segunda-feira, novembro 03, 2008

Galina Ulanova, 1956

O título do DVD apresenta esta memória do Ballet Bolshoi como um "best of". Não deixa de o ser, mas, mais correctamente, trata-se do filme The Ballet Bolshoi, produzido e realizado por Paul Czinner em 1956. Registado através de uma hábil combinação de câmaras, este é um objecto histórico, uma vez que dá conta da primeira visita do Bolshoi aos palcos ingleses, liderado pela lendária Galina Ulanova — um DVD de referência, em edição apenas limitada pelo facto de não ter havido um trabalho de restauro das cores originais em eastmancolor.

Com a marca da HBO

Bernard e Doris, com Susan Sarandon e Ralph Fiennes [foto], é um caso exemplar das qualidades da produção da HBO — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 de Novembro), com o título 'Filmes e telefilmes que "ninguém" vê'.

Há dias, na noite de quinta para sexta-feira, num dos canais da televisão por cabo (MOV), passou o telefilme Bernard e Doris, uma produção de 2007 dirigida por Bob Balaban, com Susan Sarandon e Ralph Fiennes. Nele se evoca uma personagem mítica do imaginário americano: a multimilionária Doris Duke (1912-1993) que deixou o essencial da sua fortuna, e também a gestão das suas fundações, a Bernard Lafferty, o seu mordomo.
Produzido pela HBO, Bernard e Doris é uma subtil travessia da intimidade das suas personagens centrais, construindo-se como uma espécie de bizarro melodrama. Doris, herdeira da fortuna de uma magnate da indústria do tabaco, foi alguém que viveu uma existência de crescente solidão, acabando por encontrar em Bernard um verdadeiro anjo da guarda que a acompanhou até à morte. O álcool acabou por desenhar um insólito traço de união entre ambos, tanto mais que Bernard, durante muito tempo, tentou esconder a sua própria dependência. Ao mesmo tempo, Bernard vive a sua homossexualidade num misto de contenção e dor, enquanto olha com indulgência os excessos de Doris, procurando protegê-la das atribulações da sua vida amorosa. A pouco e pouco, as suas diferenças acabam por gerar uma relação que o filme trata como uma pudica história de amor.
Em tudo e por tudo, Bernard e Doris é um filme de actores. Desde logo porque é esse o trabalho principal de Bob Balaban [foto]: já o vimos, por exemplo em filmes de Steven Spielberg (Encontros Imediatos do Terceiro Grau, 1977), Sydney Pollack (A Calúnia, 1981), Woody Allen (Alice, 1990) ou Robert Altman (Gosford Park, 2001). A realização de Balaban serve, antes de tudo o mais, o trabalho específico de representação, resistindo tanto à sedução mais imediata dos sumptuosos cenários como à possibilidade de fabricar uma pesada parábola “moral”. Sarandon e Fiennes são brilhantes: ela assumindo a vibração própria de alguém que, no fundo, conhece as ambivalências do seu imenso poder financeiro; ele compondo uma figura errática, mas determinada, compensando na ordenação do quotidiano as feridas da sua desordem interior.
Ao descobrir Bernard e Doris, não pude deixar de pensar como as imagens cinematográficas e televisivas passaram a existir numa espécie de indiferença generalizada (o filme chegou a estar previsto para as salas americanas, mas acabaria por estrear directamente na HBO, no passado dia 9 de Fevereiro). Dir-se-ia que já não existem mecanismos, não apenas publicitários, mas sociais, capazes de valorizar a singularidade dos objectos de cinema e televisão. Neste caso, para além dos nomes envolvidos, tratava-se mesmo de um filme com dez nomeações para os Emmys (embora sem nenhuma distinção).
É bem certo que cresceu a pluralidade da oferta, mas sem que tenha crescido a diversidade das promoções. Generalizando (e, por isso, simplificando), por vezes parece que nas salas de cinema só há “blockbusters”, ao mesmo tempo que as televisões apenas se interessam pela promoção de telenovelas e produtos afins. Provavelmente, Bernard e Doris até foi visto por muitos espectadores... Ainda assim, é forçoso reconhecer que as suas qualidades não fazem parte das prioridades do mercado audiovisual.

