segunda-feira, abril 30, 2012

A reinvenção de John Cage por Rui Horta

Como revisitar John Cage? Mais do que isso: como dançar com Cage? Com a coreografia, incluindo luz e cenário, de Danza Preparata (Fundação Gulbenkian - Grande Auditório, 29 Abril), Rui Horta avança com respostas fascinantes, ao mesmo tempo metódicas e racionais, imprevisíveis e selvagens.
O desafio consistia em reinventar as Sonatas e Interlúdios de Cage, para piano preparado, conferindo-lhes a dimensão, e também a duração, de uma performance de palco em que transcrição e ritual, memória e transfiguração fossem elementos complementares e cúmplices. No piano, Rolf Hind é um exemplo extraordinário de concisão e precisão, sem que isso invalide uma permanente sensação de redescoberta, naquele momento, das partituras originais. Dançando, a magnífica Sylvia Bertoncelli devolve à noção de linguagem do corpo a sua genuína nobreza — uma linguagem, afinal, para desafiar todas as outras linguagens (como Barthes, que se propunha seguir as ideias do seu corpo "porque o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu").
JOHN CAGE
1912-1992
Tudo se passa como se a música fosse menos a transcrição de um qualquer ideal sonoro, exterior à nossa experiência comum, e nascesse antes das infinitas imperfeições que nos conferem humanidade. Será esse, talvez, o sentido mais genuíno do carácter preparado do piano. Que é como quem diz: ao programar a introdução dos mais diversos objectos nas cordas do piano, Cage apela à produção de sons que integrem a nostalgia de um mundo alternativo, tanto quanto a desarmada nitidez da materialidade do nosso mundo.
Rui Horta assume tal dispositivo até às mais extremas consequências, práticas e poéticas, concebendo a sua coreografia como um labor específico para corpo preparado. Daí que a dança evolua como uma metódica interrogação das fronteiras figurativas do próprio corpo ou, se assim nos quisermos exprimir, da nossa identidade corporal (o que, hélas!, rima com identidade cultural).
Daí também a exclusão de qualquer ostentação "espectacular" que se esgote numa exibição de versatilidade física. O que Sylvia Bertoncelli representa em palco é, afinal, uma narrativa contra o destino: num cenário de calculada geometria (em que o próprio piano integra a cenografia), desenhando novas formas a partir do "equilíbrio" mítico do quadrado (no chão e na parede de fundo), assistimos à deambulação íntima de um corpo que connosco partilha o leque imenso das suas possibilidades.
O rigor cósmico de cada gesto não se esgota, assim, em nenhum ideal fechado de perfeição — provavelmente, a lição mais radical de Cage enraíza-se na consciência de uma modernidade que não abdica de aproximar a singularidade artística da imprevisibilidade e do ruído do quotidiano. Daí que esse rigor coexista com o seu esplendoroso contrário: num momento revelador, a bailarina traz ao palco um gato (uma gata, sabemos de fonte segura...), numa conjugação simbólica de dois corpos programados de modo distinto e, afinal, tão admiravelmente (e biologicamente) semelhantes.
No território delimitado do palco, no tempo insubstituível da performance, Danza Preparata consegue a proeza rara de nos expor às vibrações de uma arte (música, dança, talvez cinema...) que não abdica de contrariar todas as ilusões históricas, passadas e presentes, de qualquer "naturalidade". Preparar o piano, tal como preparar o corpo, consiste em abrir uma brecha através da qual se insinuam novas formas de relançar o velho e angustiado to be or not to be. Afinal, assim como o aborrecimento é essencial ao prazer (Barthes, encore), a angústia pressente a possibilidade da alegria.

>>> Site oficial de John Cage.
>>> Biografia de Rui Horta.
>>> Programa de Danza Preparata.

Um dos discos do ano, sem dúvida!

Depois de um promissor álbum de estreia há dois anos, Perfume Genius (o projeto de Mike Hadreas) apresentou já em 2012 Put Your Back N 2 It, que até agora divide com o magnífico Fin, de John Talabot, o melhor da colheita dos quatro primeiros meses do ano. Um novo teledisco entra em cena para mais uma canção do alinhamento deste segundo álbum. Mike Hadreas escolheu este Dark Parts. E o teledisco é assinado por Winston H. Case.

