sexta-feira, março 30, 2018

No museu de Todd Haynes (2/2)

Quase com um ano de atraso (integrou a competição de Cannes/2017), Wonderstruck, de Todd Haynes, chegou às salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'A música interior'.

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Provavelmente, um dos índices mais reveladores das singularidades criativas de um cineasta é a sua relação com a música. Não apenas pelas qualidades específicas das bandas sonoras dos seus filmes, mas sobretudo pelo modo como as matérias musicais se tornam elemento fulcral da dramaturgia — o exemplo clássico de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann pode servir de símbolo modelar de tal cumplicidade.
Algo de semelhante se poderá dizer da relação de Todd Haynes com o compositor Cater Burwell. Wonderstruck é o quarto título em que colaboram, depois de Velvet Goldmine (1998), Mildred Pierce (2011) e Carol (2015), com resultados sempre sedutores — a música de Wonderstruck remete-nos mesmo para um certo romanesco clássico a que estão ligados nomes como Franz Waxman, Miklós Rózsa ou Dimitri Tiomkin. Em qualquer caso, Haynes é também alguém que se interessa pelo modo como a música define as fronteiras e utopias das suas personagens. Para além da referência óbvia de Velvet Goldmine, inspirado em David Bowie, temos o especialíssimo caso de I’m Not There – Não Estou Aí (2007), uma biografia “plural” de Bob Dylan, interpretado não por um actor, mas seis (incluindo, aliás, uma actriz: Cate Blanchett).
Para Haynes, a música em geral e as canções em particular não são, de facto, elementos de “acompanhamento”. Entram nas suas histórias como pontuações, ora discretas, ora intensas, contaminando, a partir do interior, as acções e pensamentos das personagens. Num tempo em que as bandas sonoras deixaram de ser matéria forte dos mercados audiovisuais, a atitude de Haynes é também um factor sintomático da sua independência criativa. Para que conste, entre os projectos que ele tem em mãos há um documentário dedicado aos Velvet Underground e um filme sobre Peggy Lee.

A IMAGEM: Erwin Olaf, 2007

ERWIN OLAF
Grief - Irene
2007

quinta-feira, março 29, 2018

A guerra de "O Capitão" (3/3)

[cartaz americano de Hitler: Um Filme da Alemanha]
Mais um belo filme para nos ajudar a revisitar e repensar as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Março), com o título 'A herança de Syberberg'.

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Em 1977, o alemão Hans-Jürgen Syberberg assinou um filme prodigioso chamado Hitler: Um Filme da Alemanha. Não é engano: o título integra mesmo a expressão “um filme da Alemanha”, já que se trata de abordar Adolf Hitler como um líder que arrastou o país para um dantesco estado de encenação cinematográfica. E não apenas através do cinema (em particular, dos filmes encomendados a Leni Riefenstahl): o dispositivo nazi de poder envolvia a concepção da Alemanha como um espectáculo colectivo em permanente auto-consagração (foi assim, aliás, que Riefenstahl filmou o Congresso do Partido Nazi, em Nuremberga, em 1934, dando origem ao filme O Triunfo da Vontade).
Como em vários outros momentos da sua filmografia, Syberberg integrava muitos elementos formais e narrativos indissociáveis da ópera, não me parecendo possível considerar O Capitão, de Robert Schwentke, como um descendente directo do seu labor. Em todo o caso, há uma noção visceral que persiste — tem a ver com o próprio lugar simbólico em que colocamos Hitler.
Na altura muito atacado pelos que se escandalizaram com a visão da história através dos artifícios operáticos, Syberberg reconheceu que, de facto, o seu filme não se definia como uma crónica histórica. Em boa verdade, não era sobre Hitler como personagem do passado, antes sobre a sua persistência como elemento do presente. Mais exactamente: sobre “Hitler em nós” [texto de Susan Sontag].
Que está em jogo, então? Algo que excede qualquer processo de “purificação” moral. A saber: a certeza de que nunca somos estranhos às dinâmicas da história colectiva, mesmo quando os crimes nela inscritos nos suscitam a mais veemente condenação. O Capitão é mesmo um filme sobre esse assombramento. O protagonista usa a farda (de capitão) que não lhe pertence como uma máscara, mas a sua tragédia confirma que todas as máscaras expõem alguma verdade — em nós.

