segunda-feira, junho 29, 2020

Bob Dylan, cinéfilo

O 39º álbum da discografia de Bob Dylan, Rough and Rowdy Days, prolonga de forma surpreendente as principais matrizes da sua obra, incluindo um gosto narrativo que não é estranho a algumas heranças cinematográficas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Maio).

O novíssimo álbum de Bob Dylan, Rough and Rowdy Ways, 39º da sua discografia, é um prodigioso objecto de liberdade. No sentido mais político e, por assim dizer, mais didáctico que a liberdade pode envolver. Entenda-se: nele encontramos um pouco de tudo o que define a sua obra, das raízes folk ao gosto pela metódica valorização das palavras; ao mesmo tempo, nenhum modelo ou matriz chega para o classificar, de tal modo o artista se expõe como aquele que se encena através da renovação das próprias máscaras que usa.
A primeira das canções a ser divulgada, no mês de março, Murder Most Foul, evoca o assassinato de John F. Kennedy (“um dia negro em Dallas, novembro 1963”) como um trauma nuclear da história moderna dos EUA. Daí as muitas referências aos agitados anos 60, dos Beatles a Woodstock. Não são banais sinalizações nostálgicas, antes chamas vivas da memória que, num misto de precisão e melancolia, nos fazem sentir o labor do passado como “coisa” que define o nosso presente.
Algumas dessas evocações transcendem a década de 60, desenhando uma espécie de mapa patrimonial que, sendo americano, possui uma forte dimensão universal. Escusado será lembrar que a obra de Dylan é também um testemunho modelar dessa dimensão. De Patsy Cline a muitos nomes do jazz — Charlie Parker, Thelonious Monk, Stan Getz, etc. —, Dylan convoca todos aqueles que marcaram a sua trajectória e, mais do que isso, inscreveram marcas indeléveis na identidade nacional. Não faltando derivações “estrangeiras”, incluindo na canção de abertura do álbum, titulada a partir de um verso de Walt Whitman, I Contain Multitudes: aí é citado um grupo de “bad boys” britânicos, isto é, os Rolling Stones.
Acedemos assim a uma sensação ou, se quiserem, uma sensibilidade eminentemente cinematográfica e cinéfila. Como se a corrente das palavras arrastasse consigo uma galeria de imagens que as canções integram e, de alguma maneira, relançam no nosso tempo. Desde logo porque, também nesse campo, as citações são muitas e variadas: Buster Keaton, Harold Lloyd, Marilyn Monroe… Algumas delas mais ou menos paródicas, como o verso “Frankly, Miss Scarlett, I don’t give a damn”, citando a fala final de Clark Gable em E Tudo o Vento Levou (1939), ou quase esotéricas, como acontece no verso anterior a esse — “Goodbye, Charlie, goodby Uncle Sam” —, lembrando o filme Goodbye Charlie (entre nós Quando Ela Era Ele), fantasia cómica de Vincente Minnelli, com Tony Curtis e Debbie Reynolds, uma produção de 1964.
Nada disto envolve qualquer pretensão enciclopedista. Se há uma expressão antiga, porventura ferida por alguma banalização mediática, mas capaz de sugerir a peculiar energia de Dylan, é a tradicional definição do trovador: contador de histórias. Seja através da pulsação épica de Murder Most Foul ou da tocante invocação de um lenda do blues, em Goodbye Jimmy Reed, cada referência reaparece e, num certo sentido, renasce como novo acontecimento pertencente a uma nova narrativa.
Em boa verdade, a história artística e mitológica de Dylan confunde-se com essa arte de narrador. No célebre documentário de D. A. Pennebaker, Dont Look Back (1967), entre nós lançado como Eu Sou Bob Dylan, víamo-lo como estrela relutante do mundo do espectáculo, na fase em que contrariou os lugarers-comuns da tradição, começando a usar guitarras eléctricas. Compelido e, afinal, obrigado a rechaçar a imagem de cantor “de mensagem” em que alguns jornalistas o queriam encerrar, vêmo-lo numa famosa sequência em que se mostra implacável a desmontar os pressupostos retóricos das perguntas de um repórter da revista Time.
Em Rough and Rowdy Days, encontramos mesmo canções que fazem lembrar algumas matrizes clássicas do cinema, em particular de natureza melodramática. Escute-se essa pérola que é I’ve made up my mind to give myself to you, que poderia ter lugar num musical dos anos 40 com chancela da Metro Goldwyn Mayer. Solicitando a indulgência do leitor, eis uma hesitante tradução da primeira quadra: “Sentado no meu terraço, perdido nas estrelas / Escutando os sons de guitarras tristes / A pensar muito e pensando melhor / Tomei a decisão de me entregar a ti.”

Haim, "Don't Wanna" em teledisco

[FOTO: W Magazine, 2013]
As três irmãs de Los Angeles continuam a dar conta da colecção de pérolas, pop-mais-pop-não-há, do seu terceiro álbum de estúdio: Women in Music Pt. III — eis as Haim no novíssimo teledisco de Don't Wanna, mais um maravilhoso plano-sequência.

SOUND + VISION Magazine
— 1 Julho, 22h [ Instagram: @fnacportugal ]

Miley Cyrus canta "Help!"

A comunidade Global Citizen organizou um grande evento, realmente global — 'Global Goal: Unite for Our Future — The Concert' —, em que a chamada de atenção para alguns dos temas fracturantes do presente & futuro do planeta foi pontuada por várias performances musicais. Para a história, fica a espectacular versão de um clássico dos Beatles, Help!, por Miley Cyrus, especialmente dedicado aos investigadores do COVID-19. Foi em Pasadena, California, no Rose Bowl Stadium — vazio.

domingo, junho 28, 2020

sexta-feira, junho 26, 2020

Novo livro de Bernard-Henry Lévy
editado pela Guerra e Paz

A primeira tradução do novo livro de Bernard-Henri Lévy, Ce virus qui rend fou, será portuguesa, com chancela da editora Guerra e Paz: Este Vírus Que Nos Enloquece estará disponível em todas as livrarias, físicas e online, no dia 7 de Julho. Em discussão: "o COVID-19, a política, os media e o esquecimento do resto do mundo...", temas abordados pelo autor numa conversa na Radio Notre Dame. Eis uma mensagem de Lévy para os leitores portugueses e o registo dessa conversa.