Novas edições:
Graham Coxon, A + E


Graham Coxon
“A + E”
Parlophone / EMI Music
3 / 5

Não podemos reduzir a vivência exterior aos Blur dos quatro músicos aos (muitos) feitos de Damon Albarn (por muito que morem num patamar de excelência discos como os dois primeiros que gravou pelos Gorillaz ou o álbum do coletivo The Good, The Bad and The Queen). Guitarrista, Graham Coxon chegou a abandonar o grupo, regressando para os reencontros em palco e ocasionais gravações dos últimos anos. Ora esses reencontros aconteceram precisamente depois de ter editado The Spinning Top, o seu anterior álbum a solo (que data já de 2009). Quase quatro anos depois, os caminhos de recorte mais alinhado com heranças folk que ali visitava cedem palco a uma reunião do guitarrista com a alma elétrica primordial que recorda não apenas de primeiros discos a solo como de memórias vividas a bordo dos Blur. Há em muitas das canções de A+E uma presença de guitarras de linhas angulosas e formas abrasivas, recuperando – como se escuta em Advice ou Running For Your Heart – a alma mais próxima de surtos de intensidade de um fulgor punk que podemos recordar de um Popscene, igualmente animados por uma demanda por um certo melodismo pop (porém, convenhamos, sem os mesmos resultados finais). Mais interessante num alinhamento na verdade não muito dado a grandes fugas ao clima que o domina, são os recursos a electrónicas (simples, baratas e coloridas) que fazem de momentos como What’ll It Take ou The Truth os instantes onde se sente um músico em desafio a si mesmo, alcançando claramente aqui os melhores momentos de um álbum que, como grande parte da sua obra a solo, parece viver algo à sombra dos feitos maiores, mais versáteis e desafiantes, de Damon Albarn.

IndieLisboa 2012 (dia 5)


Quinto dia do IndieLisboa, conta hoje entre os destaques com a passagem de The Loneliest Planet, de Julia Loktev, pelas 21.30 na Culturgest. Protagonizado por Gael Garcia Bernal e Hani Furstenberg, o filme acompanha uma caminhada de montanha de um jovem casal e observa como um pequeno gesto, que não pode ser esquecido, pode mudar uma relação. Entre as muitas curtas a ver nos vários programas hoje passa uma vez mais Cerro Negro, de João Salaviza (no programa Competição Internacional Curtas 7, no pequeno Auditório da Culturgest pelas 16.45). O festival passa ainda Palácios de Pena, de Gabriel Abrantes (no programa Competição Nacional Curtas 4, às 19.00 no Grande Auditório da Culturgest).

No novo blogue de cinema do DN escrevi sobre mais dois filmes que vi no Indie Music:


Amma Lo-Fi, de Ingibjörg Birgisdóttir, Kristín Björk Kristjánsdóttir e Orri Jónsson

“A sala está arrumada. Não apenas arrumada, mas bem limpa. Junto a um armário um naperon de renda cobre um sintetizador. E eis que chega a protagonista. Nasceu na Dinamarca, lembra-se do dia em que os alemães entraram na sua cidade, dos anos que viveu no Brasil e de como, mais tarde, procurou nova casa na Islândia, onde vive. Aos 70 anos Sigridur Nielsdóttir descobriu a música. Ou, antes, descobriu que podia fazer canções. Primeiro na cozinha, mudando o aparato para a sala do apartamento na cave, onde vive, pouco depois. Hoje já tem mais de 50 álbuns gravados, é conhecida como a “avó lo-fi” e está transformada numa figura de culto contando entre os seus admiradores com os Múm (banda islandesa cuja música já chegou a estas latitudes)”. Ler aqui o texto completo

Wild Thing, de Jérome de Missolz
“Partilhar memórias pessoais com a visão de quem as protagonizou. Foi este o motor que conduziu Jérôme de Missolz até Wild Thing, uma história pessoal de seis décadas de cultura rock’n’roll. O realizador parte assim em busca “dos últimos dos últimos incorruptíveis”, o filme propondo um percurso cronologicamente arrumado dos acontecimentos desde as primeiras erupções de novas ideias com Little Richard e outros primeiros heróis como Chuck Berry (a quem Iggy Pop chama o Shakespeare do rock’n’roll) para avançar depois pelos anos 60 (onde começa por focar os Animals, Rolling Stones e The Who, abrindo espaço aos Byrds, que descreve como “a reação americana aos Beatles” e depois ao psicadelismo, escutando os Pink Floyd, citando os Doors e ouvindo John Echols, dos Love)” – Ler aqui o texto completo

E hoje escolho eu...


Ao longo deste mês aqui recordámos alguns episódios na obra dos Rolling Stones, que celebram em 2012 os 50 anos de vida. Hoje recordo aquele que é o meu álbum preferido da banda.

É uma espécie de ovni. E claramente o mais atípico dos álbuns dos Rolling Stones. Resposta a Sgt. Pepper’s dos Beatles? É uma comparação demasiado fácil e peca por ser redutora. Na verdade eram muitas as bandas desse tempo no mesmo comprimento de onda, a demanda encaminhando-os por trilhos semelhantes ou paralelos, as afinidades partilhadas acabando por estabelecer entre muitos dos discos pop/rock editados em 1967 um sentido de “momento” como poucos instantes da história da música popular conheceram. E o mapa não se esgota nos Beatles e nos Stones, a presença de nomes como os Pink Floyd (ainda liderados pela alma visionária de Syd Barrett), Love, Doors, Jefferson Airplane, Small Faces, Grateful Dead e até mesmo os Byrds ou Beach Boys sendo fulcral para lançar os traços maiores de uma história que poderia convocar ainda nomes menos vezes lembrados como uns Electric Prunes, Seeds ou ? & The Mysterons...

