quarta-feira, dezembro 12, 2007

Micro & Audio

O novo teledisco de 2Night, segundo single extraído do álbum Odd Size Baggage, dos portugueses Micro Audio Waves é uma bela homenagem à obra de Gilbert & George. Bela nota de encerramento para aquele que foi o ano de grande afirmação deste projecto nacional.

Novo 'best of' de Morrissey

Morrissey edita um novo best of em Fevereiro. Antes, em finais de Janeiro, lança o single That's How People Grow Up, um inédito que juntará ao alinhamento dessa antologia.

Em conversa: Okkervil River

Iniciamos hoje a publicação de uma entrevista com Will Sheff, vocalista e principal compositor dos Okkervil River, o recente álbum The Stage Names estando, naturalmente, no centro das atenções.

The Stage Names, o vosso novo disco, revela uma série de reflexões sobre o sentido que a arte pode hoje ter na vida de cada um. Não é uma temática habitual em clima rock’n’roll...
Acho que as pessoas têm uma relação muito viva e atenta com os media. Vivemos num mundo invadido pela televisão, pela publicidade, o cinema e canções pop. Através dos media as pessoas adquiriram gostos mais sofisticados. Mas, ao mesmo tempo, podemos estar muito atentos a uma coisa, conghecê-la a fundo, e reagir com surpresa e maravilha a outras coisas que não conhecemos. Seja ao ver um filme ou a escutar uma canção que nunca se tinha ouvido antes.
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Reconhece a presença de uma ideia de arte na música que se faz hoje em dia?
Não sei... Há bandas contemporâneas de que gosto muito, assim como muitas outras que me não interessam. Só o tempo nos dirá o que é bom e o que é lixo. Como vemos hoje com as bandas dos anos 80. Só o tempo o dirá. Pessoalmente tenho escutado mais música antiga. Mas há muito boa música a fazer-se hoje em dia.

Com se relacionam, para si, a noção de arte e a de comércio (dessa mesma arte)?
Há pouco tempo estivémos em Florença. É uma cidade incrivelmente bela, com obras de arte por todo o lado. E ficamos com a ideia de estar num outro tempo... Somos espiritualmente elevados a outro patamar. Mas quando nos apercebemos que, naquelas igrejas, naquelas pinturas, se reflectem imagens dos patronos, de homens ricos que pagaram muito dinheiro a estes artistas, verificamos que a arte, na verdade, nunca esteve afastada do comércio.

A cultura pop costuma apontar Warhol como paradigma de um certo tipo de relação saudável entre a arte e o comércio...
É interessante reparar que, a dada altura, o expressionismo abstracto se tinha tornado tão aborrecido... Aquela coisa macho, chauvinista, muito séria, sem sentido de humor... Warhol mostrou que a arte poderia não precisava de ter aquele ego... Que podia ter uma outra leveza, até mesmo quando se usam imagens de uma cadeira eléctrica. Acredito que não se pode nunca ser 100 por cento puro. Mas também sei que a arte pode ser manipulada de uma forma sinistra. Vejamos a arte ligada à publicidade, por exemplo. Há anúncios espantosos. Os grandes anúncios são criados por pessoas muitíssimo talentosas, que “conspiram” para criar sensações. A sensação não é uma de bem estar, de contemplação pelo belo, de descoberta, mas sim uma sensação de querer comprar algo. A publicidade, por isso, pode ser sinistra. Acredito que há enormes potencialidades, contudo, na forma como Warhol encarou as coisas.
(continua amanhã)