Aguilera em transformação

Grande agitação no espaço mediático global: Christina Aguilera apresentar-se-ia ao natural na mais recente edição da revista Paper, expondo-se... sem maquilhagem.
De facto, parece que já quase ninguém lê o que se escreve. Em boa verdade, dir-se-ia que a simples capacidade de olhar para as imagens está em crise. Sim, é verdade que a criadora de Stripped se apresenta sem maquilhagem em algumas das (magníficas) fotografias assinadas por Zoey Grossman, mas não é menos verdade que essas fotografias contam uma história de assumida transfiguração. Ou será que os entusiastas daquilo a que chamam "natural" nem sequer repararam que a transformação é o tema da revista — the transformation issue!
Evocando a inspiração fundadora de Madonna, Aguilera expõe-se, assim, como uma entidade e identidade em movimento, no limite levando-nos a discutir a própria noção primordial de Natureza: apresenta-se de forma "crua", como ela diz, ao mesmo tempo que se define como uma protagonista da arte da performance — vale a pena ver e ler.

quarta-feira, março 28, 2018

Stéphane Audran (1932 - 2018)

Misteriosa, inclassificável, símbolo de um feminino exterior a qualquer rótulo masculino, foi uma figura emblemática do cinema de Claude Chabrol: a actriz francesa Stéphane Audran faleceu no dia 27 de Março — contava 85 anos.
Para muitos espectadores, ela é apenas a personagem central de A Festa de Babette (1987), o filme de Gabriel Axel que valeu à Dinamarca o seu primeiro Oscar de melhor filme estrangeiro. Na verdade, Audran foi uma das figuras mais discretas, mas também mais intensas, do período glorioso da Nova Vaga francesa, em especial nos filmes do então seu marido Claude Chabrol, incluindo A Mulher Infiel (1969) e O Carniceiro (1970). Capaz de colocar em cena uma perversa neutralidade, sempre marcada por qualquer coisa de maligno, nunca terá sido uma estrela, o que não a impediu de construir uma filmografia recheada de notáveis composições. Sob a direcção de Luis Buñuel, participou em O Charme Discreto da Burguesia (1972), filme que consolidou o seu estatuto profissional, de algum modo reforçado pelo César de melhor actriz secundária em Violette Nozière (1978), contracenando com Isabelle Huppert, de novo sob a direcção de Chabrol. Depois de La Fille de Monaco (2008), de Anne Fontaine, não voltou a filmar. Em 2009, publicou a auto-biografia Une Autre Façon de Vivre.

>>> Trailers de A Mulher Infiel e A Festa de Babette.




>>> Obituário em The Hollywood Reporter.

terça-feira, março 27, 2018

"Rescue Me" por Elise LeGrow

É um clássico absoluto do rhythm and blues, remetendo obrigatoriamente para as memórias de Fontella Bass: Rescue Me, tema da dupla Raynard Miner/Carl William Smith gravado por Bass em 1965, reapareceu recentemente numa versão da admirável Elise LeGrow (no seu álbum de estreia, Playing Chess). E agora num espectáculo em Berlim — verdade e consequência.

segunda-feira, março 26, 2018

No museu de Todd Haynes (1/2)

Todd Haynes (no cenário de WONDERSTRUCK)
Quase com um ano de atraso (integrou a competição de Cannes/2017), Wonderstruck, de Todd Haynes, chegou às salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'Todd Haynes propõe uma viagem pelos labirintos da memória'.

Nascido em 1961, o americano Todd Haynes já nos habituou aos mais insólitos e sedutores ziguezagues criativos. Afinal de contas, a sua obra inclui objectos tão contrastados como Velvet Goldmine (1998), evocação do glam rock inspirada em David Bowie, e Carol (2015), belíssima história de amor próxima da estética dos melodramas da década de 50, com Cate Blanchett e Rooney Mara. Mesmo assim, é com surpresa que acolhemos Wonderstruck – O Museu das Maravilhas, uma fábula juvenil que teve a sua estreia mundial no último Festival de Cannes.
A própria classificação de “fábula juvenil” é discutível, quanto mais não seja porque Haynes quis conservar no seu filme algo da dinâmica visual do livro em que se baseia, com o mesmo título, já editado no mercado português (com chancela da Asa). Não é, de facto, uma narrativa tradicional. O autor, Brian Selznick, apostou em explorar as possibilidades de um modelo que já experimentara em A Invenção de Hugo, também adaptado ao cinema, por Martin Scorsese, em 2011. Assim, esta história de duas crianças separadas por meio século (1927-1977) evolui através de uma permanente interacção entre as palavras e as ilustrações, de tal modo que o livro tem nada mais nada menos que 630 páginas.
Há em Wonderstruck um segredo recoberto pelas camadas do tempo, circulando pelos labirintos da memória. De modo a preservar a possibilidade de descoberta do espectador, digamos apenas que se vai estabelecer uma estranha cumplicidade entre a jovem Rose (Millicente Simmonds), a viver em Nova Iorque, na década de 20, e um rapaz de nome Ben (Oakes Fegley), originário do Minnesota, nos anos 70. Três elementos são essenciais no desenho dessa cumplicidade: em primeiro lugar, a actriz de teatro Lillian Mayhew (Julianne Moore, a trabalhar pela terceira vez sob a direcção de Haynes), por quem Rose nutre um profundo fascínio; depois, o facto de Rose e Ben serem ambos surdos; finalmente, o fantástico edifício do Museu de História Natural, em Nova Iorque.

