Em 1989, Bulletproof Heart traduzia sinais de uma série de más opções no percurso recente de Grace Jones. Longe do fulgor de álbuns como Warm Leatherette (1980) ou Nightlife (1981), distante da elegância “design” de Slave To The Rhythm (1985), Grace Jones tropeçava no equívoco, dois anos depois de igualmente menos feliz operação em Inside Story... E saiu de cena. Dos discos, convenhamos. Apesar de ter chegado a gravar dois novos álbuns nos anos 90 (que nunca chegaram a ser editados), a sua vida pública na música escondeu-se entre palcos. Frequentemente secundários... A notícia do regresso chegou há alguns meses. E o aperitivo servido no magnífico Corporate Cannibal imediatamente chamou atenções, alertando para um álbum que não se deveria confundir com argumentos para lançar mais uma digressão de nostalgia, afinal um cada vez mais frequente lugar comum no panorama pop actual entre veteranos. Hurricane confirma agora que as expectativas lançadas pelo assombrado Corporate Cannibal não eram infundadas. O disco é talvez o que se poderia esperar de Grace Jones após longo silêncio de 19 anos. Tranquilo nos ambientes, é contudo um disco ousado, atento ao presente e por isso incisivo. Ao mesmo tempo não fecha a porta a toda uma carteira genética que correu pela discografia de Grace Jones, nomeadamente nos instantes que evocam as experiências dub registadas em inícios de 80 nos três álbuns que então gravou nos Compass Pont Studios, nas Bahamas. A dupla Sly & Robbie, que integrou a equipa convocada por Chris Blackwekll para essas míticas sessões conta-se de resto entre o cartaz de colaboradores convidados para participar em Hurricane, entre os quais se contam figuras como Brian Eno ou Tricky. Aos 60 anos, Grace Jones mantém viva a alma irreverente que dela fez invulgar ícone há 30 anos. Hurricane não contraria esta herança, mas cruza-a com uma capacidade em contemplar o tempo sem vontade de “enganar” o bilhete de identidade. Uma honestidade que se revela em depoimentos onde toda uma história de vida não se deixa ofuscar pelo brilho do ícone pop. Claramente autobiográficos, temas como William’s Blood ou I’m Crying (Mother’s Tears) revelam uma outra Grace Jones. Seja bem regressada!
Grace Jones
“Hurricane”
Wall Of Sound / Edel
4 / 5
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Através dos discos que tem editado como Luomo, o finlandês Sasu Ripatti alarga a outras regiões do espectro da criação electrónica o não menos interessante trabalho que tem vindo igualmente a desenvolver quando assina como Vladislav Delay. Como Luomo tem procurado espaços de reinvenção das linguagens da house (e espaços adjacentes). Convivial ajusta-se que nem uma luva a esta demanda, uma vez que abre mais que nunca terreno ao diálogo, à colaboração ou, como o próprio título sugere, ao “convívio”. Convívio em concreto com uma série de cantores que aqui não se limitam apenas a ser voz sobre criações Ripatti. Pelo contrário, o trabalho de construção das letras e, afinal, das canções, contou em pleno com a disponibilidade e esforço dos donos das vozes convocadas. Convivial é um disco no qual a canção é assumida como meta a atingir. Não necessariamente através dos códigos habituais da pop, mas em jogos de ensaio de ideias que permitem assim uma identidade híbrida entre as genéticas house na base da identidade de Luomo e os objectivos das colaborações que definem o disco. Figura com presença dominante em quatro das nove “canções” do álbum, a finlandesa Johanna Livanainen (cantora essencialmente ligada aos circuitos do jazz), que já colaborara no passado com Sasu Ripatti, define um horizonte do qual os restantes temas partem em busca das contribuições das demais vozes e do que nelas o timoneiro do projecto procurou. O calor de Sacha Ring (Apparat) gera em Love You All a pérola pop do álbum. Jake Shears (Scissor Sisters) “rouba” o protagonismo em If I Can’t. O travo (discreto) soul de Robert Owens aproxima Robert’s Reason das heranças primordiais americanas do género em meados de 80. A prosódia de Sue Cie sublinha o minimalismo subliminar que se escuta noutros temas, mas se expressa mais evidente em Nothing Goes Away. Convivial não oferece a revolução. Mas é uma das mais interessantes reflexões sobre as heranças da house, e da sua relação com a acanção, dos últimos tempos.