terça-feira, dezembro 11, 2007

Discos da semana, 10 de Dezembro

Tudo nasceu de uma ideia ainda nos dias de Poses. Em finais de 2001, a viver um tempo menos feliz na sua vida pessoal, Rufus Wainwright encontrou, em ocasional passeio entre discotecas de Nova Iorque, um CD com a gravação de uma noite histórica vivida por Judy Garland no Carnegie Hall, em 1961. Comprou o disco, escutou-o vezes sem conta, e deu por si a cantar todas as canções... Nelas redescobriu uma das características que mais admira nos americanos: a esperança que sempre faz brotar a luz mesmo nos momentos de pior escuridão. Cinco anos depois, com um cartaz replicando em tudo esse mesmo concerto, Rufus subia ao mesmo palco para, canção a canção, recriar aquele momento. Foi em Junho de 2006, repetindo a experiência, já este ano, em Londres, Paris e Los Angeles. E ponto final, justificando que, fora do seu repertório habitual (apesar de algumas destas canções terem entretanto conquistado merecido lugar nos seus concertos regulares), este era um projecto com vida própria para um momento concreto. E que, com as presentes edições em CD e DVD fica registado, para mais tarde recordar. Como a soberba gravação agora editada em disco revela a quem não esteve na plateia, o concerto foi musicalmente competentíssimo. Sob humilde autocrítica, Rufus Wainwright disse desde o início deste projecto que não tem voz para cantar jazz e outras músicas nas suas cercanias. Todavia, mais que jazz, esta é uma celebração da memória do musical. Evoca a herança dos palcos da Broadway, do West End londrino e do cinema de Hollywood. Rogers & Hammerstein, Noel Coward ou George Gershwin foram alguns dos autores convocados a um desfile de canções, entre as quais clássicos como Puttin On The Ritz, Zing Went The Strings Of My Heart, A Foggy Day In London Town, Come Rain or Come Shine ou o inevitável Over The Rainbow. O CD que guarda agora a memória da actuação no Carnegie Hall regista a integral dos acontecimentos naquela noite. O retrato é de fidelidade tal que não apaga a gargalhada ocasional, a piada inesperada ou mesmo um engano. No fim fica a certeza: se em Rufus Wainwright conhecíamos já um dos melhores autores da sua geração, aqui confirma-se também o espantoso intérprete que é. A estrela liberta-se.
Rufus Wainwright
“Rufus Does Judy At Carnegie Hall”

Geffen / Universal
5/5
Para ouvir: MySpace


Mais uns canadianos... Sim, e com as “marcas” de estilo habituais na coisa. Contudo, ao terceiro álbum os Sunset Rubdown mostram ser mais que apenas acólitos de uma manifestação já em marcha. Inicialmente um projecto a solo de Spencer Krug (também nos Wolf Parade, Swan Lake e Frog Eyes), a ideia evoluiu e tem hoje corpo de banda. E Random Spirit Over parece ter em si todos os ingredientes para encantar que não encontra já entusiasmo suficiente nuns Arcade Fire. Na base da genética deste colectivo com sede em Montreal há traços comuns, sublinhando talvez a costela Bowiesca de finais de 70, vincando depois uma personalidade distinta ao focar um claro prazer pela exploração de um sentido teatral da pop de finais de 60, afirmando ainda afinidades recentes com o tom de aparente caos ordenado de uns Flaming Lips (etapa Soft Bulletin) e, inevitavelmente, uma coexistência de urbanidade e desejo de fuga para os grandes espaços e emoções que tem nos Neutral Milk Hotel uma cartilha de referências. O álbum é um vício que se descobre em repeat. Estranha-se no primeiro contacto, a familiaridade permitindo-nos depois descobrir conforto no regresso, certo sendo que a surpresa se mantém em sucessivas audições, tantos os elementos em jogo. O disco é denso, tenso, mas plenamente recompensador. Cruza um ecletismo lo-fi de quarto de dormir com sonhos quase operáticos ao jeito do art rock de 70. As melodias, aparentemente escondidas, brotam de surpresa e arrebatam o ouvinte. As letras, invulgares, falam de personagens pouco habituais e histórias longe de banais. Quando Spencer Krug depurar um pouco o excesso de informação que aqui convoca, fará “o” disco perfeito que claramente procura atingir. Este álbum mostra-nos que está quase lá... E no caminho certo.
Sunset Rubdown
“Random Spirit Over”
Jagjagwar / Sabotage
4/5
Para saber mais: site oficial


