Marcello Mastroianni e Anita Ekberg |
Foi há 60 anos que Federico Fellini ganhou a Palma de Ouro, em Cannes, com La Dolce Vita: a sua visão da circulação social das imagens, longe de qualquer pitoresco, mantém uma perturbante actualidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Maio).
A memória cinéfila vai-se transformando com a passagem do tempo. Verdade de La Palice: não será assim com todas as nossas memórias, das mais íntimas às que circulam pelo tecido social? No caso do cinema, tais transformações podem ser tanto mais paradoxais quanto, em princípio, os objectos existem, e persistem, tal como foram concebidos — cada filme regressa sempre conjugado no tempo presente. E cada reencontro pode ser tão desconcertante quanto fascinante.
O caso de La Dolce Vita, de Federico Fellini, é revelador. E também irredutível. Podemos citá-lo pelo título português, aliás em rigorosa tradução (A Doce Vida), mas necessitamos de usar o original para esclarecer a dimensão visceralmente italiana que o define.
Assinala-se agora uma efeméride plena de ressonâncias simbólicas. Foi, de facto, há 60 anos, portanto em 1960, por esta altura do ano, que La Dolce Vita se estreou no Festival de Cannes (era a 13ª edição), acabando por arrebatar a Palma de Ouro atribuída por um júri presidido por Georges Simenon. A Itália surgia ainda representada por A Aventura, de Michelangelo Antonioni, outra referência modelar das transformações por que estava a passar, não apenas a produção italiana, mas todo o cinema europeu.
O aspecto mais desconcertante da memória comum de La Dolce Vita decorre da caracterização mais ou menos “libertária” que, por vezes, automaticamente, se associa ao filme. A noção segundo a qual Fellini foi um hedonista que se limitou reflectir o “doce viver” da época, além de equívoca, favorece a ocultação da sua desencantada visão do desejo masculino. Por vezes assumindo a crueza primitiva da farsa — lembremos o seu admirável Casanova (1976), com Donald Sutherland —, Fellini foi um obstinado e obsessivo explorador de um tema mitológico que, convenhamos, nestes nossos tempos de tantas formas de crueldade, não pode estar na moda. A saber: a incompreensão masculina do enigma feminino.
Foi com La Dolce Vita que Fellini encontrou em Marcello Mastroianni uma elaborada projecção das suas euforias e depressões, numa aliança algo fantasmática que, além do mais, é exemplar na disponibilidade afectiva com que o actor trabalhou com alguns realizadores. A sua colaboração teria o momento mais emblemático em Oito e Meio (1963), para mais com Mastroianni a interpretar um cineasta, envolvendo ainda, por exemplo, um título com tanto de sonho como de pesadelo: A Cidade das Mulheres (1980).
Por estes dias disponível numa plataforma de streaming (Filmin), La Dolce Vita continua a ser um objecto de luminosa actualidade, por ele perpassando uma questão que, na sua contundência, não desapareceu do nosso quotidiano. Assim, é inevitável lembrar a sequência na Fonte de Trevi, em Roma, com Mastroianni e Anita Ekberg num jogo confessional de sedução, tradicionalmente citado como exemplo lendário do “erotismo” cinematográfico. Menos lembrado é o facto de a personagem de Ekberg, uma estrela sueca que chega a Itália (espelhando a imagem da própria actriz), servir a Fellini como pretexto para uma referência paralela aos fotógrafos mais intrusivos — é aqui, aliás, que nasce a palavra “paparazzi”. Tal actividade, recorde-se, não é estranha à personagem de Mastroianni, um repórter “social”, especialista em matérias escandalosas, mais ou menos desgostoso com a frivolidade do seu trabalho.
Vale a pena lembrar que o grande cinema europeu da época — ali ao lado, vivia-se a exuberância criativa da Nova Vaga francesa — estava longe de se esgotar na dimensão “experimental” a que, com frequência, é reduzido. Se cineastas como Jean-Luc Godard, em França, Carlos Saura, em Espanha, ou Tony Richardson, no Reino Unido, arriscavam novas linguagens, isso não era o efeito de uma qualquer abstracção formalista, já que envolvia uma procura de diferentes instrumentos narrativos para lidar com a realidade à sua volta. Com La Dolce Vita, Fellini anunciava-nos o vazio existencial de um mundo em que a mercantilização de muitas imagens pode, no limite, desligar-nos das singularidades dos seres humanos.