Entre 1966 e 67 a música assimilou outras influências e ganhou novas cores e formas. A progressiva abertura dos Rolling Stones para lá das linhas mais canónicas de ascendência nos blues que haviam redigido o seu bilhete de identidade começam a manifestar-se em Aftermath, alargando-se em Between The Buttons e alcançando expressão maior em Their Satanic Majesties Request. A capa dá o mote. Aqui há cor, fantasia e liberdade. Aqui há o culminar de um período em que a visão pop de vistas largas de Brian Jones dominou tudo e todos. Aqui há grandes canções como She’s A Rainbow ou 2000 Light Years From Home e episódios invulgares como o belíssimo In Another Land, com voz de Bill Wyman (que chegou mesmo a ser single). Aqui há sinais de uma banda atenta ao seu tempo e entregue ao desafio de o ajudar a inventar. Aqui há ecos da música de vanguarda de então e também de heranças escutadas no teatro (que então conheceram expressão maior no contemporâneo álbum de estreia de David Bowie).

É certo que há invenção nos Stones pós-1967. E basta citar títulos de álbuns como Beggars Banquet, Let It Bleed, Sticky Fingers ou Exile On Main Street para reconhecer quão marcantes foram no seu reencontro com as linguagens primordiais do rock’n’roll. Mas se excluírmos episódios posteriores como o flirt ao disco feito em Miss You e esse outro episódio maior que foi Emotional Recue, nunca mais os Stones foram tão profundamente aventureiros e ousados como neste seu álbum de 1967.

 

Imagens de uma atuação dos Rolling Stones nos dias de Their Satanic Majesties Request, ao som de 2000 Light Years From Home, um dos singles extraídos do álbum. Além das marcas de identidade de uma música caleidoscópica que caracterizava o psicadelismo (note-se o uso de rebobinados, muito característico deste tempo, que sugerem um tom inebriado à música) a canção explora ecos de experiências da música de vanguarda de então (Stockhausen e seus contemporâneos eram, então, escutados pelos nomes de linha da frente da cultura pop/rock).

domingo, abril 29, 2012

Berlioz, McCreesh e as imagens

Uma gravação da Grande Messe des Morts, de Berlioz, abre o catálogo da Winged Lion, a editora criada pelo maestro Paul McCreesh. O disco assinala ainda o início de uma série de colaborações suas com músicos polacos.

É assombrosa, de facto, a força das imagens. E hoje é impossível escutar o Danúbio Azul de Johann Strauss sem pensar em 2001: Odisseia no Espaço de Kubrick, a Cavalgada das Valquírias de Wagner sem lembrar a “carga” aérea em Apocalypse Now de Coppola ou o adagietto da Sinfonia Nº 5 de Mahler sem evocar a adaptação de Morte em Veneza por Visconti. E hoje, ao escutar a nova gravação da magistral Grande Messe des Morts (muitas vezes referida simplesmente como o Requiem) de Hector Berlioz (1803-1869), não escapo a duas sequências de A Árvore da Vida, de Terrence Malick, em particular a sequência do reencontro vivida na praia, perto do final, ao som de parte do Agnus Dei que fecha esta obra de 1837.

Como o filme de Malick, esta obra de Hector Berlioz é também ela uma reflexão sobre a fé que se socorre de uma visão maior da sua arte para atingir um patamar invulgar de grandiosidade, emotividade e, podemos acrescentar, excelência. Originalmente encomendada para um serviço religioso em memória de um general morto numa tentativa de assassinato ao rei francês Luis Filipe em 1837, a grande missa pelos mortos recuperou elementos de obras que Berlioz deixara inacabadas por por estrear – como a Missa Solene, o oratório Le Dernier Jour du Monde ou a Fête Musicale Funèbre a la Mémoire des Hommes Ilustres de La France – e usa recursos instrumentais e humanos de grande escala, procurando um efeito dramático maior, na verdade arrebatador. A ocasião para a qual a missas fora encomendada acabou cancelada, mas uma oportunidade de estreia chegou pouco depois, numa outra cerimónia em memória de outro militar, então morto em campanha no Norte de África. E hoje é episódio com características quase míticas o momento em que pela primeira vez esta música ganhou corpo e som, a 5 de dezembro desse mesmo 1837 na Igreja dos Inválidos, em Paris.

Obra maior da história da música coral, com heranças projetadas em várias outras obras e compositores (o texto de Hugh Macdonald no booklet refere nomes como os de Verdi, Saint-Saëns, Messiaen e Britten), a Grande Messe des Morts foi escolhida por Paul McCreesh (uma das maiores autoridades do nosso tempo nos espaços da música coral) para encetar não apenas um relacionamento com orquestras, solistas e coros polacos (de Wroclaw, entre nós mais conhecida como Breslávia, que será Capital Europeia da Cultura em 2016) como o lançamento da sua própria editora discográfica. Gravada na igreja de Maria Madalena, em Wroclaw, em setembro de 2010, esta gravação escuta a grandiosidade vulcânica da visão de Berlioz com a delicadeza das linhas que McCreesh tão bem comanda. Resultado: um dos grandes momentos discográficos dos últimos tempos.

