Uma gravação da Grande Messe des Morts, de Berlioz, abre o catálogo da Winged Lion, a editora criada pelo maestro Paul McCreesh. O disco assinala ainda o início de uma série de colaborações suas com músicos polacos.
É assombrosa, de facto, a força das imagens. E hoje é impossível escutar o Danúbio Azul de Johann Strauss sem pensar em 2001: Odisseia no Espaço de Kubrick, a Cavalgada das Valquírias de Wagner sem lembrar a “carga” aérea em Apocalypse Now de Coppola ou o adagietto da Sinfonia Nº 5 de Mahler sem evocar a adaptação de Morte em Veneza por Visconti. E hoje, ao escutar a nova gravação da magistral Grande Messe des Morts (muitas vezes referida simplesmente como o Requiem) de Hector Berlioz (1803-1869), não escapo a duas sequências de A Árvore da Vida, de Terrence Malick, em particular a sequência do reencontro vivida na praia, perto do final, ao som de parte do Agnus Dei que fecha esta obra de 1837.
Como o filme de Malick, esta obra de Hector Berlioz é também ela uma reflexão sobre a fé que se socorre de uma visão maior da sua arte para atingir um patamar invulgar de grandiosidade, emotividade e, podemos acrescentar, excelência. Originalmente encomendada para um serviço religioso em memória de um general morto numa tentativa de assassinato ao rei francês Luis Filipe em 1837, a grande missa pelos mortos recuperou elementos de obras que Berlioz deixara inacabadas por por estrear – como a Missa Solene, o oratório Le Dernier Jour du Monde ou a Fête Musicale Funèbre a la Mémoire des Hommes Ilustres de La France – e usa recursos instrumentais e humanos de grande escala, procurando um efeito dramático maior, na verdade arrebatador. A ocasião para a qual a missas fora encomendada acabou cancelada, mas uma oportunidade de estreia chegou pouco depois, numa outra cerimónia em memória de outro militar, então morto em campanha no Norte de África. E hoje é episódio com características quase míticas o momento em que pela primeira vez esta música ganhou corpo e som, a 5 de dezembro desse mesmo 1837 na Igreja dos Inválidos, em Paris.
Obra maior da história da música coral, com heranças projetadas em várias outras obras e compositores (o texto de Hugh Macdonald no booklet refere nomes como os de Verdi, Saint-Saëns, Messiaen e Britten), a Grande Messe des Morts foi escolhida por Paul McCreesh (uma das maiores autoridades do nosso tempo nos espaços da música coral) para encetar não apenas um relacionamento com orquestras, solistas e coros polacos (de Wroclaw, entre nós mais conhecida como Breslávia, que será Capital Europeia da Cultura em 2016) como o lançamento da sua própria editora discográfica. Gravada na igreja de Maria Madalena, em Wroclaw, em setembro de 2010, esta gravação escuta a grandiosidade vulcânica da visão de Berlioz com a delicadeza das linhas que McCreesh tão bem comanda. Resultado: um dos grandes momentos discográficos dos últimos tempos.