domingo, março 29, 2015

No país de Alice Rohrwacher (1/2)

Com O País das Maravilhas, a italiana Alice Rohrwacher ganhou o Grande Prémio de Cannes: para ela, trata-se de construir ficções e filmá-las como se fossem documentários — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (25 Março), com o título '“Inventámos um mundo e depois fizemos um documentário”'.

A sua trajectória pessoal já passou por Portugal?
É verdade. Comecei por viver em Portugal como aluna do programa Erasmus; depois, estudei documentarismo na Videoteca Municipal de Lisboa e trabalhei como assistente de montagem de Luciana Fina, uma italiana, realizadora de documentários, que vive em Lisboa. E era frequentadora regular da Cinemateca.

Esta sua segunda longa-metragem de ficção, O País das Maravilhas [depois de Corpo Celeste, 2011], quase começa como um documentário sobre uma família no campo — o projecto envolvia essa vontade de documentar uma determinada realidade?
Em boa verdade, no filme tudo é falso, no sentido em que nada funciona num plano documental. Ao mesmo tempo, gosto de dizer que inventámos um mundo e, depois, de certa maneira, fizemos um documentário sobre esse mundo. Tudo é fabricado, estava tudo escrito, mas devido à consistência dessa fabricação, pode parecer um documentário.

Por exemplo?
Por exemplo, quando num filme há necessidade de ter uma horta, ou um jardim com plantas, muitas vezes compram-se as plantas já crescidas e colocam-se na terra — o que se procura é “aquela” imagem das plantas. No nosso caso, plantámos mesmo uma horta, ou seja, cinco meses antes da rodagem definimos que plantas queríamos, semeámo-las, tratámos delas e, no fim, tínhamos uma verdadeira horta. E durante a rodagem consumimos aquilo que tínhamos criado na horta.

Que efeitos esse processo teve no trabalho dos actores?
Sempre me interessou um cinema em que o método, a maneira de chegar a determinadas coisas, acaba por ser mais importante que as próprias coisas. Nesse sentido, os actores acabaram mesmo por viver naquele mundo, a ponto de todos acreditarmos profundamente naquela família — afinal, os seus membros existiam ali mesmo, à nossa frente.

E até que ponto os actores marcaram as personagens com elementos do seu próprio mundo interior?
Marcaram mesmo para além do próprio filme. Há até casos, como o de Cocò, interpretada por Sabine Timoteo, em que a personagem acabou por existir mais para nós do que na montagem final.

[continua]