IndieLisboa 2012 (dia 4)


Quarto dia do IndieLisboa 2012 apresenta dois focos de atenção em duas salas ao mesmo tempo. Há que escolher (e ambos os filmes repetem). Na Culturgest, às 21.30, é apresentado Em Segunda Mão, filme de Catarina Ruivo que representa o derradeiro trabalho do ator Pedro Hestnes (repete dia 1, no Cinema Londres). Pelas 21.45 o Cinema São Jorge propõe Andrew Bird: Fever Year, documentário de Xan Aranda que acompanha o músico nos dias que se seguiram ao lançamento de Noble Beast, ouvindo-o em palco, escutando-o em estúdio ou em digressão (sendo magnífico o instante em que vemos Lusitania, do novo disco, a nascer num quarto de hotel, ao lado de Annie Clark). O filme repete dia 4, novamente no Cinema São Jorge. Ainda no São Jorge, mas na sala 3, às 18.45 passa Un Autre Homme, filme de 2008 do suíço Lionel Baier que toma o cinema como motivo de reflexão numa história que coloca nas mãos de dois críticos (ela de um jornal da cidade, ele de um semanário da província). Deixa contudo entornar temperos a mais e a história acaba com mais sabor a lugares-comuns e as personagens algo reduzidas a caricaturas, o minimalismo que toma por método de trabalho funcionando contudo a seu favor. Atenção à passagem de momentos do histórico A Canção de Lisboa, de José Cottinelli Telmo, um entre os vários episódios claramente cinéfilos deste filme em que o cinema olha para o seu próprio universo.

No blogue dedicado aos festivais de cinema do DN escrevi sobre dois dos filmes que passaram já no Indie Music.


Sobre Inni, de Vincent Morisset, que toma os Sigur Rós como objeto da sua atenção, digo que “mais próximo do que poderia ser o olhar do espectador que da soma de visões e factos que o documentarista escuta e olha”, o filme “é mais um espaço de sensações que um objetivo retrato de uma banda”.


Falando de Punk In Africa, de Keith Jones, afirmo que: “com mais entrevistas atuais que imagens de época (e falta ao filme mais representações da música de que se fala)”, o documentário “vinca o papel político e social do movimento, o seu grito de revolta nos dias do apartheid e, em concreto, o espaço que então abriu às primeiras bandas multi-raciais do país”.

Podem ler aqui os textos completos.

Entre diálogos (e com guitarras)

Discografia David Sylvian
"The First Day" (álbum com Robert Fripp), 1993


O reencontro com Robert Fripp correspondeu, após a experiência conjunta com os antigos parceiros dos dias vividos nos Japan (via Rain Tree Crow) ao segundo trabalho vocal de David Sylvian nos anos 90 (e o último antes do regresso aos discos em nome próprio, que chegaria apenas em 1999 em Dead Bees on a Cake). Anunciado pelo promissor single Jean The Birdman, The First Day é um álbum de alinhamento relativamente curto onde o trabalho de escrita revela o espaço mais próximo que Sylvian viveu com heranças da cultura rock desde os primeiros dois discos dos Japan. É um disco desigual, com momentos de escrita cuidada – como se escutou no single ou no igualmente marcante God’s Monkey – e com espaço de mais evidente atenção sobre as linguagens do momento em Darshan (que teria vida própria num outro disco editado pouco depois), parte do alinhamento não repetindo a mesma concentração de tão boas ideias. É talvez o menos interessante dos álbuns vocais de Sylvian.

sábado, abril 28, 2012

Talk Talk, 1984

No momento em que surgem reeditados os quatro primeiros álbuns dos Talk Talk, recordamos aqui o teledisco de uma das canções-chave da sua obra. Do álbum It's My Life, editado em 1984, este é Such a Shame. Repare-se nos jogos de contrastes entre as expressões faciais e as palavras cantadas, desafiando os limiares do artifício e da encenação num quadro pop onde, em lugar da velha máxima "nem tudo o que parece é", nem tudo o que é, parece.

Indie Lisboa 2012 (dia 3)


O terceiro dia do IndieLisboa 2012 assinala a antestreia nacional de 4.44 Last Day On Earth, o novo filme de Abel Ferrara, que passa na Culturgest pelas 21.30. O dia representa ainda o início de uma mostra do cinema do realizador suíço Lionel Baier, com a exibição de Le Garçon Stupide (filme de 2004) que, juntamente com a curta Emilie de 1 à 5 (já de 2012) passa hoje pelas 21.30 no Cinema São Jorge. No programa da secção Indie Music destaque hoje para Wild Thing, de Jerôme de Missolz, um livro de memórias sobre a cultura rock que passa por figuras como as de Genesis P Orridge, os Velvet Underground, Iggy Pop ou Lydia Lunch. Passa à meia noite no Cinema São Jorge. De Neil Young chega mais um retrato por Jonathan Demme, desta feita em Neil Young Journeys, histórias captadas pelo realizador numa viagem de carro em maio de 2011, contadas a caminho do Massey Hall, em Toronto.