E agora um salto a Itália. Sim, uma rara oportunidade para descobrir, com a cortesia Sup Pop, o que de mais interessante acontece hoje nos cenários indie em terras das quais, discograficamente, nos costumam chegar apenas os sub-produtos Pausinis, Zuccheros e afins... Chamam-se Jennifer Gentle, vêm de Pádua e, depois de três álbuns editados em pequenas independentes locais, viram-se no catálogo da Sub Pop, o que lhes permitiu a inevitável porta para outros voos, entre os quais uma passagem como banda de suporte por concertos dos Sonic Youth. Com sete anos de vida, constituída por quatro músicos ainda na casa dos vintes, os Jennifer Gentle são mais um caso de clara admiração pelos Pink Floyd, fase Syd Barrett. The Midnight Room, o seu quinto álbum, não esconde esta carga genética, revisitando temas como Mercury’s Blood ou Como Closer ambientes que lembram o psicadelismo, de tempero pastoral, de Piper At The Gates of Dawn. O som do álbum, contudo, soma outros elementos à Bíblia floydiana. As canções, de melodismo clássico, são encaradas com um sentido cenográfico, que frequentemente lembram o tom sombrio, misterioso, mas cativante, da música de Danny Elfman (no cinema de Tim Burton). A banda cita o cinema de Fellini também como influência. E entre pianos desafinados, instrumentos bizarros, uma voz de relativa fragilidade (que lembra por vezes a de Edward Ka-Spel, dos Legendary Pink Dots) brota como fresta na escuridão, reforçando a plasticidade sugestiva de uma música invulgarmente cinematográfica. A descobrir!
Jennifer Gentle
“The Midnight Room”

Sub Pop / Popstock
3/5
Para ouvir: MySpace


O segundo álbum ao vivo dos Daft Punk, seis anos depois do (quase) inconsequente Alive 1997 corre seriamente o risco de ser pouco mais que um recuerdo para quem pode ver o espantoso concerto que o duo levou ao Sudoeste em 2006. Espectáculo multimédia, o concerto vê-se aqui despido de metade dos seus elementos: as imagens. Banda sonora, portanto, de um evento que não dispensa o olhar, Alive 2007 é magra resposta a quem lembra o que viu (e ouviu) e incompleto retrato a quem lá não esteve. Musicalmente, é certo, o espectáculo recorria a uma série de ideias interessantes, sobretudo os jogos de cruzamento de canções dentro de canções, umas vezes apenas na forma de citações, outras em verdadeiras operações de “fusão”. No topo da sua pirâmide, os dois músicos tinham à sua frente uma série de comandos que lhes permitiam lançar loops, samples, manipular sons, disparar sequências, conferindo a uma série de acontecimentos digitais a característica “ao vivo” que justificava o encontro da plateia com quem estava em palco. Porém, em disco, estas colagens e cruzamentos pouco mais parecem que um mega-mix competente, com aplausos. Ainda por cima, falta ao disco o encore, no qual se junta á música dos Daft Punk o irresistível Music Sounds Better With You, do projecto paralelo Stardust. Mais valia um DVD...
Daft Punk
“Alive 2007”
Virgin / EMI Music Portugal
2/5
Para ouvir: MySpace


Não é invulgar vermos Trent Reznor a lançar álbuns de remisturas em jeito de complemento directo aos discos de originais que apresenta com os seus Nine Inch Nails. Menos habitual é vermos um sentido de coerência transversal a estes discos. Curiso, então o facto de reconhecermos no apenas mediano Year Zero o ponto de partida para um inesperadamente interessante lote de remisturas. Uma das forças mais evidentes deste projecto nasce com as escolhas dos colaboradores, da sua enorme disparidade de opções e obsessões brotando um conjunto que ganha pela versatilidade e abertura de caminhos a uma música que, em vez de afunilada numa rota, acaba, antes, disposta à metamorfose, qualquer que sejam os novos ingredientes que se lhe juntem, ou a dose de elementos que acabam retirados face à mistura original. O leque de nomes convocados é de facto invulgarmente variado, do pouco surpreendente Saul Williams à menos esperada presença do Kronos Quartet, passando por propostas interessantes como os Ladytron, The Faint, a dupla Stephen Morris e Gillian Gilbert (dos New Order, também conhecidos como The Other Two), Fennesz ou Bill Laswell. Y34RZ3R0R3M1X3D (ler Year Zero Remixed) mostra um lote interessante de versões alternativas para deleite dos admiradores das electrónicas mais sombrias, nestas abordagens residindo soluções por vezes mais interessantes que as que, ultimamente, Reznor guarda nas suas leituras “de banda”.
Nine Inch Nails
“Y34RZ3R0R3M1X3D”
Interscope / Universal
3/5
Para ouvir: MySpace