Uma sensualidade interior

É provável que Wonderstruck – O Museu das Maravilhas não seja o filme mais perfeito de Haynes, mas não há dúvida que é um dos mais envolventes e encantatórios. Sobretudo porque a sua realização aposta na criação de uma ambiência de angustiado maravilhamento, em tudo e por tudo ligado à surdez dos seus jovens heróis. Dir-se-ia que se trata de criar um tempo narrativo em que todos os sons são sensuais e interiores — e tanto mais sensuais quanto mais interiores.
Para conseguir os seus objectivos, o realizador contou com dois fundamentais colaboradores, qualquer deles ligado a vários títulos da sua filmografia. Em primeiríssimo lugar, o director de fotografia Ed Lachman, aliás já com duas nomeações para os Oscars conseguidas com filmes de Haynes: Longe do Paraíso (2002) e Carol — as suas imagens estão marcadas por essa nostalgia de um tempo utópico, intimamente ligado aos anseios e ilusões da infância. Depois, o músico Carter Burwell, capaz de compor uma banda sonora reminiscente da pulsão romanesca do classicismo de Hollywood.
E não deixa de ser curioso sublinhar que, entre as entidades produtoras de Wonderstruck, surja o nome dos estúdios Amazon. Na prática, a actual produção americana está marcada por uma certa nostalgia dos modelos clássicos que, paradoxalmente, passou a manifestar-se nas margens dos estúdios tradicionais. Dito de outro modo: Todd Haynes continua a ser um genuíno independente.

FACEBOOK: talvez tenham ouvido falar?

Na sequência da imensa fuga de informações de 50 milhões de perfis do Facebook, a empresa de Mark Zuckerberg publicou um anúncio de apresentação de desculpas em alguns dos principais jornais de língua inglesa: The New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal, nos EUA, e The Observer, The Sunday Times, Mail on Sunday, Sunday Mirror, Sunday Express e Sunday Telegraph, no continente europeu [Vanity Fair]. Lema: "Temos a responsabilidade de proteger a vossa informação" [sugere-se click para ampliar a imagem].
Saúda-se o gesto.
Pergunta-se se Zuckerberg acredita que a sua "comunidade" se define apenas por uma forma de gestão técnica — e tanto mais quanto isso o conduz a colocar alguma religiosidade na relação com os seus consumidores, já que agradece o facto de esses mesmos consumidores "acreditarem" no Facebook.
Acima de tudo, fica-se perplexo com a ligeireza com que Zuckerberg coloca a questão. A saber: "Talvez tenham ouvido falar de uma quiz app construída por um investigador universitário que, em 2014, permitiu a fuga de dados do Facebook de milhões de pessoas." Como? Talvez tenham ouvido falar... Incapaz de assumir o facto de o Facebook ter contaminado as relações humanas a nível planetário, Zuckerberg parece ser, ele próprio, o sacerdote de uma nova religião, alheia à existência de jornais e jornalismo : as notícias, mesmo sobre dezenas de milhões de pessoas, são um incidente. Talvez tenham ouvido falar...

domingo, março 25, 2018

A guerra de "O Capitão" (2/3)

Mais um belo filme para nos ajudar a revisitar e repensar as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Março), com o título 'Na intimidade do poder ditatorial'.