No blogue de cinema do DN, onde estamos a acompanhar o IndieLisboa há dois novos textos:

Into The Abyss, de Werner Herzog, por Flávio Gonçalves - ler aqui
De Jueves a Domingo, de Dominga Sottomayor, por Nuno Carvalho - ler aqui

Um reencontro com Robert Fripp

Discografia David Sylvian 
"Jean The Birdman" (single com Robert Fripp), 1993

Tinham já colaborado antes. De resto, o álbum Gone To Earth, de 1986, resultava de uma intensa colaboração de David Sylvian com Robert Fripp. Em inícios dos anos 90, num a etapa (longa) durante a qual Sylvian não assinou discos em nome próprio, foi ao lado de Robert Fripp que assinou um dos raros instantes de relacionamento com a canção que viveu ao longo dessa década. Gravaram juntos um álbum (ao qual se seguiu uma digressão, um disco ao vivo e um de remisturas). Como cartão de visita para esta nova colaboração foi editado o single Jean The Birdman, canção de recorte clássico, claramente dominada pela força da guitarra elétrica. Lançado em dois CD singles complementares, o conjunto revelou uma mão cheia de novos "lados B".



Imagens do teledisco de Jean The Birdman.

Nos 40 anos de 'Pink Moon' (5)

Continuamos a publicação integral de um texto sobre Nick Drake publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os 40 anos da edição de 'Pink Moon'. O texto, com o título 'Como Nick Drake se transformou num ícone' foi publicado a 25 de fevereiro.

Como nasceu então o culto que, 40 anos depois, faz de um dos mais ignorados cantores do seu tempo um dos ícones mais admirados por várias gerações de músicos e melómanos? Patrick Humphries debate o que fez com que Nick Drake, e não tantos outros cantautores da sua geração, acabasse como tamanho ícone de referência. “Será o seu potencial de pin-up(30), pergunta? Ou a morte prematura? Mas em ambas as respostas encontra tantos outros casos sem igual repercussão. Ou seja, não é por aí... “Com Nick Drake, a obsessão pode ser tão forte que se torna progressivamente difícil separar a vida do mito. Ele tinha uma aparência magnífica, e nas fotografias a sua timidez e relutância em enfrentar a câmara só lhe acentua mais ainda o brilho. Há algo ausente nas fotografias de Nick Drake, a sensação de que se escapa para longe das lentes e que, se voltarmos a olhar, pode ser que tenha mesmo ido embora. Como quem tenta fotografar um fantasma ou apanhar um pedaço de fumo...” (31).

Humphries marca o início do nascimento de um culto em torno do músico em 1979, quando a Island Records lança Fruit Tree. Era uma caixa antológica, reunindo a obra em disco de Nick Drake (os três álbuns lançados entre 1969 e 1972), juntando os quatro temas gravados nas sessões de 1974. O título da antologia foi sugerido pela mãe de Nick Drake, recordando o tom assombradamente profético que encontrara em Fruit Tree, canção do álbum de 1969 onde se ouvia:

Fame is but a fruit tree 
So very unsound. 
It can never flourish 
Till its stock is in the ground. 
So men of fame 
Can never find a way 
Till time has flown

A partir de uma certa altura Joe Boyd recorda que começou a receber pedidos vindos dos lugares mais variados. Pessoas que queriam saber mais sobre Nick Drake, dizendo-lhe o quanto a sua música os havia marcado e mesmo influenciado. Os pais, perante estas primeiras manifestações de carinho e atenção para com a música do seu filho, chegaram mesmo a deixar que alguns desses admiradores pernoitassem no seu quarto (em Far Leys) e autorizaram que fizessem cópias das suas gravações caseiras. Mal imaginando, naturalmente, o fenómeno de culto que surgiria mais tarde e que algumas das cópias que então haviam autorizado se transformariam em bootlegs (32) algum tempos depois. (33) “Depois começamos a receber solicitações sobre argumentos para cinema e biografias. E quando o anúncio da Volkswagen, com a canção Pink Moon, chega aos ecrãs de televisão americanos no final dos anos 90, havia já um culto de admiradores de Nick Drake, os seus discos vendiam ao ritmo de dezenas de milhar por ano e tornara-se moda para jovens cantores citá-lo como uma das suas influências” (34), descreve Joe Boyd.

O single dos Dream Academy
Um segundo episódio marcante surge em 1985 quando o grupo Dream Academy vê transformado num inesperado (e pontual) êxito global o tema Life In a Northern Town, dedicado a Nick Drake. E na sequência do sucesso do single surge a compilação Heaven in a Wild Flower, com título tirado de Auguries of Innocence, um poema de 1802 de William Blake. Em 1987 é lançado Time of No Reply, disco criado por Joe Boyd reunindo material inédito entretanto recolhido, juntando aos quatro temas gravados em estúdio em 1974 uma série de canções registadas nas sessões de Five Leaves Left, duas versões alternativas de temas desse mesmo álbum e ainda algumas outras gravadas em sua casa. A sua música, mesmo traduzindo ecos do que então acontecia no panorama da folk inglesa, respirava marcas de personalidade que a distinguiam dos demais criadores, afirmando-a, desde logo, única. Atemporal, foi já dito por muitos dos que sobre ele escreveram. De facto. Mas da forma muito peculiar como afinava a sua guitarra à técnica de interpretação (elogiada por todos os que o conheceram pessoalmente), da voz tão quente como distante, da visão poética que levava às palavras que usava nas canções, há muitos mais argumentos para explicar o rapaz raro, pouco dado a falar com os outros, que ali se mostrava.