Também esta semana: Muse (live), Pink Floyd (caixa), Happy Mondays (reedições), Sylvain Chauveau, John Lennon (reedição), Caetano Veloso (DVD), Pylon (reedição), Woman In Panic

Brevemente:
Dezembro: Johnny Greenwood, Radiohead, Montag
Janeiro: Magnetic Fields, British Sea Power, Sons & Daughters, Sérgio Godinho
PS. A crítica a Rufus Wanwright é versão editada de texto já publicado na revista NS

Rufus e Judy
Amanhã na Fnac Chiado

Não os próprios, naturalmente. Antes, as canções de Judy Garland na voz de Rufus Wainwright, no CD e DVD que registam os concertos que recriaram uma noite no Carnegie Hall, em 1961. Antes, um breve percurso de sons imagens com Rufus Wainwright por protagonista. Apresentação, pelas 19.00 horas, a cargo de Nuno Galopim, no auditório da Fnac Chiado.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Pop a cores

Depois do soberbo The Warning, de 2006, o terceiro álbum dos Hot Chip é coisa pop do mais esperado de 2008. Tem por título Made In The Dark e data de edição marcada para 8 de Fevereiro. Como aperitivo serve-se o single Ready For The Floor, com um dos telediscos mais... pop do ano!

Reunião? Mais uma a caminho...

Agora parece que são os Spandau Ballet! Correm rumores sobre possível reencontro, em 2008 em... Las Vegas, e por valente soma (duas mil libras, diz-se)... Se tocarem o primeiro álbum e uma mão cheia de temas do segundo, ainda vá que não vá... Mas, em Las Vegas, soa mais a coisa da etapa True, Gold e afins. Ou seja, quando o grupo virou insuportável glamour baladeiro popularucho.

Para redescobrir a Alemanha de Fassbinder

Na história da produção audiovisual europeia, Berlin Alexanderplatz (1980), de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) ocupa um lugar fundamental. E importa sublinhar esse mesmo conceito de audiovisual: de facto, ao adaptar o romance de Alfred Döblin, publicado em 1929, Fassbinder propunha um entendimento amplo e inventivo das potencialidades da televisão. Na prática, temos uma série de 14 episódios, com uma duração total de 15 horas, que acaba por ter a ambição, o fôlego e a complexidade de um genuíno épico de cinema. Ou seja: um retrato obsessivo da Alemanha dos anos 20, seguindo a trajectória de Franz Biberkopf (Günter Lamprecht), um homem “igual a tantos outros”, recentemente saído da prisão, deambulando através de um mundo de contrastes e violências onde se pressentem os primeiros sinais do nazismo.
Felizmente, a preservação da obra de Fassbinder (através da fundação que ostenta o seu nome) tem permitido o aparecimento de excelentes edições em DVD. Ainda há poucas semanas, surgira no mercado português uma caixa com sete dos seus filmes, incluído essa raridade que é Effi Briest/Amor e Preconceito (1974). Agora, Berlin Alexanderplatz, numa caixa com seis discos, impõe-se como um dos acontecimentos fulcrais deste final de ano, a par de outras edições de mestres como Robert Bresson, Andrei Tarkovski ou Fritz Lang.
Na evolução de Fassbinder, Berlin Alexanderplatz corresponde a um momento em que a internacionalização do seu trabalho estava consumada. Bastará lembrar que O Casamento de Maria Braun, porventura o seu filme mais popular, é do ano anterior, 1979. Em todo o caso, nada disso impede de vermos aqui a exposição metódica de um tema que atravessa toda a sua obra: a solidão individual e os estranhos ecos que nela produzem as convulsões colectivas.
Recusando qualquer efeito “sociológico” de causas e efeitos, Berlin Alexanderplatz distingue-se, antes de tudo o mais, por um realismo tão directo quanto desencantado. O mergulho de Biberkopf nas sombras berlinenses é-nos apresentado através de uma abundância de detalhes que conferem à época evocada um perturbante jogo de contrastes; ao mesmo tempo, vai-se instalando um sentimento de fantástico, quase de alucinação, que faz rever a história como uma parada de corpos e fantasmas, ideias e pesadelos.Restaurado digitalmente, Berlin Alexanderplatz pode agora ser revisto e reavaliado como merece, e tanto mais quanto, contra a lógica criativa de Fassbinder, a evolução dos padrões televisivos tem sido infinitamente conservadora e medíocre. A edição inclui vários extras preciosos para a necessária contextualização de Fassbinder, com destaque para um “making of” e o documentário Um Filme Colossal e a sua História (2007), dirigido por Juliane Lorenz, actriz de Berlin Alexanderplatz, colaboradora do cineasta e directora da Fundação Fassbinder. - J.L.
PS. Versão editada de um texto originalmente publicado no DN