Discos da semana, 3 de Novembro

Em 1989, Bulletproof Heart traduzia sinais de uma série de más opções no percurso recente de Grace Jones. Longe do fulgor de álbuns como Warm Leatherette (1980) ou Nightlife (1981), distante da elegância “design” de Slave To The Rhythm (1985), Grace Jones tropeçava no equívoco, dois anos depois de igualmente menos feliz operação em Inside Story... E saiu de cena. Dos discos, convenhamos. Apesar de ter chegado a gravar dois novos álbuns nos anos 90 (que nunca chegaram a ser editados), a sua vida pública na música escondeu-se entre palcos. Frequentemente secundários... A notícia do regresso chegou há alguns meses. E o aperitivo servido no magnífico Corporate Cannibal imediatamente chamou atenções, alertando para um álbum que não se deveria confundir com argumentos para lançar mais uma digressão de nostalgia, afinal um cada vez mais frequente lugar comum no panorama pop actual entre veteranos. Hurricane confirma agora que as expectativas lançadas pelo assombrado Corporate Cannibal não eram infundadas. O disco é talvez o que se poderia esperar de Grace Jones após longo silêncio de 19 anos. Tranquilo nos ambientes, é contudo um disco ousado, atento ao presente e por isso incisivo. Ao mesmo tempo não fecha a porta a toda uma carteira genética que correu pela discografia de Grace Jones, nomeadamente nos instantes que evocam as experiências dub registadas em inícios de 80 nos três álbuns que então gravou nos Compass Pont Studios, nas Bahamas. A dupla Sly & Robbie, que integrou a equipa convocada por Chris Blackwekll para essas míticas sessões conta-se de resto entre o cartaz de colaboradores convidados para participar em Hurricane, entre os quais se contam figuras como Brian Eno ou Tricky. Aos 60 anos, Grace Jones mantém viva a alma irreverente que dela fez invulgar ícone há 30 anos. Hurricane não contraria esta herança, mas cruza-a com uma capacidade em contemplar o tempo sem vontade de “enganar” o bilhete de identidade. Uma honestidade que se revela em depoimentos onde toda uma história de vida não se deixa ofuscar pelo brilho do ícone pop. Claramente autobiográficos, temas como William’s Blood ou I’m Crying (Mother’s Tears) revelam uma outra Grace Jones. Seja bem regressada!
Grace Jones
“Hurricane”
Wall Of Sound / Edel
4 / 5
Para ouvir: MySpace

Através dos discos que tem editado como Luomo, o finlandês Sasu Ripatti alarga a outras regiões do espectro da criação electrónica o não menos interessante trabalho que tem vindo igualmente a desenvolver quando assina como Vladislav Delay. Como Luomo tem procurado espaços de reinvenção das linguagens da house (e espaços adjacentes). Convivial ajusta-se que nem uma luva a esta demanda, uma vez que abre mais que nunca terreno ao diálogo, à colaboração ou, como o próprio título sugere, ao “convívio”. Convívio em concreto com uma série de cantores que aqui não se limitam apenas a ser voz sobre criações Ripatti. Pelo contrário, o trabalho de construção das letras e, afinal, das canções, contou em pleno com a disponibilidade e esforço dos donos das vozes convocadas. Convivial é um disco no qual a canção é assumida como meta a atingir. Não necessariamente através dos códigos habituais da pop, mas em jogos de ensaio de ideias que permitem assim uma identidade híbrida entre as genéticas house na base da identidade de Luomo e os objectivos das colaborações que definem o disco. Figura com presença dominante em quatro das nove “canções” do álbum, a finlandesa Johanna Livanainen (cantora essencialmente ligada aos circuitos do jazz), que já colaborara no passado com Sasu Ripatti, define um horizonte do qual os restantes temas partem em busca das contribuições das demais vozes e do que nelas o timoneiro do projecto procurou. O calor de Sacha Ring (Apparat) gera em Love You All a pérola pop do álbum. Jake Shears (Scissor Sisters) “rouba” o protagonismo em If I Can’t. O travo (discreto) soul de Robert Owens aproxima Robert’s Reason das heranças primordiais americanas do género em meados de 80. A prosódia de Sue Cie sublinha o minimalismo subliminar que se escuta noutros temas, mas se expressa mais evidente em Nothing Goes Away. Convivial não oferece a revolução. Mas é uma das mais interessantes reflexões sobre as heranças da house, e da sua relação com a acanção, dos últimos tempos.
Luomo
“Convivial”