Joe Boyd lembra que Nick ouvia Bob Dylan, Bert Jansch, Davy Graham, figuras dos blues como Josh White e Brownie McGhee, compositores como Delius e Chopin e nomes do jazz como Miles Davis ou Django Reindhardt. Entre as suas leituras recorda poesia inglesa. “Mas a análise das suas influências tem dificuldade em explicar a originalidade da sua música, em particular as formas dos seus acordes. Quando visitei a casa da família em Tanworth-in-Arden, vi um piano na sala com partituras sobre o seu tampo. A sua mãe, Molly, uma mulher bela, divertida e energética, referiu que ela tinha escrito umas ‘peças amadoras’. E muitos anos depois da morte de Nick e de Molly, Gabrielle deu-me uma cassete com as canções da sua mãe. Ali, nos seus acordes ao piano, estão as raízes das harmonias de Nick. A sua reinvenção da forma standard de afinação da guitarra era a única forma para estar em sintonia com a música que tinha escutado quando estava a crescer. As composições de Molly são datadas, mas muito belas e não apenas porque antecipam as de Nick. E o núcleo desta sua natureza musical talvez tenha sido tão forte porque as suas maiores influências não tinham nada a ver com o mundo fora de sua casa”. (35)

Made to Love Magic
E a história acaba aqui? Talvez não. Ao longo dos últimos 20 anos a discografia de Nick Drake foi ampliada para bem lá dos três álbuns que editou em vida. E como? Através de fitas gravadas entre finais dos anos 60 e inícios dos anos 70, das quais têm chegado verdadeiras revelações. Gravações de 1967 em Aix en Provence, outras registadas com Robert Kirby em Cambridge em 1968 e as que o próprio Nick fez em casa dos pais, em Far Leys surgiram já em discos recentes como Made To Love Magic ou Family Tree. Mas há gravações, de que há registo, mas das quais não se conhecem os paradeiros das quais um dia poderão surgir revelações (caso sejam localizadas, naturalmente). São os casos de um concerto na Bateman Room, perto da Páscoa de 1968 ou a sessão para a BBC gravada por John Peel em Agosto de 1969 (e que terá sido apagada), havendo ainda a hipótese de existirem mais outtakes inéditos das sessões dos dois primeiros álbuns, eventuais sons de outras sessões com John Wood em 1974 ou possíveis gravações de uma emissão pela BBC Radio 2 em Abril de 1970.

30 – Pin Up – Estrela cuja imagem (o que subentende uma boa aparência) pode ser reconhecida pelo grande público (a ideia ‘pin up’ refere-se ao pendurar de posters na parede) 
31 - in Nick Drake – The Biography, de Patrick Humphries (Bloomsbury, 1997), pág 228 
32 – Bootlegs – Gravações pirata 
33 - in White Bycicles, de Joe Boyd (Serpent’s Tail, 2005), pág 262 
34 – ibidem, pág 262 
35 – ibidem, pág 263

sexta-feira, abril 27, 2012

Num estúdio de televisão

Grimes, que é como quem diz, a canadiana Claire Boucher, passou pelo programa de Jools Holland na BBC. E, ao vivo, apresentou Genesis, um dos temas do alinhamento de Visions, o recentemente editado álbum da cantora. Aqui ficam as imagens.

Novas edições:
Sétima Legião, Memória


Sétima Legião
“Mermória”
EMI Music
5 / 5

Afinal quem somos? Esta era uma questão cara a muitos que, jovens, num Portugal em mudança poucos anos volvidos sobre a revolução de 1974, tentavam encontrar o seu lugar no seu tempo, no seu espaço e entre as suas heranças. Por razões históricas (leia-se políticas) e sociais, a alvorada dos anos 80 fazia do país palco para a descoberta do verdadeiro poder de uma cultura jovem que, com reflexos em tantos outros pólos desde finais dos anos 50 e inícios de 60, entre nós tinha conhecido mais discreta projeção. O sentido de urgência com que se expressava uma identidade coletiva em afirmação gerou um foco que fez desse momento um episódio rico em acontecimentos, a cada semana aparecendo bandas, vozes, ideias, programas de rádio e TV, jornais, entusiasmo. É nesse contexto que surge a Sétima Legião, entre um grupo de jovens lisboetas que, atentos ao mundo ao seu redor, mas não menos cientes do que ia acontecendo noutros lugares, encontraram em sinais escutados na cultura jovem urbana britânica ecos de afinidade com as suas personalidades e gostos. Mas quis o tempo que a sua demanda aí não se esgotasse. E se o single de estreia Glória/Partida (1983) e o álbum de apresentação A Um Deus Desconhecido (1984) – ambos lançados pela visonária independente Fundação Atlântica – refletiam essa genética próxima dos ecos de uns Joy Division, o percurso daí em diante revelou uma progressiva focagem de atenções nas marcas de identidade mais profundas do nosso espaço cultural, entre Mar d'Outubro (1987) e o magistral Sexto Sentido (1999) – a obra-prima da Sétima Legião – definindo caminhos que, sem o sentido de busca mais característico das bandas de recolha ou dos terrenos habitualmente descritos como world music, traduziram uma forma muito particular de captar, assimilar e integrar essas vozes da cultura popular portuguesa numa música atual e urbana. Das trovas mais pop(ulares) que fizeram história – de Sete Mares, Por Quem Não Esqueci ou Sem Ter Quem Amar – a instantes maiores, como Girassol, Além-Tejo ou o Factor Humano, onde escutamos toda a carga genética do povo que somos, Memória é uma coleção de instantes que ajudam a responder à questão que abre este texto.