Um inglês em Nova Iorque

Ano Bowie – 68
‘Earthling’ – álbum, 1997
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O ambiente vivido durante a digressão que se seguiu à edição de 1.Outside determinou o passo seguinte. Satisfeito com a banda e com as suas abordagens estéticas a um espaço que partia do rock’n’roll para assimilar estímulos nas electrónicas, atento como não acontecia desde os anos 70 aos acontecimentos musicais em Inglaterra (de Tricky aos Prodigy), David Bowie reuniu os músicos para novas sessões de trabalho nos estúdios de Philip Glass, em Nova Iorque. Telling Lies foi ponto de partida que definiu caminhos. Como não acontecia desde Diamond Dogs, Bowie assumiu a produção do disco na primeira pessoa, certo que estava então dos rumos a seguir. De trás retomou uma série de experiências de manipulação e geração de módulos electrónicos com base em trabalho para guitarras que, inicialmente previstos para 1.Oustide, acabaram postos de lado, à espera de vez, com a entrada em cena de Brian Eno. A construção rítmica, nalguns momentos apontada à exploração do drum'n'bass (não omnipresente, como alguma errada mediatização sugeriu) foi base para a evolução de canções na verdade maioritariamente criadas segundo métodos “clássicos”, revelando-se este o mais intensamente rock’n’roll dos discos a solo de Bowie desde Scarry Monsters (1980). O disco recuperou um out-take de 1.Outside. Era I’m Afraid Of Americans, sombrio, de ficção-científica, quase em reinvenção, mais de 20anos depois, do clima orwelliano de Diamond Dogs. Todavia, contra a atmosfera opressiva deste tema (e demais memórias recentes de 1.Oustide), Earthling é um álbum no qual, mais que os males do mundo presente e temores futuros, Bowie usa como espaço de reencontro com uma certa espiritualidade, retomando antigos diálogos entre a dúvida e a fé. A relação com as suas raízes britânicas ultrapassa, no disco, o plano das relações musicais, manifestando-se inclusivamente numa capa que então gerou a mais forte imagem de Bowie na década de 90. O disco foi bem acolhido, mais aclamado ainda que 1.Oustide. E reafirmou, depois de uns anos 80 essencialmente mal focados, um reencontro com a rara capacidade de convívio do desafio das formas com a comunicação para massas. Um feito, reconhecido, no ano em que então celebrava o seu 50º aniversário.

domingo, dezembro 09, 2007

Nova música "glássica"