Luomo
“Convivial”
Humme / Flur
4 /5
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Praticamente ignorado quando em 2000 lançou o magnífico álbum de estreia Anthony and The Johnsons, aclamado cinco anos depois perante o não menos magnífico I’m a Bird Now, Antony & The Johnsons anunciam para 2009 um novo álbum. Porém, apesar dos quatro anos que o separam do disco anterior, Antony Hegarty raramente esteve longe das atenções. Desde que lançou I’m A Bird Now colaborou numa homenagem a Leonard Cohen (que deu filme), gravou uma versão de um clássico de John Lennon, em discos de Lou Reed, Björk, Marc Almond, Matmos, Joan as Policewoman, Current 93 ou Nico Muhly, cantou nos concertos que levaram Berlin, de Lou Reed, à St Ann’s Academy de Nova Iorque (participando assim no filme-concerto de Julian Schnabel) e, brevemente poderemos escutá-lo no novo disco de Marianne Faithfull. A sua música apareceu em filmes como Otto: or Up With Dead People, de Bruce LaBruce ou V For Vendetta, de James McTeige. E, naturalmente, foi uma das vozes-chave na estreia colectivo Hercules & Love Affair... Nas pausas foi trabalhando em canções que, brevemente, revelará em The Crying Light (a editar a 21 de Janeiro). E para já serve um aperitivo num EP de cinco canções. Na verdade só a faixa tema, Another World, um diálogo melancólico para voz e piano (um pouco em regime Antony em piloto automático), figurará no álbum. Dos restantes temas dois são inéditos absolutos, sendo os dois outros já conhecidos por quem acompanha os seus concertos. Crackagen é contemporâneo do álbum de estreia e Shake That Devil foi escutado na digressão de 2006 e 2007. Este último revela surpresas na cenografia, escapando à lógica de placidez habitual, insistindo numa erupção de intensidade, vincada pela percussão, que traz a disco um outro rosto da personalidade musical de Antony. Sing For Me e Hope Mountain regressam a uma base de trabalho para voz e piano, mas revelam espantosos arranjos de Nico Muhly, na verdade a única verdadeira mais-valia deste EP. Com mais uma bela capa (com Kazu Ohno fotografado por Pierre-Olivier Deschamps), este é um EP que sugere discreta evolução na continuidade. Não sacia o apetite. Mas, como aperitivo, cumpre a missão.
Antony & The Johnsons
“Another World”
Secretly Canadian / Popstock
3 / 5
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2008 está a afirmar-se entre nós como um ano da revelações de uma série de ideias e projectos que, depois de uma menos mediatizada primeira etapa de vida, ganham agora forma com a solidez que só uma gestação tranquila habitualmente permite. Noiserv é mais um nome a juntar ao mapa do Portugal musical de 2008. Projecto de um homem só (de sue nome David Santos), ganhou forma em 2005 com um concurso em vista. Seguiu-se um primeiro EP e, depois, o tempo necessário para projectar o passo seguinte que agora ganha forma em One Hundred Miles From Toughlessness, o álbum de estreia. Trata-se de uma bela colecção de canções, que partem do diálogo entre a voz e a guitarra acústica, e colhem depois o gosto pela construção de arranjos que, com elegância e economia de recursos, e sob interessante escolha de instrumentos, transformam o que poderia ser um candidato a mais-do-mesmo (em regime “cantaurorês”) num credível manifesto de busca de identidade na música. O álbum, que parte de uma escrita enxuta, mostra sobretudo argumentos no campeonato da construção de cenários para as canções, com resultados particularmente interessantes em temas como 307d, Bompempi (escola Magnetic Fields no seu melhor) ou Consolation Prize. A voz, que se compreende igualmente em busca de um espaço seu, acusa ocasionalmente excessos de sombras e dramatismo (a sugestão dos climas, implícita na construção das canções, seria aqui suficiente para o efeito). E depois do conteúdo, a forma. É impossível falar deste álbum sem referir o objecto-disco que encerra a música. Na forma de um bloco de notas, com 11 ilustrações a lápis de Diana Mascarenhas (uma por canção), e um lápis como “extra”, a “embalagem” é das melhores ideias de packaging que a música portuguesa conheceu nos últimos tempos.