"Tenet", de Christopher Nolan
— estreia com (mais uma) nova data

A data de estreia inscrita neste poster de Tenet já tinha sido alterada. O lançamento do novo filme de Christopher Nolan — uma aventura "para-além-do-tempo-real" protagonizada por John David Washington e Robert Pattinson —, inicialmente anunciado para 17 de Julho, tinha sido deslocado para 31 do mesmo mês (data ainda citada no site oficial no momento de redacção deste post), ou para a véspera, dia 30, em muitos mercados internacionais. Agora, a Warner Bros. voltou a alterar o seu calendário: Tenet passou a estar agendado para 12 de Agosto.
De acordo com notícia publicada no site The Wrap, a decisão resulta da conjugação de dois factores fundamentais: por um lado, os dados alarmantes da pandemia nas regiões de Nova Iorque e Los Angeles, essenciais do ponto de vista comercial e sem datas seguras para a reabertura das salas; por outro lado, o empenho de Nolan e da Warner em manter Tenet como um objecto de cinema, para ser descoberto num grande ecrã ["coming to theaters", garante o mais recente trailer].
O lançamento de Tenet será precedido da reposição global de alguns títulos de Nolan. No mercado português, o novo calendário é este:

2 Julho – Dunkirk
9 Julho – Interstellar
30 Julho – A Origem
12 Agosto – Tenet


>>> Lista das novas datas de estreia de produções americanas — The Wrap.

Spike Lee no Movie Club
— American Film Institute

Spike Lee em directo

Em directo no YouTube, a partir das 20h00, hora de Nova Iorque — 01h00 em Portugal: Spike Lee vai estar numa das habituais conversas do Movie Club do American Film Institute para falar de Do the Right Thinh/Não Dês Bronca (1989), por certo não esquecendo o seu novíssimo e prodigioso Da 5 Bloods [Netflix]. Antecipando o evento, eis uma breve apresentação de John David Washington.

quinta-feira, junho 25, 2020

"Time": imagens de mudança

Eis a encruzilhada a ser vivida pelos EUA: das memórias dramáticas da sua história à luta contemporânea contra o racismo, não abdicando das flores de uma utopia redentora. A imagem — uma pintura em acrílico da autoria de Charly Palmer, artista da cidade de Atlanta — serve de capa à edição da revista Time com data de 6/13 Julho. O título, "A América deve mudar", ecoa o desejo de transformação e justiça que as imagens podem transportar.

terça-feira, junho 23, 2020

A pandemia e os seus bárbaros

São imagens divulgadas por uma rádio francesa [RMC], dando conta das "festas-COVID" em Paris. Mesmo contornando qualquer discussão do conceito de "festa" sustentado por estes cidadãos, mesmo resistindo ao discurso profilático que insiste em simplificar tudo como um problema de "juventude", há qualquer coisa de agressivamente obsceno nestas celebrações sociais. Em boa verdade, o que está em causa — e que quase todos, sobretudo nos meios políticos e jornalísticos, tentam descartar — é a profunda degradação de qualquer conceito de sociedade, a ponto de estes novos bárbaros, ignorando os perigos de contágio de que são patéticos protagonistas, se apresentarem como símbolos de uma liberdade tanto mais inócua quanto desprovida de qualquer pensamento.

segunda-feira, junho 22, 2020

Ambrose Akinmusire — novo álbum

Trompetista da tradição e do seu contrário, músico de uma versatilidade que nunca cede a qualquer espécie de exibicionismo, Ambrose Akinmusire tem um novo álbum, on the tender spot of every calloused moment — assim mesmo, tudo em minúsculas, porventura querendo sublinhar o movimento interior de uma música que, através das suas convulsões, flui para um horizonte de inusitada harmonia. Para escutar, aqui está Yessss.

domingo, junho 21, 2020

Facebook: uma conta falsa [João Lopes]

Dois esclarecimentos sobre esta conta que surgiu no Facebook, utilizando o meu nome e imagens minhas:

1. A conta é falsa.

2. Não existe qualquer conta no Facebook que seja da minha responsabilidade.

JL

sábado, junho 20, 2020

Pedro Lima (1971 - 2020)

Actor de teatro, cinema e televisão, Pedro Lima faleceu no dia 20 de Junho: o seu corpo foi encontrado na praia do Abano, Guincho — contava 49 anos.

>>> Obituário no Sapo.

* * * * *

Por razões profissionais, guardo uma memória fortíssima e muito carinhosa de Pedro Lima, mesmo se enraizada num período de tempo relativamente curto. Foi em 2004. Correspondendo a um convite do nosso amigo João Lourenço, o Rui Pedro Tendinha e eu encenámos no Teatro Aberto, em Lisboa, uma trilogia de pequenas peças de Neil LaBute (Em Viagem, Desvio e Terra dos Mortos) — o espectáculo recebeu o título de "Paisagens americanas".
A estreia ocorreu no dia 19 de Março, com um elenco de cinco actores que se desdobravam pelos três segmentos do espectáculo. Também nunca esquecerei o seu rigor e entrega: Juana Pereira da Silva, Lígia Soares, Pedro Penim, Rui Morisson e Sofia Aparício. Logo após o primeiro fim de semana (creio que apenas com três representações), o Rui Morrison teve um acidente num pé, ficando impedido de continuar. Para o substituir, a alternativa em que todos rapidamente acordámos foi, justamente, o Pedro Lima. E o mínimo que posso dizer é que, ao longo de uma acelerada semana de novos ensaios, foi possível refazer o espectáculo com o novo actor.
Neste momento de luto, não quero ceder a esse vício mediático que faz com que, não poucas vezes, confundamos a memória dos que perdemos com a "obrigação" de os colocar no centro de tudo o que com eles, de uma maneira ou de outra, partilhámos. E não posso deixar de repetir que lembro as nossas "Paisagens americanas" como uma bela experiência criativa partilhada, antes do mais, com o Rui Pedro Tendinha, depois com o elenco e todas as pessoas do Teatro Aberto.
Do Pedro Lima, do seu trabalho, conservo, em particular, a memória de um misto de contenção e risco que, em cada situação, com ou sem sugestões explícitas dos encenadores, o levava a procurar a precisão austera de um minimalismo de inusitadas intensidades emocionais. Sem outro recurso que não seja encarar a tristeza do seu desaparecimento, permito-me recordar "Paisagens americanas" através do respectivo cartaz (com o elenco ainda com o Rui Morrison), duas fotografias e a canção Last Nite, de The Strokes, que se escutava na abertura de Terra dos Mortos.