IndieLisboa 2012 (dia 2)


Segundo dia do IndieLisboa 2012, apresenta como evidentes protagonistas as muitas curtas-metragens de produção nacional que passam em diversas sessões e integradas em várias secções. Entre os filmes a ver hoje constam O Que Arde Cura, de João Rui Guerra da Mata, que se estreia “a solo” na realização depois de co-assinar com João Pedro Rodrigues China China e Alvorada Vermelha (sessão de Competição Nacional Curtas 1, na Culturgest às 19.15) e Rafa, o recente Urso de Ouro de Berlim para João Salaviza (passa com Naná, de Valérie Massadian às 21.30 na Culturgest). Da competição Internacional passa hoje Voie Rapide, de Christophe Sahr (Cinema Londres, 19.00) e De Jueves a Domingo (na terceira imagem), de Dominga Sottomayor (Cinema Londres, 21.30). O IndieMusic arranca também hoje com o documentário Punk In Africa, de Keith Jones (Sala 3 do Cinema São Jorge, pelas 00.00) e o filme-concerto dos Sigur Rós Inni (Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge, às 19.15).


Entretanto podem ler as opiniões sobre os filmes do festival no blogue de cinema que o DN criou para acompanhar a par e passo esta edição do Indie Lisboa.

Sobre o filme de Todd Solondz que ontem abriu o festival, escrevo ali que “Fiel em tudo a uma linguagem que tem caracterizado a sua obra, em Dark Horse – Diário de Um Falhado, Solondz olha para vidas comuns e nelas encontra um registo que cruza humor com um profundo desencanto”. Podem ler o resto do texto aqui.


Três olhares por La Defense

Fotos: N.G.
Olhares sobre La Defense, bairro que foi em tempos uma expressão maior da modernidade parisiense e que acolheu sedes de grandes companhias, hotéis e até mesmo um ecrã IMAX. Imaginando um eixo entre o Louvre, a Place de la Concorde, os Champs Elysées e o Arco do Triunfo, La Défense mora um pouco mais a Norte, em linha reta. Hoje a grande esplanada de La Defense (sobretudo a sua grande estação de metro) revela algum estado de degradação e desencanto.

Os Rolling Stones
segundo Eurico Nobre


Em mês dedicado a memórias dos Rolling Stones pedimos a alguns amigos pequenos textos sobre o seu disco preferido desta banda que em 2012 celebra os 50 anos sobre a sua formação. Hoje é a vez de Eurico Nobre, que foi jornalista do DN e da Rádio Energia e hoje trabalha em publicidade, nos apresentar a sua escolha. E escolheu A Bigger Bang.

Os Rolling Stones são uma das poucas bandas das quais faço questão de ter e manter a discografia completa e actualizada, o que inclui algumas raridades ou edições menos convencionais. Não tenho uma canção favorita, tantas são as que dão forma à minha lista de eleitas. Muito menos um álbum: são vários os que, por diferentes razões, me merecem uma atenção especial. A Bigger Bang é, também por isso, escolha fácil: não há amor como o último. Acontece que o mais recente disco é também absolutamente extraordinário. Por duas razões principais. Antes de mais porque inesperado: editado em 2005, deixando a sete anos de distância o anterior álbum de originais Bridges to Babylon, surge numa altura em que o ritmo de produção nada mais anteciparia que outro “best of” ou, quanto muito, um novo registo ao vivo. Depois porque é absolutamente descomprometido. A Bigger Bang é como que uma homenagem dos Stones aos próprios, a prova de quem nada nada tem a provar e, também por isso, se deixa contaminar pela alegria e gozo dos primeiros dias: bastam segundos de Rough Justice para o feitiço se fazer sentir, revelando, logo na abertura, os Stones na sua melhor forma. Uma energia e garra que, ao longo de boa parte das duas décadas anteriores, se foram observando sobretudo em palco. A estreia em estúdio neste século pode bem ter feito do último disco de originais… o derradeiro. Também por isso é especial.

quinta-feira, abril 26, 2012

Um outro sonho americano

É mais um nome a juntar à lista das revelações a ter em conta em 2012. Sob evidente interesse pelas eletrónicas e por heranças da soul, os Electric Guest apresentam-se em tempo de estreia ao som de American Daydream. Aqui fica o teledisco, quem tem realização assinada por Jorma Taccone.