Humme / Flur
4 /5
Para ouvir: MySpace

Praticamente ignorado quando em 2000 lançou o magnífico álbum de estreia Anthony and The Johnsons, aclamado cinco anos depois perante o não menos magnífico I’m a Bird Now, Antony & The Johnsons anunciam para 2009 um novo álbum. Porém, apesar dos quatro anos que o separam do disco anterior, Antony Hegarty raramente esteve longe das atenções. Desde que lançou I’m A Bird Now colaborou numa homenagem a Leonard Cohen (que deu filme), gravou uma versão de um clássico de John Lennon, em discos de Lou Reed, Björk, Marc Almond, Matmos, Joan as Policewoman, Current 93 ou Nico Muhly, cantou nos concertos que levaram Berlin, de Lou Reed, à St Ann’s Academy de Nova Iorque (participando assim no filme-concerto de Julian Schnabel) e, brevemente poderemos escutá-lo no novo disco de Marianne Faithfull. A sua música apareceu em filmes como Otto: or Up With Dead People, de Bruce LaBruce ou V For Vendetta, de James McTeige. E, naturalmente, foi uma das vozes-chave na estreia colectivo Hercules & Love Affair... Nas pausas foi trabalhando em canções que, brevemente, revelará em The Crying Light (a editar a 21 de Janeiro). E para já serve um aperitivo num EP de cinco canções. Na verdade só a faixa tema, Another World, um diálogo melancólico para voz e piano (um pouco em regime Antony em piloto automático), figurará no álbum. Dos restantes temas dois são inéditos absolutos, sendo os dois outros já conhecidos por quem acompanha os seus concertos. Crackagen é contemporâneo do álbum de estreia e Shake That Devil foi escutado na digressão de 2006 e 2007. Este último revela surpresas na cenografia, escapando à lógica de placidez habitual, insistindo numa erupção de intensidade, vincada pela percussão, que traz a disco um outro rosto da personalidade musical de Antony. Sing For Me e Hope Mountain regressam a uma base de trabalho para voz e piano, mas revelam espantosos arranjos de Nico Muhly, na verdade a única verdadeira mais-valia deste EP. Com mais uma bela capa (com Kazu Ohno fotografado por Pierre-Olivier Deschamps), este é um EP que sugere discreta evolução na continuidade. Não sacia o apetite. Mas, como aperitivo, cumpre a missão.
Antony & The Johnsons
“Another World”

Secretly Canadian / Popstock
3 / 5
Para ouvir: MySpace

2008 está a afirmar-se entre nós como um ano da revelações de uma série de ideias e projectos que, depois de uma menos mediatizada primeira etapa de vida, ganham agora forma com a solidez que só uma gestação tranquila habitualmente permite. Noiserv é mais um nome a juntar ao mapa do Portugal musical de 2008. Projecto de um homem só (de sue nome David Santos), ganhou forma em 2005 com um concurso em vista. Seguiu-se um primeiro EP e, depois, o tempo necessário para projectar o passo seguinte que agora ganha forma em One Hundred Miles From Toughlessness, o álbum de estreia. Trata-se de uma bela colecção de canções, que partem do diálogo entre a voz e a guitarra acústica, e colhem depois o gosto pela construção de arranjos que, com elegância e economia de recursos, e sob interessante escolha de instrumentos, transformam o que poderia ser um candidato a mais-do-mesmo (em regime “cantaurorês”) num credível manifesto de busca de identidade na música. O álbum, que parte de uma escrita enxuta, mostra sobretudo argumentos no campeonato da construção de cenários para as canções, com resultados particularmente interessantes em temas como 307d, Bompempi (escola Magnetic Fields no seu melhor) ou Consolation Prize. A voz, que se compreende igualmente em busca de um espaço seu, acusa ocasionalmente excessos de sombras e dramatismo (a sugestão dos climas, implícita na construção das canções, seria aqui suficiente para o efeito). E depois do conteúdo, a forma. É impossível falar deste álbum sem referir o objecto-disco que encerra a música. Na forma de um bloco de notas, com 11 ilustrações a lápis de Diana Mascarenhas (uma por canção), e um lápis como “extra”, a “embalagem” é das melhores ideias de packaging que a música portuguesa conheceu nos últimos tempos.
Noiserv
“One Hundred Miles From Toughlessness”