Na solidão de Tenci

Digamos que Tenci — nome artístico de Jess Shoman (Chicago) — começa por soar a uma nostalgia pós-moderna, algo folk, pós-folk (se é que isso existe); dir-se-ia que há nela uma ânsia de regressar à tradição que combina bem com o sua pose indie. Ao mesmo tempo, a descrição parece insufiente, de tal modo as suas canções, sem serem ostensivamente experimentais, nos convocam para os caminhos mais inesperados e inclassificáveis. Tudo isto dito, musicado e cantado numa solidão pudica, também ela contida e envolvente — a prova: Joy.

quinta-feira, junho 18, 2020

Shortcutz Ovar — o regresso

[FOTOS: Rui Pedro Tendinha]
Noite de 18 de Junho. Cenário: Escola de Artes e Ofícios, Ovar. Tiago Alves apresenta aquele que, depois da cerca sanitária, é o primeiro evento público na cidade. Dito de outro modo: o Shortcutz Ovar retoma, assim, a sua actividade, divulgando cinema português em formato curto.

Esta notícia sobre o evento foi publicada no Diário de Notícias (17 Junho).

Depois da cerca sanitária imposta pela pandemia, Ovar vai retomar as suas actividades culturais. Assim, a sessão do Shortcutz Ovar do dia 18 (22h00), será o primeiro evento público a acontecer na cidade depois das restrições sociais impostas pelo surto de Covid-19.
Curiosamente, antes do confinamento, o derradeiro evento público em Ovar, tinha sido uma sessão do Shortcutz, a 6 de março, com os premiados do ano anterior. Entre 9 de abril e 11 de junho, o Shortcutz manteve os seus programas de divulgação de curtas-metragens portuguesas, tendo realizado nove sessões online, exibindo os trinta títulos que tinham sido apresentados ao longo de 2019.
Para a nova temporada, o Shortcutz regressa às instalações da Escola de Artes e Ofícios, agora numa sala mais ampla. Para assistirem às sessões, os interessados terão de reservar os seus lugares, através de uma inscrição prévia — agora, os lugares serão marcados, com cadeiras vazias entre eles.
Na sessão de reabertura serão projectados quatro filmes: Equinox, de Bruno Carnide, Um Retrato de Borboletas, de Henrique Prudêncio, Lisboa 2018, de Francisco Valente, e Cenas de uma Vida Amorosa, de Miguel Afonso Carranca.
Antes da habitual interrupção do mês de agosto, estão agendadas mais três sessões para julho (2, 16 e 30). Ao longo da temporada, serão exibidas trinta curtas-metragens produzidas ao longo de 2019, incluindo Herói Invisível, da luso-francesa Cristèle Alves Meira, vencedora da primeira temporada do Shortcutz Ovar, em 2017, com Campo de Víboras.

Brad Mehldau — música em confinamento

O título — Suite: April 2020 — remete-nos de imediato para os nossos confinamentos. Dividida em XII partes, a nova composição do pianista americano Brad Mehldau foi registada em Amsterdão, dando agora corpo a um álbum, completado por três standards (Neil Young + Billy Joel + Jerome Kern/Buddy DeSylva). Parte das respectivas receitas destinam-se à Jazz Foundation of America — Mehldau explica tudo isso e interpreta um dos segmentos da obra, imbuído de tocante reflexão nostálgica: Remembering before all this.

terça-feira, junho 16, 2020

Cinemas de Lisboa
— algumas imagens que resistem

Pequeno teste cinéfilo: esta entrada, vista do interior, pertence a que cinema de Lisboa? Mais ainda: será que esse cinema resistiu à irresponsabilidade do "progresso", essa praga política e tecnocrática que destruiu ou desfigurou alguns dos lugares mais emblemáticos da cinefilia lisboeta?
As respostas estão no Instagram de Jorge Mourinha através das imagens reunidas sob o signo de #lostcinemasoflisbon. Neste tempo de revalorização da vida do cinema em sala(s), vale a pena contemplar, porventura partilhar, tão preciosas fotografias. Esta aqui em baixo relança o enigma da primeira.

domingo, junho 14, 2020

Olhar os animais, com John Berger

JL [23 Maio 2020]

>>> Os olhos do animal, quando consideram o homem, estão atentos e desconfiados. Esse animal pode perfeitamente olhar outras espécies do mesmo modo. Não dedica um olhar particular ao homem. Mas nenhuma espécie a não ser o homem reconhecerá o olhar do animal como sendo-lhe familiar. Outros animais são dominados pelo olhar. O homem torna-se consciente de si mesmo ao devolver o olhar.

JOHN BERGER
ed. Antígona (Maio 2020)

Romancista, filósofo, ensaísta, o inglês John Berger (1926-2017) foi também um criador de imagens e sons. Entenda-se: um homem de televisão e cinema — é dele a série Ways of Seeing (BBC, 1972), que daria origem ao livro homónimo, como são dele vários argumentos para filmes do suíço Alain Tanner, incluindo Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000 (1976).
Porquê Olhar os Animais? é o título de um artigo que publicou em 1977, e também desta antologia agora lançada no mercado português (prolongando a atenção que a editora Antígona tem prestado à sua obra). A pergunta introduz, desde logo, essa dialéctica nunca resolvida, ou melhor, nunca encerrada, entre o animal que nos olha e nós que lhe devolvemos o olhar. Berger possui a agilidade de pensamento e exposição que lhe permite articular os dados da coexistência homem/animal com as mais diversas componentes, das convulsões da economia às derivas mitológicas da humanidade. Daí também a permanente contaminação das matrizes da escrita — a análise antropológica suscita a interrogação filosófica, a intervenção crítica não é estranha à sensualidade do romanesco. Enfim, o reencontro com um grande escritor, inventor de lugares de liberdade através de todas as escritas.

O escândalo de Luis Buñuel

Silvia Pinal
O ANJO EXTERMINADOR
Depois do confinamento, vários filmes de Luis Buñuel estão a regressar às salas escuras. Entre eles está O Anjo Exterminador (1962), por certo um dos seus trabalhos mais exemplares sobre o que é, ou pode ser, a liberdade criativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Junho).

