Anna Magnani — A Voz Humana (1948) |
São dez filmes para ver e rever, descobrir ou redescobrir, a obra imensa de Roberto Rossellini — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Março), com o título 'Dez filmes para redescobrir Rossellini e... Anna Magnani!'.
O menos que se pode dizer do ciclo dedicado a Roberto Rossellini — começou no dia 26, em Lisboa (Espaço Nimas); a partir de 9 de Abril, no Porto (Teatro Municipal Campo Alegre) — é que através dos seus filmes será possível contrariar qualquer visão banalmente museológica da grande tradição cinematográfica italiana. Estamos perante uma dezena de títulos — de Roma, Cidade Aberta (1945) a Índia (1959) — que envolvem as transformações práticas e conceptuais do neo-realismo, ao mesmo tempo que rasgam os caminhos da modernidade cinematográfica.
Rossellini foi o arauto de uma revolução do olhar que, pelo menos transitoriamente, dispensou os artifícios tradicionais dos estúdios, celebrando as possibilidades humanas e narrativas de relação com a pulsação dos lugares. É bem certo que tal opção resultava também da realidade crua da guerra: em meados dos anos 40, os estúdios italianos estavam em ruínas e, como a sociedade em geral, careciam de reconstrução. Em todo o caso, quando Rossellini filma Alemanha, Ano Zero (1948), na sua crueza documental, a desolação da cidade de Berlim é também o princípio de uma elaborada dramaturgia. Ou quando coloca em cena Ingrid Bergman, por exemplo em Stromboli (1950) ou Viagem em Itália (1954), a luminosidade da actriz nasce do confronto das singularidades de um corpo com a magia da
paisagem (o vulcão, no primeiro caso, as ruínas de Pompeia, no segundo).
paisagem (o vulcão, no primeiro caso, as ruínas de Pompeia, no segundo).
Neste nosso tempo tantas vezes seduzido pela desumanização figurativa do digital (o que, entenda-se, não envolve qualquer resistência de princípio às transformações do cinema através do digital), faz sentido sublinhar que a modernidade de Rossellini passa também por essa disponibilidade, estética e afectiva, para encontrar os caminhos dos filmes através dos actores.
As primeiras sessões do ciclo são mesmo dominadas por Anna Magnani (1908-1973). Não será ainda com a sua mais lendária interpretação com Rossellini, Roma, Cidade Aberta (primeira apresentação em Lisboa a 2 de Abril), mas sim através de um filme algo esquecido, O Amor (1948), reunindo duas histórias de muitos ecos simbólicos: A Voz Humana, sobre uma mulher ligada a um telefone de muitas angústias, adapta a peça homónima de Jean Cocteau; O Milagre centra-se numa mulher que, depois de aceitar água de um peregrino, acredita estar grávida de São José — o homem é interpretado por Federico Fellini, também autor da história original (as sessões de O Amor incluem também A Força e a Razão, registo de 1973, para a RAI, de uma conversa de Rossellini com Salvador Allende).
Antecipando o modelo de “filme-de-episódios”, muito popular durante a década de 60, O Amor envolve uma celebração dos dotes de representação de Anna Magnani (aliás, homenageada numa legenda assinada pelo próprio Rossellini). Mais do que isso: nos seus dois breves capítulos, especialmente em A Voz Humana, a relação carnal entre a actriz e a câmara de filmar condensa o fascínio radical do cinema como máquina de reprodução e recriação do mundo.