Indie Lisboa 2012 (dia 1)


Começa hoje a nona edição do festival Indie Lisboa. Entre as salas do Cinema São Jorge, da Culturgest e do Cinema Londres há muito cinema para ver até dia 6 de maio. Num ano de resistência à “crise”, o Indie apresenta aquele que parece ser dos seus melhores cartazes de sempre (conclusão a tirar, naturalmente, depois de vistos os filmes). Longas metragens como 4.44 de Abel Ferrara, Take Shelter de Jeff Nichols ou For Ellen, de So Yong Kim e curtas como O Que Arde Cura, de João Rui Guerra da Mata, Rafa e Cerro Negro de João Salaviza, Julian de António da Silva ou Palácios de Pena de Gabriel Abrantes são alguns dos títulos a destacar entre uma programação que tem ainda mais focos a merecer atenção. Pelo Indie Music passam filmes sobre Andrew Bird, os Sigur Rós ou TV on The Radio, entre outros. Há ainda o cinema do suíço Lionel Baier ou um clássico de Fassbinder... A abertura faz-se hoje, no Cinema São Jorge, pelas 21.30, com Dark Horses, de Todd Solondz (na imagem de cima).


O que diz um condenado a oito dias de ser executado? O que é morrer? Que sentido encontra quem vive uma contagem decrescente que sabe ser praticamente irreversível? Porque se condena alguém à morte? Até onde vale o olho por olho, dente por dente?... São questões que passam pelo assombroso documentário Into The Abyss, de Werner Herzog, que passa hoje às 21.30 na Culturgest (onde repete dia 4, às 19.00).
Claro numa posição contrária à pena capital, Herzog toma o caso de Michael Perry como objeto da sua (e da nossa) atenção. Uns dez anos antes, ele e um amigo (condenado a prisão perpétua, “salvo” da injeção letal pelo depoimento de um pai que vivei mais anos preso que junto ao filho) mataram, para roubar um carro. Mataram a dona do carro. E, para conseguir sair do condomínio fechado onde vivia, procurando o comando remoto que abria o portão, mataram depois o seu filho e o amigo com quem estava naquele momento. Herzog encontra Perry a uma semana da execução. Ouve Jason Buckett, o outro assassino. O pai deste. A mulher que com Jason se casou entretanto. Um oficial ligado à investigação que encontrou as vítimas. A filha da mulher alvejada. O padre que acompanha o condenado à câmara de execução. E um antigo funcionário dessas instalações que, com mais de 120 execuções feitas, pediu a demissão e hoje defende que a pena capital não é solução. O filme não é contudo um panfleto. Apesar de deixar clara a sua posição, Herzog coloca-se no papel de quem prefere antes escutar. Usando a entrevista como dispositivo central para a construção da narrativa, arrumando em capítulos temáticos os passos da história que nos conta, Herzog deixa assim que algumas contradições ganhem voz. Como quando a filha da vítima diz que ninguém devia tirar a vida a ninguém, para logo depois confessar que sentiu alívio ao regressar da execução (a que assistiu e descreve). Ou quando tanto Michael como Jason encontram um no outro, nos seus modos de vida, personalidades ou atitudes, as razões para explicar o que correu mal e os levou ao destino que agora enfrentam.

Em busca de um lugar


Chegou esta semana às salas portuguesas o filme Este É O Meu Lugar (no original This Must Be The Place), de Paolo Sorrentino, que recentemente abriu entre nós a mais recente ediçãoo da Festa do Cinema Italiano. O filme vive essencialmente da personagem interpretada por Sean Penn. Chama-se Cheyenne, é visualmente um herdeiro evidente do look de Robert Smith, dos The Cure, mas a sua história é outra. Antiga estrela rock, Cheyenne vive hoje um dia a dia de rotinas e mais silêncios que ruídos na sua mansão irlandesa. É um homem assombrado, como confessa numa cena em que dialoga com David Byrne (que faz de... David Byrne), culpando-se (pela carga negativa das suas antigas canções) da morte de dois fãs que levaram demasiado a sério o que cantava. Confrontado com a morte iminente do pai, que não vê há 30 anos e vive na América, embarca para uma viagem que o obrigará a confrontos com o seu passado. E com memórias do próprio pai, que procurara, sem sucesso, encontrar o carcereiro que o atormentou nos dias que viveu em Aushwitz... Cheyenne parte em busca do homem, a sua demanda pela América profunda desencadeando toda uma multidão de sensações e reflexões que, de uma forma ou outra, acabará por ter de assimilar.

Sorrentino talvez lance ingredientes a mais no caldeirão, e a tormenta rock’n’roll já daria, por si só, pano para mangas. Mas a solidez com que Sean Penn veste a pele de um ser fragilizado garante que, mesmo assim, não se perca o fio à meada. O filme, que a dada altura ganha a alma de road movie, é um claro exercício maneirista na relação com a imagem, seja pela forma como usa a cor ou por pelas características dos olhares em alguns planos. Não são soluções que sirvam necessariamente a narrativa. Mas são no fim marcas de identidade que definem a personalidade desse “lugar” onde Cheyenne se procura a si mesmo.


PS. Nota final para o título do filme, que evoca diretamente o título de uma canção do álbum Speaking In Tongues, que os Talking Heads editaram em 1983. O tema This Must Be The Place (Naive Melody) é, de resto, interpretado pelo próprio David Byrne num dos momentos mais belos do filme. A banda sonora do filme de Paolo Sorrentino contou ainda com a preciosa colaboração de Bon Iver.

Podem revisitar aqui esse tema, numa atuação histórica dos Talking Heads.


Imagens do trailer do filme