Vem aí um filme que, por ingenuidade ou perversão, não poderemos deixar de associar à situação de confinamento que a pandemia nos fez viver. Não é uma revelação absoluta, mesmo se, ironicamente (ou tragicamente…), não deixa de ser uma estreia comercial nas salas portuguesas. Tem data de 1962, chama-se O Anjo Exterminador e é uma das obras-primas que Luis Buñuel (1900-1983) nos legou. Surge, aliás, integrado num belo ciclo de uma dezena de títulos do cineasta espanhol, evento programado para Lisboa (Nimas) e Porto (Teatro Municipal Campo Alegre), a partir do dia 11, circulando depois por várias cidades do país.
Há, de facto, uma forma de confinamento em O Anjo Exterminador, afinal incomparável com as nossas recentes vivências, porque mais insólita e, sobretudo, muitíssimo mais divertida. Para simplificar, digamos que esta é a história de um grupo de personagens “aristocratas” ou, pelo menos, de uma classe dirigente, que não saem do palacete onde se reuniram para um jantar festivo porque… não conseguem sair… Aliás, o humor de Buñuel é qualquer coisa que, mais do que nunca, importa reconhecer e celebrar, quanto mais não seja porque nasce, não de um banal jogo de caricaturas, antes de um processo criativo que nos leva a questionar as ideias feitas (sobretudo mal feitas) acerca do mundo à nossa volta.
Pergunto-me se a fase da obra (e da vida) de Buñuel em que surge O Anjo Exterminador não envolve algo que é também uma forma de confinamento ou, mais precisamente, de procura de um lugar de liberdade para concretizar os seus filmes. Recorde-se que, ao longo dos anos 50, as raízes de produção do seu trabalho são, sobretudo, mexicanas. Foi no México que, entre outros títulos, realizou o prodigioso Ensaio de um Crime (1955), vindo a concretizar Viridiana (1960) através de uma coprodução México/Espanha.
Vale a pena lembrar que Viridiana arrebatou a Palma de Ouro em Cannes e… foi proibido em Espanha pelo governo do Generalíssimo Franco (onde só seria estreado em 1977, dois anos após a morte do ditador). O produtor de Viridiana, Gustavo Alatriste, e a sua mulher, Silvia Pinal, intérprete principal do filme, renovariam a aliança com Buñuel, logo a seguir concretizando O Anjo Exterminador e, mais tarde, em 1965, Simão do Deserto (que também integra este ciclo).
Que se passa, então, com as personagens de Buñuel? Pois bem, vivem uma situação que, de tão estranha, apela à metáfora. Daí as perguntas mais ou menos infinitas… Por que não conseguem sair do lugar daquela festa? Que faz com que, mesmo quebrando vidros e derrubando paredes, se mantenham enclausurados? Alguém os fechou ou estão a ser alvo de alguma maldição?
Talvez seja prudente referir que, desde o seu lançamento, o filme tem sido acompanhado por uma “explicação” que, convenhamos, não deixa de ter uma óbvia motivação histórica: Buñuel estaria a colocar em cena as classes dirigentes da ditadura franquista, sugerindo que a sua existência as ia encaminhando para um beco sem saída. Dito de outro modo: para a queda do regime que, de alguma maneira, sustentavam.
Mas vale a pena revisitar O Anjo Exterminador com o espírito aberto. Entenda-se: lembrando que um filme, mesmo avaliando situações muito reais, não se esgota numa “mensagem”. Aliás, se os filmes se reduzissem a uma “mensagem”, como alguém já disse, mais valia usar os correios…
Retomando os valores narrativos dos seus primeiros filmes ligados ao movimento surrealista — com óbvio destaque para Un Chien Andalou (1929), com a colaboração de Salvador Dali —, Buñuel reafirma o cinema, não como uma forma de atribuir “significados” às coisas do mundo, mas de os suspender. Perguntando: e se nenhum destino pudesse redimir o ser humano das contradições da sua existência?
Muito para lá da discussão das certezas do catolicismo, tema transversal na sua obra (de que Viridiana é, justamente, um momento chave), ele abre-nos as portas de um mundo em que, de facto, existem dominantes e dominados, ricos e pobres, inocentes e culpados… e o sentido de tudo isso é não fazer sentido. Daí o absurdo, daí o humor, daí o desejo de liberdade que a narrativa transporta. Liberdade de olhar. Liberdade de pensar. É esse o renovado escândalo de Buñuel.

sexta-feira, junho 12, 2020

Denise Cronenberg (1938 - 2020)

Notável criadora de guarda-roupa para cinema, a canadiana Denise Cronenberg faleceu no dia 22 de Maio em Burlington, Ontario (só agora tendo sido divulgada a notícia da sua morte) — contava 81 anos.
A sua trajectória artística começou pela dança, passando pelo design de moda e, por fim, desembocando no cinema. Estreou-se em 1986, concebendo o guarda-roupa de A Mosca, de David Cronenberg, seu irmão. A sua relação de trabalho manteve-se até 2014, com Mapas para as Estrelas, com Denise a criar, por exemplo, os fatos dos gémeos interpretados por Jeremy Irons em Irmãos Inseparáveis (1988), os modelos nostálgicos da China em M. Butterfly (1993), os artefactos "futuristas" de eXistenZ (1999), as vestes europeias de Freud e Jung em Um Método Perigoso (2011) ou as emblemáticas silhuetas de Manhattan em Cosmopolis (2012). Com outros cineastas, trabalhou, por exemplo, em O Renascer dos Mortos (Zack Snyder, 2004), O Incrível Hulk (Louis Leterrier, 2008) e Resident Evil: Ressurreição (Paul W.S. Anderson, 2010). Em 2008, quando A Mosca foi refeito como ópera, por Howard Shore (compositor do filme), Denise foi também responsável pelo guarda-roupa.
Num depoimento prestado ao jornal canadiano The Globe and Mail, David Cronenberg lembrou-a deste modo: "Creio que não teve o reconhecimento que merecia, e tenho a certeza que ela também o sentia. Somos canadianos, tendemos a não ser auto-promotores, e é um facto que ela não o era. Ao mesmo tempo, sentimos um grande orgulho pelo nosso trabalho e por isso gostaríamos de ser reconhecidos, mas sem que o queiramos pedir. Creio que, nesse aspecto, ela se sentia desiludida."