Está já editada em disco a obra que marca o ano em que Philip Glass celebra os seus 70 anos, aquela que mais extensa e mediatizada digressão protagonizou. Trata-se do ciclo de canções Book Of Longing, baseado em poemas de Leonard Cohen, contando inclusivamente com a sua voz em algumas leituras e com os seus desenhos e pinturas como suporte visual. O projecto começou a nascer há já algum tempo, dando voz a uma antiga admiração de Glass por Cohen. Ao ler estes poemas, Glass descreveu-os como “intensamente belos, pessoais e inspiradores”. Propôs ao canadiano um projecto para uma noite de música, poesia e imagens. O sim foi imediato, e mãos à obra... A estreia mundial ocorreu a 1 de Junho em Toronto, seguindo-se longa digressão que passou por várias cidades, a última das quais Madrid, em finais de Outubro. Lisboa, nicles. Book Of Longing parte de poemas escritos ao longo dos últimos 20 anos por Leonard Cohen, oito dos quais vividos no mosteiro budista de Mt. Baldy. Os poemas reflectem formas e temáticas variadas. Há baladas, poemas de amor, episódios autobiográficos, meditações, e até mesmo pequenos momentos de humor. A gravação que agora surge, num CD duplo, pela Orange Mountain Music, editora do próprio Philip Glass, emprega o ensemble de músicos e vozes que acompanharam a digressão de apresentação desta obra As vozes – Dominique Plaisant (soprano), Tara Hugo (mezzo soprano), Will Erat (tenor) e Daniel Keeling (barítono) – juntam-se em agrupamentos diversos, conferindo ao todo uma consistência evidente, um sentido de unidade, de obra. Formalmente Book Of Longing é substancialmente diferente do sublime Songs From Liquid Days, ciclo de canções de meados de 80 no qual, mais próximo de uma curiosidade pelas características da canção pop, se assinalou inesquecível colaboração com figuras como David Byrne, Paul Simon, Suzanne Veja e Laurie Anderson. Mais próximo do que conhecemos do teatro musical de Glass (as suas óperas e demais obras de grande dimensão para palco), Book Of Longing é um conjunto de quadros que nascem dos poemas, da música e do canto. Ao contrário do que escutámos recentemente em obras nas quais se revelam sinais de libertação de certas obsessões linguísticas, Book Of Longing é um claro espaço de afirmação das marcas características da escrita de Glass para voz (cantada em inglês) e pequeno ensemble para teclados electrónicos, sopros, um violino, um violoncelo e um contrabaixo. A junção das palavras à música é perfeita. A clareza da dicção sublinha a importância da palavra. O universo de Cohen ganha novas visões. E a música de Glass conhece aqui uma das suas obras de referência da presente década.

Da Orange Mountain Music chegou também, recentemente, uma das mais belas óperas de Philip Glass. Estreada em 1998, Monsters Of Grace resulta de mais uma parceria com Robert Wilson. Cenicamente tratou-se de uma operação multimedia, procurando aproveitar as potencialidades que as novas tecnologias digitais abrem ao teatro musical. A produção enfrentou alguns problemas, nomeadamente no plano visual (concretamente nas animações a 3D) , somando aí algumas frustrações e as suas maiores críticas. Musicalmente, contudo, Monsters Of Grace é um dos mais belos exemplos da escrita teatral de Glass. Baseado em textos de um místico do século XIII, capta nas músicas do Oriente pistas que se diluem na linguagem do compositor, criando uma experiência profundamente inspiradora, pacífica, elevada. E dotada de um lirismo mais evidente que o que era habitual na música de Glass em finais de 90.

Ao mercado chegou, meses depois da edição para download, o CD com uma nova gravação da segunda sinfonia de Glass baseada na música de David Bowie e Brian Eno. A Heroes Symphony, na verdade não mais que um conjunto de reflexões, com grande sentido de liberdade e intervenção pessoal, de Glass, sobre seis temas (uns vocais, outros instrumentais) do álbum Heroes, de 1977, é um dos mais interessantes exercícios de diálogo entre os espaços da cultura pop e os da música erudita. Bowie e Eno estão na base da ideia, a Glass devendo-se o encontrar de novas formas a partir dessas sugestões. Belísima gravação da Bornemouth Symphony Orchestra, dirigida por Marin Alsop, para a Naxos. O disco inclui ainda uma gravação de The Light (peça orquestral de 1987).