segunda-feira, abril 30, 2012

A reinvenção de John Cage por Rui Horta

Como revisitar John Cage? Mais do que isso: como dançar com Cage? Com a coreografia, incluindo luz e cenário, de Danza Preparata (Fundação Gulbenkian - Grande Auditório, 29 Abril), Rui Horta avança com respostas fascinantes, ao mesmo tempo metódicas e racionais, imprevisíveis e selvagens.
O desafio consistia em reinventar as Sonatas e Interlúdios de Cage, para piano preparado, conferindo-lhes a dimensão, e também a duração, de uma performance de palco em que transcrição e ritual, memória e transfiguração fossem elementos complementares e cúmplices. No piano, Rolf Hind é um exemplo extraordinário de concisão e precisão, sem que isso invalide uma permanente sensação de redescoberta, naquele momento, das partituras originais. Dançando, a magnífica Sylvia Bertoncelli devolve à noção de linguagem do corpo a sua genuína nobreza — uma linguagem, afinal, para desafiar todas as outras linguagens (como Barthes, que se propunha seguir as ideias do seu corpo "porque o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu").
JOHN CAGE
1912-1992
Tudo se passa como se a música fosse menos a transcrição de um qualquer ideal sonoro, exterior à nossa experiência comum, e nascesse antes das infinitas imperfeições que nos conferem humanidade. Será esse, talvez, o sentido mais genuíno do carácter preparado do piano. Que é como quem diz: ao programar a introdução dos mais diversos objectos nas cordas do piano, Cage apela à produção de sons que integrem a nostalgia de um mundo alternativo, tanto quanto a desarmada nitidez da materialidade do nosso mundo.
Rui Horta assume tal dispositivo até às mais extremas consequências, práticas e poéticas, concebendo a sua coreografia como um labor específico para corpo preparado. Daí que a dança evolua como uma metódica interrogação das fronteiras figurativas do próprio corpo ou, se assim nos quisermos exprimir, da nossa identidade corporal (o que, hélas!, rima com identidade cultural).
Daí também a exclusão de qualquer ostentação "espectacular" que se esgote numa exibição de versatilidade física. O que Sylvia Bertoncelli representa em palco é, afinal, uma narrativa contra o destino: num cenário de calculada geometria (em que o próprio piano integra a cenografia), desenhando novas formas a partir do "equilíbrio" mítico do quadrado (no chão e na parede de fundo), assistimos à deambulação íntima de um corpo que connosco partilha o leque imenso das suas possibilidades.
O rigor cósmico de cada gesto não se esgota, assim, em nenhum ideal fechado de perfeição — provavelmente, a lição mais radical de Cage enraíza-se na consciência de uma modernidade que não abdica de aproximar a singularidade artística da imprevisibilidade e do ruído do quotidiano. Daí que esse rigor coexista com o seu esplendoroso contrário: num momento revelador, a bailarina traz ao palco um gato (uma gata, sabemos de fonte segura...), numa conjugação simbólica de dois corpos programados de modo distinto e, afinal, tão admiravelmente (e biologicamente) semelhantes.
No território delimitado do palco, no tempo insubstituível da performance, Danza Preparata consegue a proeza rara de nos expor às vibrações de uma arte (música, dança, talvez cinema...) que não abdica de contrariar todas as ilusões históricas, passadas e presentes, de qualquer "naturalidade". Preparar o piano, tal como preparar o corpo, consiste em abrir uma brecha através da qual se insinuam novas formas de relançar o velho e angustiado to be or not to be. Afinal, assim como o aborrecimento é essencial ao prazer (Barthes, encore), a angústia pressente a possibilidade da alegria.

>>> Site oficial de John Cage.
>>> Biografia de Rui Horta.
>>> Programa de Danza Preparata.