>>> Trailer de Irmãos Inseparáveis.


>>> Sigmund Freud (Viggo Mortensen) e Carl Jung (Michael Fassbender) em Um Método Perigoso.


>>> Obituário em The Hollywood Reporter.

quinta-feira, junho 11, 2020

Chopin / Sokolov

Prolongando a sua presença na Net em tempos de confinamento, eis mais uma preciosa dádiva da Deutsche Grammophon. Desta vez, podemos escutar o Noturno em La bemol maior, Opus 32, Nº 2, de Chopin (composto em 1836-1837) — por Grigory Sokolov.

terça-feira, junho 09, 2020

David Lynch no YouTube

David Lynch Theater, o canal de David Lynch no YouTube funciona como uma espécie de boletim meteorológico anti-naturalista. Nele encontramos, de facto, considerações sobre o tempo em Los Angeles, alguns exercícios filmados, incluindo o primeiro episódio da série Rabbits (oito episódios, apresentados online), e uma espécie de agenda diária sobre as actividades do criador de Eraserhead, Blue Velvet e Inland Empire. Eis o registo de 9 de Junho de 'What is David working on today?': uma apresentação e análise dos poderes da "incrível vara de verificação". Ou como a objectividade científica pode ser uma forma de assombramento.

domingo, junho 07, 2020

Elvis Costello, sem bandeira

Com a sua proclamação de uma visão do mundo não dependente do simbolismo de uma qualquer bandeira, a nova canção de Elvis Costello poderia (ou poderá) começar por ser interpretada como uma comentário, entre o dramático e o sarcástico, inspirado pelos nossos tempos de muitas convulsões colectivas. O certo é que No Flag foi gravado no começo deste ano, longe dos cenários mais visíveis da nossa actualidade. A saber: em Helsínquia. Seja como for, a energia e a raiva do mais primitivo rock'n'roll é coisa que continua a não faltar ao inglês de 65 anos — o lyric video é também um brilhante trabalho de animação.

Time: 'We just want to live'

FOTO: DJ E-Clyps | Blacklight Media
Viver, proclamar o desejo de viver — sob o título 'We just want to live', a revista Time dá a ver uma colecção de imagens dos protestos contra o racismo e a injustiça, na sequência da morte de George Floyd. Os seus autores são fotógrafos das cidades dos EUA (mais de 150) onde tiveram lugar esses protestos — um precioso portfolio.

Cannes: não há festival... mas há filmes

O cancelamento da edição de 2020 do Festival de Cannes não impediu o certame de fazer a sua selecção oficial. No dia 3 de Junho, Thierry Frémaux, delegado-geral do certame, deu a conhecer os títulos escolhidos, manifestando também a vontade de apoiar a sua difusão este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Junho).

Cancelada a edição de 2020 do Festival de Cannes, o certame não desistiu de fazer o seu trabalho de escolha de filmes. E agora, o seu delegado-geral, Thierry Frémaux [foto], deu a conhecer os títulos de um festival que… não vai acontecer. De acordo com a tradição, a apresentação da selecção oficial decorreu no UGC Normandie, sala de cinema de Paris, desta vez sem jornalistas na plateia. Frémaux estava acompanhado por Pierre Lescure, presidente do festival, hoje mesmo reconduzido no seu cargo para cumprir um terceiro mandato de três anos.
O menos que se pode dizer é que a 73ª edição do maior festival de cinema do mundo não deixaria os seus créditos por mãos alheias. Desde logo, porque a selecção inclui um leque de “habitués” em que podemos encontrar os trabalhos mais recentes de autores como o americano Wers Anderson, o francês François Ozon, o inglês Steve McQueen, o dinamarquês Thomas Vinterberg ou o espanhol Fernando Trueba, sem esquecer a presença também regular da animação dos estúdios Pixar.
Aposta que também se renova (e amplia) é a da escolha de títulos de realizadores estreantes, sector onde podemos encontrar dois actores bem conhecidos: o americano Viggo Mortensen e o francês Laurent Lafitte. Em qualquer caso, Frémaux optou por destacar o nome de Lafitte num outro domínio, desta vez especialmente valorizado pelo festival: o das comédias.
A selecção oficial inclui 56 filmes, escolhidos de um total de 2067 longas-metragens apresentadas ao certame, provenientes de 147 países — são números recorde, o primeiro ultrapassando pela primeira vez os dois milhares, o segundo traduzindo um crescimento de 6,5% em relação a 2019. Em alta muito significativa está também a quantidade de primeiras obras: nada mais nada menos que 909, das quais quinze integram a selecção oficial.
Isto sem esquecer que, naturalmente, o festival continua a manifestar o seu apoio ao conhecimento e divulgação da produção francesa. Há mesmo um reforço desse apoio, com a inclusão de 21 títulos na selecção oficial (mais oito do que em 2019). Como Frémaux fez questão de sublinhar num texto global de apresentação (divulgado no dia 2 no site do festival), tratou-se de expressar, “mais do que nunca”, a solidariedade do festival com a produção e o mercado de França.
Seja como for, a divulgação desta lista está longe de ser uma mera formalidade desligada da actualidade cinematográfica mundial. Desde logo porque, como Frémaux refere no mesmo texto, a existência de uma selecção oficial é “a melhor maneira de ajudar o cinema, destacando os filmes que serão lançados nas salas ao longo dos próximos meses”. Mais ainda: “depois de meses de encerramento, a reabertura das salas de cinema é uma questão crucial.”
Por um lado, trata-se de dar visibilidade a títulos que não deixarão de ser negociados para circuitos de exibição de todo o mundo, só que desta vez de maneira bem diferente: no caso de Cannes, o Mercado do Filme terá, ainda este mês (22 a 26), uma edição virtual. Ao mesmo tempo, por outro lado, o festival vai manter a sua colaboração com certames que, tradicionalmente, ao longo do segundo semestre do ano, acolhem títulos revelados em Cannes: será o caso, entre outros, de Telluride, Toronto, Deauville, San Sebastian ou mesmo Sundance, em janeiro do ano seguinte — ainda com calendário a definir, esses certames irão apresentar filmes desta selecção.
Vale a pena recordar que a selecção oficial é uma designação que não se esgota na competição (consagrada pelo palmarés oficial, encabeçado pela Palma de Ouro), uma vez que integra ainda a secção “Un Certain Regard”, os títulos extra-competição, as sessão da meia-noite e algumas sessões especiais. Pormenor curioso: desta vez, considerando que tal repartição seria supérflua para um evento que não terá concretização prática, o festival divulgou a globalidade dos filmes escolhidos sem os inserir em qualquer secção particular.
Eis os 56 títulos de Cannes 202, distribuídos pelas várias zonas “temáticas” definidas por Frémaux:

