Grande acontecimento no panorama do cinema nas salas (mais tarde chegará ao DVD): dez filmes de Roberto Rossellini são repostos em cópias restauradas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'Para redescobrir a herança estética e a exigência ética de Rossellini'.
[ 1 ]
Desde os títulos emblemáticos do neo-realismo italiano — Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (1948) —, Rossellini desenvolveu uma visão do mundo que nunca foi indiferente a um impulso visceralmente documental. Claro que todos são inseparáveis de elaborados argumentos, escritos com colaboradores como Sergio Amidei, Carlo Lizzani ou Federico Fellini (que assinaria a primeira longa-metragem a solo, O Sheik Branco, em 1952); o certo é que Rossellini arriscava muitas vezes na utilização de cenários reais para inscrever histórias em que se avaliavam as heranças dramáticas da Segunda Guerra Mundial. Alemanha, Ano Zero encena mesmo a saga de um rapaz no labirinto muito real das ruínas de Berlim, conseguindo a proeza, de uma só vez cinematográfica e política, de olhar para o “outro” lado da história para além de qualquer maniqueísmo moral ou ideológico.
Tal capacidade adquire uma intensidade paradoxal em filmes que não são estranhos a uma sofisticada sensibilidade melodramática, em particular aqueles em que Rossellini dirigiu Ingrid Bergman (com quem foi casado no período 1950-57). Viagem em Itália (1954) constitui, nesse aspecto, uma proeza radical, desmontando a crise de um casal como um processo íntimo de descoberta dos próprios lugares — e isto através dos mais rudimentares meios de produção. Sempre com admirável poder de síntese, Godard recordava o espanto que foi a sua descoberta: afinal de contas, era possível fazer um filme “com alguns trocos” e, no limite, “com duas pessoas dentro de um carro”.
Exemplo extremo e fascinante dessa dinâmica entre personagens e lugares será Stromboli (1950), o primeiro dos cinco títulos em que Rossellini dirigiu Ingrid Bergman (o ciclo inclui ainda Europa 51 e O Medo, respectivamente de 1952 e 1954, só faltando Giovana d’Arco al Rogo, de 1954). A história da solidão de uma mulher na ilha de Stromboli projecta-nos numa dimensão trágica, de perturbante simbolismo, em que tudo passa pela sensação muito física de “reportagem” através da paisagem assombrada pelo vulcão da ilha.
O programa de reposições inclui ainda dois dos mais raros e sugestivos “desvios” da obra de Rossellini: O Amor (1948), com Anna Magnani, e A Máquina de Matar Pessoas (1952), uma inclassificável comédia. Seja como for, a sua herança não pode ser desligada de uma paixão realista que, curiosamente, na fase final da sua carreira, passou pela produção televisiva.
Falecido em 1977, contava 71 anos, Rossellini acreditou que a televisão podia ser o espaço de uma renovada linguagem de formação cívica e conhecimento histórico (este ciclo inclui também A Força e a Razão, uma entrevista a Salvador Allende, produzida pela RAI e difundida em 1973). Nessa medida, a par de Godard ou Michelangelo Antonioni, foi pioneiro na descomplexada abordagem do modelo de telefilme, a começar por A Tomada do Poder por Luís XIV (1966). Se Rossellini deparasse com os horrores quotidianos da reality TV, não tenhamos dúvidas que seria um dos mais empenhados resistentes a todas as formas de populismo contemporâneo — razão suplementar para, ao redescobrirmos os seus filmes, revalorizarmos a crença mais clássica nos valores básicos do humanismo.