Noiserv
“One Hundred Miles From Toughlessness”
Merzbau
3 / 5
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É verdade que temos assistido, nos últimos tempos, ao aparecimento de fontes de novidade pop bem mais estimulantes fora que dentro do Reino Unido. Mesmo assim, o último ano deu a conhecer uma série de nomes e bandas estreantes, semeando primeiras sugestões das quais se esperaram resultados em colheitas seguintes. O discreto Eugene McGuiness, natural de Liverpool, mostrou-se no ano passado com um primeiro mini-LP (The Early Leanings Of Eugene McGuinness) que passou a leste das atenções. Agora edita um álbum que o confirma como ecléctico cantautor de perfil pop. Como tantos outros que fizeram a história da canção pop(ular) inglesa, revela-se natural herdeiro de escolas “clássicas” da identidade pop britânica. Das heranças pop de 60 (Beatles, Kinks) à vitalidade pós-punk de finais de 70, de citações aos Smiths ao desejo em projectar na música traços do festim pop dos velhos singles da Postcard (leia-se em concreto a memória de uns Orange Juice ou Joseph K) aqui encontramos ecos de figuras-chave que fazem parte de uma identidade de referência de um espaço e um tempo que formaram já mais que uma geração de músicos. O disco faz contudo questão de nos lembrar que não estamos perante um deslumbrado visionário ou um eventual candidato a mera estrela pop (a imagem, de resto, desmonta quaisquer dúvidas com sentido de humor e de auto-crítica). O apelo melodista das suas canções, o tom maior que respira nos refrões, não procuram, de facto, uma batalha pela originalidade. Mas entre modelos e referências “inevitáveis” num aprendiz claramente inspirado pelos nomes de referência que teve por educação há ocasionais frestas de surpresa, Sobretudo no dosear de ideias, na culinária dos sabores que, misturados, geram uma bela colecção de canções. Apesar das diferenças, o álbum junta-se à estreia recente dos Last Shadow Puppets para sugerir que o apetite “brit” pela evocação da sua memória melhor pop está na ordem do dia.
Eugene McGuinness
“Eugene McGuinness”
Domino / Edel
3 / 5
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Também esta semana:
Of Montreal, Lou Reed (live), Ryan Adams, Maria João + Mário Laginha, Shed, Cazals, Johann Johansson, Fall Out Boy, Elvis Presley (duetos de Natal), Paul Weller (BBC sessions), Bob Dylan (DVD), Megapuss, Q-Tip, Razorlight, Stephen Sondheim (caixa), Ry Cooder (best of), Herbert, Luomo, Burnt + Jacki, Girl Talk
Brevemente:
10 de Novembro: Flaming Lips, The Smiths (best of), Genesis (caixa), Stereophonics, Tracy Chapman, Metro Area, Murcof, Damned (reedições)
17 de Novembro: David Byrne + Brian Eno, Belle & Sebastian (BBC Sessions), Simon Bookish, Parenthetical Girls, Casiotone For The Painfully Alone (EP), Marc Almond (reedições)
24 de Novembro: The Killers, Abba (caixa), Doors (live), Momus,
Novembro: Neil Young (live), Philip Glass (caixa – edição nacional), John Adams (edição nacional), Marc & The Mambas (reedição), Max Richter
Dezembro: Dakota Suite, Yelle (remix), Shirley Bassey (reedições), The Smiths (caixa), Motown 50, Kanye West