Merzbau
3 / 5
Para ouvir: MySpace

É verdade que temos assistido, nos últimos tempos, ao aparecimento de fontes de novidade pop bem mais estimulantes fora que dentro do Reino Unido. Mesmo assim, o último ano deu a conhecer uma série de nomes e bandas estreantes, semeando primeiras sugestões das quais se esperaram resultados em colheitas seguintes. O discreto Eugene McGuiness, natural de Liverpool, mostrou-se no ano passado com um primeiro mini-LP (The Early Leanings Of Eugene McGuinness) que passou a leste das atenções. Agora edita um álbum que o confirma como ecléctico cantautor de perfil pop. Como tantos outros que fizeram a história da canção pop(ular) inglesa, revela-se natural herdeiro de escolas “clássicas” da identidade pop britânica. Das heranças pop de 60 (Beatles, Kinks) à vitalidade pós-punk de finais de 70, de citações aos Smiths ao desejo em projectar na música traços do festim pop dos velhos singles da Postcard (leia-se em concreto a memória de uns Orange Juice ou Joseph K) aqui encontramos ecos de figuras-chave que fazem parte de uma identidade de referência de um espaço e um tempo que formaram já mais que uma geração de músicos. O disco faz contudo questão de nos lembrar que não estamos perante um deslumbrado visionário ou um eventual candidato a mera estrela pop (a imagem, de resto, desmonta quaisquer dúvidas com sentido de humor e de auto-crítica). O apelo melodista das suas canções, o tom maior que respira nos refrões, não procuram, de facto, uma batalha pela originalidade. Mas entre modelos e referências “inevitáveis” num aprendiz claramente inspirado pelos nomes de referência que teve por educação há ocasionais frestas de surpresa, Sobretudo no dosear de ideias, na culinária dos sabores que, misturados, geram uma bela colecção de canções. Apesar das diferenças, o álbum junta-se à estreia recente dos Last Shadow Puppets para sugerir que o apetite “brit” pela evocação da sua memória melhor pop está na ordem do dia.
Eugene McGuinness
“Eugene McGuinness”

Domino / Edel
3 / 5
Para ouvir: MySpace


Também esta semana:
Of Montreal, Lou Reed (live), Ryan Adams, Maria João + Mário Laginha, Shed, Cazals, Johann Johansson, Fall Out Boy, Elvis Presley (duetos de Natal), Paul Weller (BBC sessions), Bob Dylan (DVD), Megapuss, Q-Tip, Razorlight, Stephen Sondheim (caixa), Ry Cooder (best of), Herbert, Luomo, Burnt + Jacki, Girl Talk

Brevemente:
10 de Novembro: Flaming Lips, The Smiths (best of), Genesis (caixa), Stereophonics, Tracy Chapman, Metro Area, Murcof, Damned (reedições)
17 de Novembro: David Byrne + Brian Eno, Belle & Sebastian (BBC Sessions), Simon Bookish, Parenthetical Girls, Casiotone For The Painfully Alone (EP), Marc Almond (reedições)
24 de Novembro: The Killers, Abba (caixa), Doors (live), Momus,

Novembro: Neil Young (live), Philip Glass (caixa – edição nacional), John Adams (edição nacional), Marc & The Mambas (reedição), Max Richter
Dezembro: Dakota Suite, Yelle (remix), Shirley Bassey (reedições), The Smiths (caixa), Motown 50, Kanye West

Obama: "Todos têm uma história"

