, se transformou em livro: são duas visões do mundo unidas por palavras e imagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Março), com o título 'Diálogos sobre a criação do impossível'.

Foi em 1977 que Marguerite Duras realizou um dos seus filmes mais belos e também mais desconcertantes: Le Camion coloca frente a frente uma escritora e um actor; ela lê o argumento de um filme que vai realizar, ele escuta-a num misto de curiosidade e ansiedade. Num gesto cuja intensidade simbólica não será preciso sublinhar, Duras atribuiu a si mesma o papel da escritora; o actor, em pose de tocante vulnerabilidade, é Gerard Depardieu.
As palavras do argumento não são ilustradas por nenhuma “materialização” das personagens — em Duras, as palavras não apelam necessariamente à figuração. Em todo o caso, o camião que o título refere existe mesmo: vemo-lo em movimento, em várias imagens sem relação explícita com o lugar onde estão as duas personagens.
Em 1979, quando rodava Sauve Qui Peut (La Vie) — entre nós lançado com o título Salve-se Quem Puder —, Jean-Luc Godard concebeu uma cena com a presença de Duras, por assim dizer, assumindo o seu próprio papel. A escritora acedeu a registar um diálogo, mas não a ser filmada, o que levou Godard a encenar a sua ausência, homenageando-a como um caloroso fantasma literário. De tal modo que, a certa altura, vemos a personagem de Jacques Dutronc (que se chama Paul Godard), algures no meio do trânsito, conduzindo atrás de um camião, e dizendo: “Cada vez que virem passar um camião, pensem que é uma palavra de mulher que passa”.
Este peculiar jogo de escondidas entre dois admiráveis criadores do cinema contemporâneo acabou por ser vivido através de três encontros que ficaram registados para a posteridade, recentemente editados pelo Centro Pompidou num livro que se intitula apenas Duras/Godard – Dialogues (com organização e comentários de Cyril Béghin). São diálogos de 1979, 1980 e 1987 (Duras faleceu em 1996, contava 81 anos) cujo fascínio envolve sempre um confronto dialéctico entre a energia das imagens e o poder primitivo das palavras. Como diz Duras, recusando qualquer “repouso” da literatura: “Não creio que a imagem possa alguma vez substituir aquilo que chamei a proliferação indefinida da palavra”.
Entenda-se: não são diálogos “especializados”, à maneira dos tecnocratas que falam da euforia do “progresso” ou da dinâmica dos “mercados” como se já não houvesse seres humanos nas trocas sociais de todos os dias. Duras e Godard arriscam pensar e questionar as própria matérias com que trabalham — palavras e imagens —, avaliando o modo como, através delas, melhor ou pior, discutimos e, num certo sentido, desbravamos o nosso lugar no mundo.
Assumindo todas as responsabilidades da arte de registar esse mundo, Godard define mesmo o filme como “um prolongamento de mim próprio”, ou antes “eu que me prolongo através dele”. Ao que Duras pergunta se tal vivência desemboca em algo de “impossível”. Sem dúvida, uma vez que “não podemos criar nada a não ser o impossível”, sublinha Godard. “Exactamente”, diz ela.

quinta-feira, março 19, 2015

Retratos de Nicole Kidman

RETRATO DE UMA SENHORA (1996)
Através de dois novos filmes — Antes de Adormecer e Paddington —, redescobrimos a admirável versatilidade de Nicole Kidman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Março), com o título 'As muitas vidas cinematográficas de Nicole Kidman'.

