segunda-feira, dezembro 10, 2007

Para redescobrir a Alemanha de Fassbinder

Na história da produção audiovisual europeia, Berlin Alexanderplatz (1980), de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) ocupa um lugar fundamental. E importa sublinhar esse mesmo conceito de audiovisual: de facto, ao adaptar o romance de Alfred Döblin, publicado em 1929, Fassbinder propunha um entendimento amplo e inventivo das potencialidades da televisão. Na prática, temos uma série de 14 episódios, com uma duração total de 15 horas, que acaba por ter a ambição, o fôlego e a complexidade de um genuíno épico de cinema. Ou seja: um retrato obsessivo da Alemanha dos anos 20, seguindo a trajectória de Franz Biberkopf (Günter Lamprecht), um homem “igual a tantos outros”, recentemente saído da prisão, deambulando através de um mundo de contrastes e violências onde se pressentem os primeiros sinais do nazismo.
Felizmente, a preservação da obra de Fassbinder (através da fundação que ostenta o seu nome) tem permitido o aparecimento de excelentes edições em DVD. Ainda há poucas semanas, surgira no mercado português uma caixa com sete dos seus filmes, incluído essa raridade que é Effi Briest/Amor e Preconceito (1974). Agora, Berlin Alexanderplatz, numa caixa com seis discos, impõe-se como um dos acontecimentos fulcrais deste final de ano, a par de outras edições de mestres como Robert Bresson, Andrei Tarkovski ou Fritz Lang.
Na evolução de Fassbinder, Berlin Alexanderplatz corresponde a um momento em que a internacionalização do seu trabalho estava consumada. Bastará lembrar que O Casamento de Maria Braun, porventura o seu filme mais popular, é do ano anterior, 1979. Em todo o caso, nada disso impede de vermos aqui a exposição metódica de um tema que atravessa toda a sua obra: a solidão individual e os estranhos ecos que nela produzem as convulsões colectivas.
Recusando qualquer efeito “sociológico” de causas e efeitos, Berlin Alexanderplatz distingue-se, antes de tudo o mais, por um realismo tão directo quanto desencantado. O mergulho de Biberkopf nas sombras berlinenses é-nos apresentado através de uma abundância de detalhes que conferem à época evocada um perturbante jogo de contrastes; ao mesmo tempo, vai-se instalando um sentimento de fantástico, quase de alucinação, que faz rever a história como uma parada de corpos e fantasmas, ideias e pesadelos.Restaurado digitalmente, Berlin Alexanderplatz pode agora ser revisto e reavaliado como merece, e tanto mais quanto, contra a lógica criativa de Fassbinder, a evolução dos padrões televisivos tem sido infinitamente conservadora e medíocre. A edição inclui vários extras preciosos para a necessária contextualização de Fassbinder, com destaque para um “making of” e o documentário Um Filme Colossal e a sua História (2007), dirigido por Juliane Lorenz, actriz de Berlin Alexanderplatz, colaboradora do cineasta e directora da Fundação Fassbinder. - J.L.
PS. Versão editada de um texto originalmente publicado no DN