* OS FIÉIS
(ou que já estiveram pelo menos uma vez na selecção oficial)

THE FRENCH DISPATCH de Wes Anderson (EUA)
ÉTÉ 85 de François Ozon (França)
ASA GA KURU (True Mothers) de Naomi Kawase (Japão)
LOVERS ROCK de Steve McQueen (Reino Unido)
MANGROVE de Steve McQueen (Reino Unido)
DRUK (Another Round) de Thomas Vinterberg (Dinamarca)
ADN de Maïwenn (Argélia/França)
LAST WORDS de Jonathan Nossiter (EUA)
HEAVEN: TO THE LAND OF HAPPINESS de Im Sang-Soo (Coreia do Sul)
EL OLVIDO QUE SEREMOS de Fernando Trueba (Espanha)
PENINSULA de Yeon Sang-Ho (Coreia do Sul)
IN THE DUSK de Sharunas Bartas (Lituânia)
DES HOMMES de Lucas BELVAUX (Bélgica)
THE REAL THING de Kôji Fukada (Japão)

* OS ESTREANTES

PASSION SIMPLE de Danielle Arbid (Líbano)
A GOOD MAN de Marie Castille Mention-Schaar (França)
LES CHOSES QU’ON DIT, LES CHOSES QU’ON FAIT de Emmanuel Mouret (França)
SOUAD de Ayten Amin (Egipto)
LIMBO de Ben Sharrock (Reino Unido)
ROUGE de Farid Bentoumi (França)
SWEAT de Magnus Von Horn (Suécia)
TEDDY de Ludovic et Zoran Boukherma (França)
FEBRUARY de Kamen Kalev (Bulgária)
AMMONITE de Francis Lee (Reino Unido)
UN MÉDECIN DE NUIT de Elie Wajeman (França)
ENFANT TERRIBLE de Oskar Roehler (Alemanha)
NADIA, BUTTERFLY de Pascal Plante (Canadá)
HERE WE ARE de Nir Bergman (Israel)

* UM FILM DE SKETCHES

SEPTET: THE STORY OF HONG KONG de Ann Hui, Johnnie TO, Tsui Hark, Sammo Hung, Yuen Woo-Ping et Patrick Tam (Hong Kong)

* AS PRIMEIRAS OBRAS

FALLING de Viggo Mortensen (EUA)
PLEASURE de Ninja Thyberg (Suécia)
SLALOM de Charlène Favier (França)
CASA DE ANTIGUIDADES de João Paulo Miranda Maria (Brasil)
BROKEN KEYS de Jimmy Keyrouz (Líbano)
IBRAHIM de Samir Guesmi (França)
BEGINNING de Déa Kulumbegashvili (Georgia)
GAGARINE de Fanny Liatard et Jérémy Trouilh (França)
16 PRINTEMPS de Suzanne Lindon (França)
VAURIEN de Peter Dourountzis (França)
GARÇON CHIFFON de Nicolas Maury (França)
SI LE VENT TOMBE de Nora Martirosyan (Arménia)
JOHN AND THE HOLE de Pascual Sisto (EUA)
STRIDING INTO THE WIND de WEI Shujun (China)
THE DEATH OF CINEMA AND MY FATHER TOO de Dani Rosenberg (Israel)

* 3 DOCUMENTÁRIOS

EN ROUTE POUR LE MILLIARD de Dieudo Hamadi (República Democrática do Congo)
THE TRUFFLE HUNTERS de Michael Dweck et Gregory Kershaw (EUA)
9 JOURS À RAQQA de Xavier de Lauzanne (França)

* 5 COMÉDIAS

ANTOINETTE DANS LES CÉVÈNNES de Caroline Vignal (França)
LES DEUX ALFRED de Bruno Podalydès (França)
UN TRIOMPHE de Emmanuel Courcol (França)
L’ORIGINE DU MONDE de Laurent Lafitte (França)
LE DISCOURS de Laurent Tirard (França)

* 4 FILMES DE ANIMAÇÃO

AYA TO MAJO (Earwig and the Witch) de Gorô Miyazaki (Japão)
FLEE de Jonas Poher Rasmussen (Dinamarca)
JOSEP de Aurel (França)
SOUL de Pete Docter (EUA)

sexta-feira, junho 05, 2020

Lennie Niehaus (1929 - 2020)

De Justiceiro Solitário a Dívida de Sangue, passando por Bird e As Pontes de Madison County, Lennie Niehaus foi um colaborador fiel de Clint Eastwood: saxofonista e compositor, faleceu aos 90 anos de idade — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (01 Junho).