> A HISTÓRIA. Estar na linha da frente. E estar virado para a história. Seja qual for o resultado das eleições de amanhã, nos EUA, a candidatura de Barack Obama soube devolver aos americanos a sensação de uma relação com a história em que a evidência do quotidiano mais concreto remete, em última instância, para o lugar da América no mundo. É por isso que faz sentido dizer que algo da existência de cada um de nós, não americanos, se decide no acto eleitoral de 4 de Novembro de 2008 — porque, afinal de contas, mal ou bem, os destinos do planeta continuam a passar pela identidade da América.
> NOVOS MEDIA. Vale a pena, por isso, reter o spot de 30 minutos [em 4 partes, aqui em baixo] com que Obama ocupou o espaço televisivo, no dia 29 de Outubro, nomeadamente em grandes canais nacionais (NBC, CBS e Fox). E não tanto por causa do investimento que a sua emissão implicou — qualquer coisa como 6 milhões de dólares. Aliás, só por distração ou ingenuidade se poderia julgar que estas eleições se jogariam num espaço tradicional, imune às "perversidades" dos novos media e, mais especificamente, dos modernos conceitos de marketing. Só mesmo por simplismo político se poderá pretender anular o impacto dessa meia hora em nome da "impureza" do dinheiro. Noutra escala, assistimos a um logro semelhante quando se pretendeu abalar a imagem de John McCain por causa dos preços de algumas peças do guarda-roupa da sua mulher, Cindy — além do mais, é puro cinismo pretender que as marcas de elegância que ajudaram a fazer de Jacqueline Kennedy um símbolo de dignidade e calor humano se transformam, noutra mulher, num factor de suspeição.
> FAZER POLÍTICA. Acontece que, de facto, Obama tem plena consciência — isto é, tem uma consciência realmente política — do mundo em que vive e, muito em particular, dos seus sistemas de comunicação global. A sua meia hora de campanha televisiva assume até às últimas consequências um fascinante paradoxo: é construída a partir de formatos correntes de televisão (em especial, na enunciação de grandes ideias globais a partir da amostragem de casos particulares), ao mesmo tempo que propõe ao seu espectador uma contundente revisão crítica de muitos lugares-comuns interpretativos que todos os dias lhe chegam (quase sempre através dessa mesma televisão).

* * * * *

Quando Obama proclama que "todos têm uma história", é disso que fala: do direito a encontrar o lugar de um eu que valorize todas as formas de solidariedade, mas que não se dissolva nas ilusões de um ecumenismo sem ideias. Talvez este seja um reencontro da América com a sua vocação mitológica. Mas é, acima de tudo, algo que a fruição do mito pressupõe e exige. Ou seja: o retorno ao real e o assumir da sua complexidade.

BARACK OBAMA, 29 de Outubro de 2008 (1/4)


BARACK OBAMA, 29 de Outubro de 2008 (2/4)


BARACK OBAMA, 29 de Outubro de 2008 (3/4)


BARACK OBAMA, 29 de Outubro de 2008 (4/4)

domingo, novembro 02, 2008

Cinema social europeu?

Esta é uma imagem de A Turma, de Laurent Cantet, um dos filmes recentes que justifica a interrogação: será que continua a existir um cinema social europeu? Alguns exemplos próximos permitem pensar que sim — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 de Novembro), com o título 'Cinema social?'.

No espaço de poucas semanas, assistimos à estreia de A Solidão, de Jaime Rosales (Espanha), Gomorra, de Matteo Garrone (Itália), Yella, de Christian Petzold (Alemanha), Entre os Dedos, de Tiago Guedes e Frederico Serra (Portugal) e, agora, A Turma, de Laurent Cantet. Que liga estes filmes? Desde logo a sua inserção no espaço específico da produção europeia. Mas, mais do que isso, vale a pena sublinhar que por eles passa uma vontade realista que nos pode conduzir a uma curiosa interrogação. A saber: será que estamos a assistir ao renascimento de uma tendência eminentemente social do cinema da Europa?
Talvez seja prematuro tirar grandes conclusões. Em todo o caso, é um facto que alguns filmes europeus reagem contra essa visão do quotidiano que se esgota no pitoresco dos “inquéritos” de rua dos telejornais ou, pior do que isso, no grosseiro “naturalismo” dos apanhados. É bom saber que ainda há cineastas para nos fazer sentir que olhar o mundo à nossa volta é um trabalho tão sério quanto exigente.

