Franco Citti, ACCATTONE (1961) |
Em 2015, assinalam-se 40 anos sobre a morte de Pier Paolo Pasolini: como lidamos com a sua herança? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Março), com o título 'Sob o signo de Pier Paolo Pasolini'.
Os partidos políticos há muito desistiram de qualquer reflexão regular sobre a realidade das imagens. Dir-se-ia que lhes bastam as compensações narcisistas do espelho fátuo da televisão. E, no entanto, no nosso presente de muitas mediatizações, a questão das imagens realistas — ou melhor, do realismo enquanto fenómeno imagético — não pode deixar de estar no centro de qualquer pensamento político minimamente exigente.
Há uma razão quotidiana, incontornável, para tal exigência: o agressivo e despudorado triunfo do Big Brother e seus derivados gerou um novo dispositivo de percepção do povo. O povo? Precisamente. A palavra caiu em desuso em todos os discursos políticos, mas regressou pela porta da reality TV. Pode mesmo dizer-se que a reality TV se apropriou de um enunciado militante que, em contexto bem diverso, alimentou outras celebrações, algumas euforias e não poucos desastres de comunicação: “Se isto não é o povo, onde é que está o povo?”.
Estes temas vão, por certo, regressar ao longo do ano, quanto mais não seja por causa do efeito de uma efeméride: no dia 2 de Novembro, completar-se-ão 40 anos sobre o assassínio de Pier Paolo Pasolini, cineasta, cidadão do mundo, que nunca abdicou de reflectir sobre os modos de representação das classes populares e, em particular, sobre as ilusões consumistas (em grande parte televisivas) que, com metódica angústia, observava na sua Itália.
Que a herança estética de Pasolini permanece muito viva, eis o que pudemos observar através de dois filmes que, em meses recentes, chegaram às salas portuguesas: Pasolini, do americano Abel Ferrara, um retrato íntimo, não tanto do realizador de filmes, mas mais do intelectual que nunca cedeu a qualquer facilidade populista; e O Pequeno Quinquin, do francês Bruno Dumont, saga rural que revaloriza esse realismo muito “pasoliniano” que começa na integração de actores populares.
Uma das primeiras evocações dos 40 anos do desaparecimento de Pasolini foi um magnífico dossier, intitulado “Génies de Pasolini”, publicado pela revista francesa Le Magazine Littéraire (Janeiro 2015). Num artigo desse dossier, o historiador Luciano de Giusti evoca o modo como Pasolini explicou a sua “passagem” da literatura para o cinema como uma espécie de libertação dos “signos linguísticos”. Dizia ele: “Quando faço um filme, não há entre mim e a realidade o filtro do símbolo ou da convenção, como acontece na literatura. Por isso, na prática, o cinema foi uma afirmação do meu amor pela realidade.”
Quando vemos ou revemos presenças como a de Franco Citti em Accattone (primeira longa-metragem de Pasolini, lançada em 1961), compreendemos que o seu retrato dos subúrbios de Roma nada tem a ver com qualquer paternalismo mais ou menos pitoresco. No universo pasoliniano, o povo não é uma caução estética, mas sim uma entidade que desafia a estabilidade de qualquer estética — eis um risco político que o nosso presente tão mal conhece.