Compositor de duas dezenas de bandas sonoras para filmes de Clint Eastwood, Lennie Niehaus faleceu no dia 28 de maio em Redlands, Califórnia, depois de um longo período de internamento hospitalar — contava 90 anos.
Talentoso saxofonista de jazz, arranjador e compositor, Niehaus teve uma carreira que está longe de se esgotar na filmografia de Eastwood (que completou 90 anos a 31 de maio), mas é um facto que esse é o capítulo central da sua obra. Conheceram-se na década de 1950, em Monterey, quando ambos cumpriam serviço militar. A paixão pelo jazz cimentou a sua amizade, criando uma ligação cuja concretização profissional começaria pelas orquestrações de dois títulos que Eastwood protagonizou em 1976, tendo também dirigido o primeiro: O Rebelde do Kansas e Harry, o Implacável (de James Fargo).
Niehaus estreou-se na autoria de uma banda sonora para Eastwood com Pale Rider/Justiceiro Solitário (1985), “western” muitas vezes citado como “antecipação” temática e estilística de Imperdoável (1992), cuja música também assinou. Entre trabalhos de orquestração e composição, a sua colaboração envolveu mais de duas dezenas de títulos. O nome de Niehaus surge também no genérico de Bird (1988), precisamente um filme sobre um dos génios do saxofone na história do jazz, Charlie Parker, e ainda, por exemplo, em Caçador Branco, Coração Negro (1990), Um Mundo Perfeito (1993), As Pontes de Madison County (1995), Space Cowboys (2000) e Blood Work/Dívida de Sangue (2002), derradeira colaboração com Eastwood.
Nascido em St. Louis, Missouri, a 11 de junho de 1929, Niehaus cresceu em ambiente profundamente ligado à música, sendo o pai um versátil violinista e a irmã pianista. Antes e depois do serviço militar, integrou a “big band” do pianista Stan Kenton. Na década de 60 começou a trabalhar como orquestrador de bandas sonoras do compositor Jerry Fielding, nomeadamente para três filmes realizados por Sam Peckinpah: Cães de Palha (1971), Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974) e Assassinos de Elite (1975).
Para lá dos seus registos com a orquestra de Kenton, Niehaus produziu também uma importante discografia em nome próprio, ao comando de várias formações, com destaque para o quinteto que integrava Bill Perkins (clarinete), Frank Strazzeri (piano), Tom Warrington (contrabaixo) e Joe LaBarbera (bateria) — Patterns (1989) é habitualmente citado como um dos álbuns mais notáveis dessa formação. Em 2008, ganhou um Emmy pela banda sonora de Mitch Albom’s for One More Day, telefilme de Lloyd Kramer com Michael Imperioli e Ellen Burstyn.

>>> Big Fran's Baby (Um Mundo Perfeito, BSO) + Blood Work (Blood Work, BSO).




>>> Lennie Niehaus interpreta Stella by Starlight (Victor Young, 1944) no Instituto de Jazz de Los Angeles.


>>> Obituário em JazzTimes.

Futebol e paz social

[A Bola]
Sempre que a paz social é perturbada por algum evento directa ou indirectamente relacionado com a actividade futebolística, erguem-se vozes empenhadas em desenhar uma fronteira supostamente nítida e definitiva. A saber: os responsáveis por tais perturbações não são verdadeiros adeptos, não têm nada a ver com o gosto do futebol.
Estamos de acordo, mas importa repensar o modo como definimos um contexto de pensamento para lidar com os nossos problemas sociais. Até certo ponto, esta é uma questão em que podemos detectar algum paralelismo com as repetidas discussões sobre as fulanizações gratuitas e os conflitos menos edificantes da nossa cena política. Assim, quando se tenta compreender a complexidade de tais questões, é normal — é mesmo uma muito básica manifestação da inteligência de qualquer um de nós — lembrar que não é possível pensar as dinâmicas da actividade política sem considerar os seus muitos e quotidianos cruzamentos com os meios de comunicação... Ora, nessa altura, há quase sempre alguém disponível para bloquear o pensamento, lembrando que estamos a falar de política, "não de jornalismo".
Como? Não se trata, entenda-se, de promover essa estupidez moral (infelizmente, favorecida pelas matrizes mais medíocres do próprio jornalismo) que consiste em reduzir todos os problemas que nos afectam à selecção de um ou vários "culpados" a quem possamos apontar o dedo, lançando-os no fogo de um qualquer tribunal "popular". Não se trata de proclamar que "a culpa é dos jornalistas". Como não se trata de resolver as agressões a pessoas do futebol concluindo que "a culpa é do próprio futebol".
Acontece que o futebol, na sua imensidão cultural (palco de valores) e comercial (envolvendo muitos circuitos financeiros), não pode ser desligado das convulsões que afectam a vida quotidiana do... futebol. Mais do que nunca, essa vida pode e deve ser pensada como um universo que ilustra, explicita ou induz algum modelo de ordem.

quinta-feira, junho 04, 2020

Fantasmas de “La Dolce Vita”

Marcello Mastroianni e Anita Ekberg
Foi há 60 anos que Federico Fellini ganhou a Palma de Ouro, em Cannes, com La Dolce Vita: a sua visão da circulação social das imagens, longe de qualquer pitoresco, mantém uma perturbante actualidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Maio).

A memória cinéfila vai-se transformando com a passagem do tempo. Verdade de La Palice: não será assim com todas as nossas memórias, das mais íntimas às que circulam pelo tecido social? No caso do cinema, tais transformações podem ser tanto mais paradoxais quanto, em princípio, os objectos existem, e persistem, tal como foram concebidos — cada filme regressa sempre conjugado no tempo presente. E cada reencontro pode ser tão desconcertante quanto fascinante.
O caso de La Dolce Vita, de Federico Fellini, é revelador. E também irredutível. Podemos citá-lo pelo título português, aliás em rigorosa tradução (A Doce Vida), mas necessitamos de usar o original para esclarecer a dimensão visceralmente italiana que o define.
Assinala-se agora uma efeméride plena de ressonâncias simbólicas. Foi, de facto, há 60 anos, portanto em 1960, por esta altura do ano, que La Dolce Vita se estreou no Festival de Cannes (era a 13ª edição), acabando por arrebatar a Palma de Ouro atribuída por um júri presidido por Georges Simenon. A Itália surgia ainda representada por A Aventura, de Michelangelo Antonioni, outra referência modelar das transformações por que estava a passar, não apenas a produção italiana, mas todo o cinema europeu.
O aspecto mais desconcertante da memória comum de La Dolce Vita decorre da caracterização mais ou menos “libertária” que, por vezes, automaticamente, se associa ao filme. A noção segundo a qual Fellini foi um hedonista que se limitou reflectir o “doce viver” da época, além de equívoca, favorece a ocultação da sua desencantada visão do desejo masculino. Por vezes assumindo a crueza primitiva da farsa — lembremos o seu admirável Casanova (1976), com Donald Sutherland —, Fellini foi um obstinado e obsessivo explorador de um tema mitológico que, convenhamos, nestes nossos tempos de tantas formas de crueldade, não pode estar na moda. A saber: a incompreensão masculina do enigma feminino.
Foi com La Dolce Vita que Fellini encontrou em Marcello Mastroianni uma elaborada projecção das suas euforias e depressões, numa aliança algo fantasmática que, além do mais, é exemplar na disponibilidade afectiva com que o actor trabalhou com alguns realizadores. A sua colaboração teria o momento mais emblemático em Oito e Meio (1963), para mais com Mastroianni a interpretar um cineasta, envolvendo ainda, por exemplo, um título com tanto de sonho como de pesadelo: A Cidade das Mulheres (1980).
Por estes dias disponível numa plataforma de streaming (Filmin), La Dolce Vita continua a ser um objecto de luminosa actualidade, por ele perpassando uma questão que, na sua contundência, não desapareceu do nosso quotidiano. Assim, é inevitável lembrar a sequência na Fonte de Trevi, em Roma, com Mastroianni e Anita Ekberg num jogo confessional de sedução, tradicionalmente citado como exemplo lendário do “erotismo” cinematográfico. Menos lembrado é o facto de a personagem de Ekberg, uma estrela sueca que chega a Itália (espelhando a imagem da própria actriz), servir a Fellini como pretexto para uma referência paralela aos fotógrafos mais intrusivos — é aqui, aliás, que nasce a palavra “paparazzi”. Tal actividade, recorde-se, não é estranha à personagem de Mastroianni, um repórter “social”, especialista em matérias escandalosas, mais ou menos desgostoso com a frivolidade do seu trabalho.
Vale a pena lembrar que o grande cinema europeu da época — ali ao lado, vivia-se a exuberância criativa da Nova Vaga francesa — estava longe de se esgotar na dimensão “experimental” a que, com frequência, é reduzido. Se cineastas como Jean-Luc Godard, em França, Carlos Saura, em Espanha, ou Tony Richardson, no Reino Unido, arriscavam novas linguagens, isso não era o efeito de uma qualquer abstracção formalista, já que envolvia uma procura de diferentes instrumentos narrativos para lidar com a realidade à sua volta. Com La Dolce Vita, Fellini anunciava-nos o vazio existencial de um mundo em que a mercantilização de muitas imagens pode, no limite, desligar-nos das singularidades dos seres humanos.