Retrospectiva no Coliseu

Há tradições que não mudam. E Peter Murphy gosta de encerrar campanhas em solo português. Há dez anos a Resurrection Tour dos Bauhaus fechava em triunfo com concertos em Lisboa (num Pavilhão Atlântico cheio) e Porto. Igual agenda, mas desta vez nos Coliseus (onde o músico conta já longa história), fecha agora a Retrospective Tour. Em comum entre ambas, o facto de permitirem às plateias novo encontro com a memória da música dos Bauhaus, fulcral banda da história do pós-punk britânico e paradigma para o que se viria a designar depois por rock gótico. Apesar de acompanhado em palco por uma banda notoriamente menor que a que consigo fez grandes discos entre 1979 e 1983, Peter Murphy cumpriu ontem em Lisboa a “retrospectiva” que o concerto prometia. Revisitou clássicos como A Strange Kind Of Love, Time’s Got Nothing To Do With It ou Cuts You Up e também canções-chave de velhos álbuns a solo de 80 e 90 (entre as quais Marlene’s Dietrich Favourite Poem, Deep Ocean Vast Sea, Huvola, The Line Between The Devil’s Teeth, The Scarlet Thing In You ou The Sweetest Drop). Apresentou uma versão reduzida ao osso dos acontecimentos de Hurt, dos Nine Inch Nails. Citou Starman e uma versão de Be My Wife do inevitável David Bowie. Mas foi ao som dos Bauhaus que um Coliseu cheio mais reagiu. Burning From The Inside, She’s In Parties, All We Ever Wanted e Black Stone Heart (do ignorado álbum deste ano), assim como uma citação a Bela Lugosi’s Dead no final de A Strange Kind Of Love. Houve ainda um (dispensável) breve destapar do novo álbum acabado de gravar, mas que pela amostra parece tão inconsequente como o último, e medíocre, Unshattered. Pena maior foi a recorrente constatação da falta de atributos (musicais e performativos) da banda que agora o acompanha, que dá apenas conta do recado mas não tem mesmo alma para muito mais...

Na Broadway dos anos 30

Clássicos do século XX - 5
'Anything Goes', de Cole Porter
(1934)

Na mesma linha de fronteira entre os espaços da música popular e os da música “erudita” de um Porgy and Bess de Gershwin (1935) ou um West Side Story de Bernstein (1957), todavia frequentemente mais associado ao primeiro que ao segundo universo, Anyting Goes é uma das criações de referência da obra de Cole Porter e, juntamente com o acima citado “clássico” de Gershwin, um dos dois musicais norte-americanos dos anos 30 que ainda hoje, com alguma frequência, conhecem produções em palcos por todo o mundo. Estreado em 1934, com Ethel Merman no papel protagonista, Anything Goes conheceu já várias vidas (e três versões revistas) na Broadway, tendo conquistado vários prémios Tony, Drama Desk e Olivier. Existe uma gravação da versão original de 1934, com as vozes de Kim Criswell e Cris Groenendaal, acompanhadas pela London Symphony Orchestra, dirgida por John McGlinn. O disco teve edição pela EMI Classics em 1989.

A ideia para o musical coube a um dos produtores, que na altura vivia num barco. Foi ele quem escolheu os libretistas (Guy Bolton e P.G. Wodehouse), a protagonista para a primeira produção e, necessariamente, o compositor. Cole Porter é hoje reconhecido como um dos mais inspirados escritores de canções da sua geração e o seu “songbook” mora em gravações por vozes tão distintas como as de Ella Fitzgerald ou Frank Sinatra. Anything Goes é, juntamente com Kiss Me Kate (que assinalou um regresso triunfal em 1948) um dos seus musicais mais aclamados. Quatro canções do musical ganharam depois vida própria além do palco. Foram elas I Get A Kick Out Of You, All Through The Night, You’re The Top e o tema-título, Anything Goes, que conheceram já diversas versões por inúmeras vozes. Musicalmente Anything Goes traduz o aprumo de uma linguagem pessoal, representando um dos paradigmas do “musical” da Broadway do período entre-guerras. Estreado cinco anos depois do “crash” de 1929, ou seja ainda sob efeitos da depressão, não deixou de constituir um dos maiores sucessos da década de 30. Teve mais de 400 representações no teatro que acolheu a estreia (o Alvin Theatre), o que de Anything Goes fez a quarta produção que mais tempo esteve em cena em Nova Iorque nos anos 30.

História de amores entre um corrector da bolsa em viagem e uma cantora de cabaret, Anything Goes vive entre canções e números coreografias no convés de um cruzeiro que parte de Nova Iorque rumo a Londres. O musical teve várias vidas depois da produção original no Alvin Theatre. Em 1936 a Paramount levou a história e as canções a filme, com realização de Lewis Milestone, com Ethel Merman e Bing Crosby nos papéis principais (na foto). O filme seria depois “rebaptizado” como Tops Is The Limit, em função de um remake, novamente pela Paramount, em 1956, no qual Bing Cosby retomou o seu papel. Por seu lado, Ethel Merman voltou a vestir o seu papel em 1954, numa adaptação televisiva de 1954, na qual contracenou com Frank Sinatra. A canção-título teve nova vida no cinema na sequência inicial de Indiana Jones e o Templo Perdido (1984), de Steven Spielberg, numa versão em mandarim por Kate Capshaw.



