PAUL KLEE Stachel, Der Clown 1931 |
Como é que a morte de Herberto Helder foi noticiada no espaço televisivo? — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (27 Março), com o título 'Na morte do poeta'.
Percorro as notícias televisivas sobre a morte de Herberto Helder. E não posso deixar de me fixar na insistência com que é referido o facto de o poeta ter sido avesso às formas de exposição pública. Verdade incontornável, sem dúvida: Herberto Helder não estava disponível para entrevistas, resistia a ser fotografado e não mostrava qualquer disponibilidade para ser uma personagem televisiva.
Percorro as notícias e pressinto o seu perverso subtexto. No fundo, aquilo que se noticia — mesmo na mais absoluta candura de quem lê a notícia — é a incómoda condição marginal do poeta. A saber: a sua exterioridade em relação ao universo específico da televisão, suas regras de exposição e matrizes de comunicação.
Podemos, aliás, compreender o reforço da sua marginalização, não através das notícias da sua morte, antes observando o modo como outros vivem — televisivamente, entenda-se. Assim, desde os protagonistas de Casa dos Segredos até ao mais patético dos “famosos”, todos os dias o espaço televisivo se dispõe a ser câmara de eco das mais apoteóticas mediocridades, sem que alguém se lembre de fazer uma notícia que, a propósito, integre o voto de silêncio do poeta. Como? Cada vez que uma dessas personagens degrada um pouco mais as palavras e a língua que é de todos nós, faz-nos falta a coragem rudimentar de fazer a verdadeira notícia. Qual? Uma que comece assim: “Fulano de tal arriscou não ficar calado...”
Acontece que o silêncio de Herberto Helder é de uma violência ensurdecedora, remetendo cada um para a verdade mais íntima da sua identidade cultural — viram a falsidade humana de algumas figuras da cena política ao cumprirem a obrigação (?) de proclamarem que Herberto Helder foi “um grande poeta”?
Mas não desesperemos. No instante seguinte, volta a ser possível repor a preguiça de todas as formatações, reocupando o espaço social com as rotinas da reality TV, novelas, concursos e a “justiça” dos resultados do futebol... Perdoemos o poeta e o seu atrevimento de morrer — e ser notícia.