terça-feira, junho 02, 2020

Elsa Dorfman (1937 - 2020)

As suas Polaroids gigantes conferem-lhe um lugar à parte na história da fotografia e, em particular, na iconografia do retrato: a americana Elsa Dorfman faleceu no dia 30 de Maio, na sua casa de Cambridge, Massachusetts, devido a problemas renais — contava 83 anos.

>>> A história pessoal e a produção artística de Dorfman são indissociáveis de dois vectores fundamentais: primeiro, o seu envolvimento com a Geração Beat; depois, o fascínio (e a prática) dos formatos gigantes da Polaroid. O notável documentário que Errol Morris lhe dedicou, The B-Side: Elsa Dorfman’s Portrait Photography (2016), permite-nos descobrir as memórias, os sobressaltos e a energia criativa da sua trajectória — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Maio).

Ah! Esse misto de nostalgia e emoção que uma velha fotografia pode transportar! The B-Side: Elsa Dorfman’s Portrait Photography é, por certo, um dos mais maravilhosos filmes que, em anos recentes, se fizeram sobre memórias fotográficas, mais exactamente sobre as Polaroids gigantes de Elsa Dorfman (n. 1937). Estreado no Festival de Telluride (Colorado, EUA) em 2016, é um delicioso objecto de cinema que não tem tido grande visibilidade nos circuitos cinematográficos — agora, podemos descobri-lo (com o título original) na Netflix.
Importa sublinhar que estamos perante um trabalho de um dos grandes documentaristas contemporâneos, o americano Errol Morris, “oscarizado” em 2004 por The Fog of War, extraordinária evocação das presidências de John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson através do testemunho do seu secretário da Defesa, Robert McNamara.
Em qualquer caso, importa também acrescentar que a palavra “documentário”, sobretudo se considerada na sua acepção televisiva mais rotineira, está longe de poder caracterizar a riqueza e singularidade do olhar de Morris. Assim acontece em The B-Side, filme que tem tanto de auto-biografia da fascinante Dorfman (79 anos, na altura da rodagem) como de reflexão sobre o poder emocional das imagens.
Dorfman apresenta-se como essa “miúda judia com sorte” que, no começo da década de 1960, graças ao seu emprego na editora novaiorquina Grove Press, conheceu figuras emblemáticas da Geração Beat, acabando por criar um forte laço de amizade com Allen Ginsberg (1926-1997). A sua obra inclui mesmo imagens que se tornaram verdadeiros ícones da cultura popular — por exemplo, uma fotografia de Ginsberg a conversar com Bob Dylan, à guitarra, registada em 1975 —, a par de uma colecção imensa de auto-retratos que são outros tantos exercícios de delicada observação humana e, apetece dizer, humanista.
Allen Ginsberg
(15 Outobro 1988)
Em qualquer caso, é a sua experiência com as fotografias instantâneas da Polaroid que lhe confere um estatuto muito especial no interior da própria história da fotografia americana (e não só). Dorfman pertence a um pequeno “clube” de fotógrafos que, ao longo das últimas décadas, tem podido utilizar uma das gigantescas câmaras Polaroid que permite obter fotografias instantâneas de 20x24 polegadas (cerca de 50x60 centímetros). Segundo o seu próprio site, apenas existem oito dessas câmaras, disponíveis para aluguer, em todo o mundo. Dorfman tem sido uma das suas utilizadoras mais regulares e obsessivas, calculando que já fez mais de 4 mil retratos 20x24, ou da dimensão ainda mais rara de 23x36 (58x91 cm).
Resultado prático: Dorfman possui uma fascinante colecção de retratos de grandes dimensões, cuidadosamente guardados nas gavetas metálicas do seu arquivo onde, em boa verdade, decorre a maior parte do filme. Morris é um bom conversador, tanto mais eficaz quanto sabe que o protagonista não é ele — como cineasta, valoriza a observação e a escuta, coligindo, com um misto de curiosidade e pudor, as memórias e os “segredos” de Dorfman.
Desse labor de observação nasce o título do filme. The B-Side é uma referência irónica ao facto de Dorfman habitualmente fazer apenas duas provas dos seus retratos: a delicadeza do processo, e também o seu custo, assim o impõem. Daí que ela obtenha dois originais — “A” e “B” — que mostra aos retratados, dando-lhes a escolher aquele que vão levar consigo. Quase sempre, é escolhido o “A”; Dorfman conserva o “B” que, na sua opinião, também quase sempre, é o melhor. Dir-se-ia que a história da fotografia é também a história desses paradoxos.


>>> Obituário no New York Times.