Imagens da produção encenada por Jerry Zaks no Lincoln Center em 1987, que valeu inúmeros prémios, entre os quais três Tony. No papel protagonista, Reno Sweeney, encontramos aqui a actriz Patti Lupone. Este “remake” em finais de 80 de Anything Goes somou 784 representações.

Pintando com as memórias de Kubrick

Lembram-se do pequeno Danny (Danny Lloyd) a percorrer os corredores do Overlook Hotel no seu triciclo? É uma imagem emblemática da obra-prima de Stanley Kubrick, The Shining (1980). A Phone Booth Gallery (que opera online) promoveu uma mostra de trabalhos inspirados, precisamente, no filme de Kubrick, sendo a figura de Danny uma das recriadas [em baixo], numa pintura em madeira intitulada They Don't All Shine Bright e assinada por Garry Booth — é um curioso exemplo de contaminação das artes figurativas pelas memórias míticas do cinema. A mostra adoptou a designação 'Artwork and no play', parafraseando a escrita do pai de Danny, Jack Torrance (Jack Nicholson), que nas páginas do seu "romance" apenas escreve, infinitas vezes: "All work and no play makes Jack a dull boy".

sábado, novembro 01, 2008

Televisão & política: que jornalismo?

Afinal, o que significa interrogar os protagonistas da cena política com os meios da televisão? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 de Outubro), com o título 'Televisão & política'.

Quando vemos o programa The Situation Room (CNN), apresentado por Wold Blitzer, podemos sentir que a proliferação de entrevistados e comentadores nem sempre é devidamente rentabilizada. Talvez seja até inevitável receber cada intervalo para publicidade como uma forma de contrariar a eficácia e a transparência dos diálogos. Seja como for, nenhum desses contratempos anula uma certeza: a de que lá podemos encontrar informação variada e contrastada que nos permite pensar um pouco melhor a actualidade do mundo, em particular os grandes combates políticos.
The Situation Room é apenas um exemplo de uma forma de fazer televisão a que, creio, todos nós prestámos mais atenção nos últimos meses. Motivação óbvia: a campanha eleitoral americana e, mais especificamente, as clivagens que se foram desenhando entre os discursos e os campos de Barack Obama e John McCain.
Há duas lições muito simples, e também muito pedagógicas, que brotam dos três debates entre os dois candidatos (e tanto mais quanto foram formalmente diferentes, com cada espaço e cada estrutura de emissão a gerar efeitos dramáticos também diferenciados). A primeira decorre do próprio comportamento de Obama e McCain: para além das simpatias ou resistências que cada um nos possa suscitar, para além das respectivas estratégias discursivas, ambos deram um exemplo global de genuína democraticidade, sabendo argumentar e, mais do que isso, sabendo escutar. A segunda lição é inerente ao trabalho da maioria dos jornalistas televisivos: afinal, é possível fazer perguntas contundentes, por vezes incómodas, sem lançar o sarcasmo, a insinuação ou o insulto sobre o entrevistado.
Embora recusando qualquer generalização automática, sabemos que as coisas nem sempre se passam assim no contexto português. Por um lado, há elementos da classe política que confundem a má educação (sobrepondo sistematicamente a sua voz à dos seus adversários) com a capacidade de argumentar; por outro lado, há jornalistas que, pura e simplesmente, gostam de enxovalhar os políticos. Que está em jogo, afinal? Duas coisas básicas: a dignidade da política e a dimensão humana do jornalismo.

Reinventar a pop nos anos 90

A recente edição de uma antologia de singles dos St Etienne é motivo para uma série de evocações de canções e telediscos que ajudaram a fazer a história da pop britânica, sobretudo nos anos 90. A sua música reflecte um berço na “club culture” que teve presença marcante na produção pop(ular) inglesa em finais de 80. Contudo, aos códigos captados na música de dança o grupo juntou heranças clássicas da canção pop, definindo uma obra que é hoje referência do género numa década que deu protagonismo a outras músicas. Começamos hoje este percurso recordando o teledisco de Nothing Can Stop Us. Editado em 1991, foi o terceiro single do grupo e o primeiro a apresentar a voz de Sarah Cracknell, desde então o “rosto” dos St Etienne. A canção consta do alinhamento do álbum de estreia do grupo Foxbase Alpha, também de 1991.



St Etienne
‘Nothing Can Stop Us’ (1991)