Em Maio do ano passado, no Festival de Cannes, Nicole Kidman não era uma estrela feliz. Perante a respeitadora frieza com que foi recebido o seu filme Grace de Mónaco, a actriz enfrentava os jornalistas de todo o mundo num tom prudentemente defensivo: segundo as suas palavras, a realização de Olivier Dahan tinha respeitado o mais possível as memórias de Grace Kelly, lenda de Hollywood e Princesa do Mónaco, tentando evitar qualquer alusão que favorecesse especulações gratuitas.
O filme não se livrou da indiferença oficial do Principado do Mónaco e, mesmo tendo tido honras de abertura oficial do certame da Côte d’Azur, foi rapidamente secundarizado nos media franceses e internacionais. Em todo o caso, o episódio deixava uma pequena lição artística: mesmo interpretando figuras verídicas, o talento de Nicole Kidman não depende de qualquer caução (histórica ou biográfica), exprimindo-se sempre melhor quando a actriz pode apropriar-se de uma personagem, transfigurando-a em coisa sua. Recordemos o revelador paradoxo: não é verdade que foi a sua elaborada composição de Virgina Woolf que lhe valeu um Oscar, em As Horas (2002)?
Os dois filmes com Nicole Kidman esta semana lançados nas salas portuguesas são significativos da sua agilidade: Antes do Amanhecer, dirigido por Rowan Joffe, adapta um “best-seller” de S. J. Watson centrado numa mulher que acorda todos os dias sem saber o que lhe aconteceu na véspera, ao mesmo tempo que pressente ter vivido uma tragédia que a sua memória teima em não lhe devolver; num registo bem diferente, ligado a uma tradição britânica simultaneamente literária e cinematográfica, Paddington, escrito e realizado por Paul King, centra-se na personagem do urso Paddington, saído dos livros de Michael Bond, e na sua demanda de um lugar para viver, viajando das profundezas da América do Sul para a casa de uma típica família de Londres.
A composição de Nicole Kidman em Paddington corresponde ao clássico conceito de “estrela convidada” (guest star), assumindo a personagem de Millicent, a má da fita que só vê o urso aventureiro como um espécimen susceptível de ser sujeito às suas artes de taxidermista. O filme ilustra, aliás, um modelo de espectáculo em que a verdadeira estrela é o próprio universo fantasista em que tudo acontece, aliás recuperando uma sofisticada tradição de estúdio a que também pertencem, por exemplo, os títulos clássicos da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger.
O caso de Antes de Adormecer é bem diferente, quanto mais não seja porque a realização de Rowan Joffe possui as vantagens, mas também as limitações, de um modelo que procura tão só garantir o funcionamento do mistério que a história instala desde as primeiras cenas. Nicole Kidman enfrenta, assim, o desafio de representar uma personagem que, literalmente, não sabe contextualizar aquilo que vê. Não por acaso, torna-se uma obcecada acumuladora de imagens — a começar por aquelas que obtém através de uma pequena câmara digital —, tentando organizá-las de modo a encontrar a narrativa que possa definir toda a sua existência.
Mesmo considerando que está longe de ser um filme fulcral na trajectória da actriz — longe, por exemplo, de títulos como Disposta a Tudo (1995), de Gus Van Sant, ou De Olhos Bem Fechados (1999), de Stnaley Kubrick — Antes do Amanhecer, corresponde a um labor de extrema solidão criativa, quanto mais não seja por esse desamparo que define a personagem central. Nessa perspectiva, podemos, talvez, aproximá-lo de outras performances de Nicole Kidman, por exemplo em Retrato de uma Senhora (1996), adaptação de Henry James assinada por Jane Campion, ou Birth – O Mistério (2004), insólito e fascinante exercício introspectivo em que Jonathan Glazer encenava a experiência surreal de uma jovem viúva que recebia a visita de um rapaz, garantindo-lhe que era o seu marido reencarnado...
As muitas vidas cinematográficas de Nicole Kidman ilustram uma evolução da sua carreira que, afinal, a afastou da linha da frente dos grandes estúdios (americanos, pelo menos), mesmo se nunca lhe retirou visibilidade nos mercados internacionais. Ironicamente, na última década, o seu maior sucesso nas bilheteiras é mesmo um filme em que ela... não aparece: Happy Feet (2006), de George Miller, delicioso desenho animado sobre o mundo dos pinguins (Kidman dá voz à figura da mãe, de nome Norma Jean).
Uma das mais prodigiosas composições de toda a sua carreira está em Rabbit Hole (2010), de John Cameron-Mitchell, interpretando com Aaron Eckhart um casal que tenta enfrentar a perda do filho num acidente. Apesar de lhe ter trazido mais uma nomeação para o Oscar de melhor actriz, o filme passou quase despercebido em todos os mercados (em Portugal, nem sequer chegou às salas, tendo sido lançado directamente em DVD com o infeliz título O Outro Lado do Coração).
Pode mesmo dizer-se que, com frequência, a actriz passou a adoptar uma atitude “experimental”. Este ano, por exemplo, deverão estrear mais dois filmes com Nicole Kidman que correspondem a estreias na realização cinematográfica: são eles Genius, de Michael Grandage, sobre o editor Max Perkins, e Lion, de Garth Davis, centrado na odisseia de uma criança indiana adoptada por um casal australiano.