Harry Potter anda, por certo, a estudar o futebol português: afinal de contas, as suas atribulações não podem deixar de seduzir o jovem feiticeiro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 de Dezembro).
Desde a primeira apresentação oficial da candidatura ibérica à organização do Mundial de Futebol de 2018, fui dos que a consideraram um erro económico, político e simbólico. Com crescente espanto, observei a postura da maioria dos actores da classe política que, embora gritando diariamente a palavra “crise”, se foram escusando ao mais pequeno soluço para, pelo menos, perguntar qual o lugar da indústria do futebol na dinâmica financeira do nosso país. E não tanto porque, de acordo com os números agora divulgados, Portugal investiu 2,8 milhões de euros na sua candidatura. Sobretudo porque não descobri um único discurso oficial para situar o Mundial na hierarquia das prioridades nacionais.
Daí que, esta semana, seja inevitável eleger as imagens de Gilberto Madaíl [foto à esquerda], logo após o anúncio da Rússia como país organizador da competição de 2018, como um momento emblemático da arte contemporânea de ser português. Naturalmente cansado e desiludido, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol fez questão em deixar aos repórteres presentes em Zurique uma devastadora insinuação: para ele, o projecto russo foi sempre “misterioso”.
Há qualquer coisa de profundamente incómodo quando alguém que, embora ligado a uma área profissional específica, representa internacionalmente o nosso país, vem a público referir-se a um outro país utilizando este tipo de não-discurso. Dir-se-ia que encontramos aqui o síndroma Harry Potter. Na sua tecnocracia tecnológica, os filmes do “jovem feiticeiro” são cada vez mais longos e espalhafatosos, mas ao fim de quase três horas de tédio, aquilo que a história avança cabe em meia dúzia de palavras: afinal, o malvado Voldemort [imagem à direita] conseguiu a espada...
Sem surpresa (e salvo distracção pela qual, desde já, me penitencio) os comentadores que insistem em classificar os resultados dos jogos de futebol como “justos” ou “injustos”, não se pronunciaram sobre a questão. E teria sido útil avaliar se é justo lançar suspeitas deste teor sobre a Rússia e os seus representantes. Mais do que isso: há pelo menos dois anos, face à apresentação da nossa candidatura como um “desígnio nacional”, teria sido interessante perguntar quais os problemas de justiça económica e social que um Mundial de Futebol viria ajudar a enfrentar, eventualmente resolver (isto, claro, sem esquecer que os dez estádios do Euro 2004 nos lançaram no vertiginoso progresso e bem estar que, actualmente, desfrutamos...).
Fascinante palco de imagens, emoções e celebrações, o futebol continua a ser um universo que a ideologia mediática dominante coloca fora de qualquer discussão cultural. Em boa verdade, sendo a cultura a paisagem (imensa e contraditória) da nossas formas de percepção e acção sobre o mundo, o futebol, mais do que os filmes, os livros ou as músicas, é o produto cultural por excelência. Que muitos políticos, e não poucos jornalistas, recalquem essa evidência, eis o que se afigura, no mínimo, misterioso.