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Numa nota de intenções que escreveu para apresentar o seu filme O Capitão, Robert Schwentke propõe uma reflexão a partir de um contundente princípio filosófico: “(...) o horror é um conceito moral, não analítico”. Quer ele dizer que os crimes consumados pela personagem verídica do seu filme, o soldado alemão Willi Herold, não podem ser encarados como se a moral fosse uma espécie de purificação em que nos acomodamos. Como ele sublinha, não se trata de legitimar os seus actos, mas sim de avaliar as complexas relações entre o geral e o particular: “O inadmissível comportamento de Herold num contexto histórico particular permite entrever uma ponta de verdade sobre a condição humana em tempo de guerra.”
Qual é, então, a verdade do soldado Herold? Digamos que começa na solidão de alguém que perdeu todas as referências que lhe conferiam identidade. Ele não é exactamente um desertor, mas um “perdido” ou “disperso” (segundo a palavra alemã “Versprengte”). Tem 19 anos, vagueia pelos campos nos tempos finais da guerra e, a 3 de Abril de 1945, num veículo militar abandonado, encontra uma farda de capitão.
Veste a farda? Sim, mas dizer que Herold decide “disfarçar-se” de capitão será passar ao lado do misto de ingenuidade e monstruosidade que o define. De facto, ao envergar pela primeira vez a farda ele é “apenas” uma marioneta deslumbrada pelo símbolo de poder que encontrou — fala mesmo sozinho para a paisagem, celebrando a sua nova aparência. É quando aparece um outro soldado, à deriva como ele, que Herold reconhece a inusitada autoridade do novo guarda-roupa: ninguém o vê como soldado, todos o reconhecem como capitão.

Palavra e poder

Tanto bastaria para transformar O Capitão numa desencantada e, de alguma maneira, didáctica narrativa sobre o poder dos símbolos. Ou melhor: sobre o exercício do poder como um sistema de gestão dos símbolos — será preciso lembrar que isso confere ao filme uma perturbante actualidade política?
Em todo o caso, na dupla condição de realizador e argumentista de O Capitão, Schwentke visa algo ainda mais radical, porque mais íntimo. Acontece que Herold é também aquele que encontra na sua indumentária uma motivação para os actos mais cruéis: a farda não lhe serve apenas de esconderijo dos outros porque, em última instância, funciona como simulacro da sua consciência.
Como num jogo maligno, Herold descobre mesmo que a nova farda lhe permite utilizar algo que está para além do visível. A saber: o poder efectivo que um nome pode arrastar. Que nome? Adolf Hitler. Sem documentos para justificar as suas ordens, Herold evoca “Hitler” e consegue que a palavra se transforme em gesto de poder.
E não é todos os dias que deparamos com um actor como Max Hubacher (natural de Berna, Suíça, nascido em 1993). A sua interpretação de Herold envolve uma terrível ambivalência: por um lado, o seu olhar parece conter esse misto de crueldade e medo que encontramos nas crianças; por outro lado, ele vive, de facto, através de uma transfiguração caucionada pela farda que passou a envergar. No limite, a farda dispensa-o mesmo de se apresentar aos outros como detentor de um corpo. Talvez seja essa a definição do poder ditatorial: o corpo existe como um detalhe sem importância, tudo nele passou para o lado do símbolo.

sábado, março 24, 2018

Spielberg e a realidade virtual

Sinal dos tempos: na entrevista que deu à ITV britânica [video], a pretexto do seu novo filme Ready Player One: Jogador 1, Steven Spielberg tece subtis considerações sobre a realidade virtual e o modo como o seu funcionamento acontece fora das coordenadas cinematográficas, para além da sua especificidade espacial e temporal. O certo é que a esmagadora maioria das notícias fabricadas a partir dessa entrevista apenas refere o facto de Spielberg ter afirmado que considera que os filmes da Netflix — mais exactamente, os filmes que não têm uma real vida comercial nas salas — não deveriam concorrer aos Oscars...
Enfim, declaração importante, sem dúvida, sobretudo porque mexe com muitos valores essenciais à dinâmica industrial, comercial e simbólica de Hollywood. Seja como for, vale a pena ir um pouco mais além das manchetes e escutar atentamente as palavras de Spielberg.

sexta-feira, março 23, 2018

Jack White: "Over and Over and Over"

Mais um teledisco para acompanhar o lançamento do terceiro álbum de Jack White, Boarding House Reach: chama-se Over and Over and Over, vem ainda do tempo de The White Stripes, e fixa-se na obsessão de repetição sugerida no título — realizado pelo duo Us (Chris Barrett & Luke Taylor), eis um belo exercício de mise en scène, com azul q.b.

Comportamento sexual [citação]

>>> (...) A América de 2018 está tão politicamente activa, tão enfurecida, que sentimos uma suspeição crescente em relação aos que permanecem nas margens. Nada dizer foi sempre um terreno moral pantanoso. O silêncio, dizia Platão, arrasta consentimento.
O certo é que nem todos os desafios proporcionam escolhas morais tão claras. Perante o absolutamente correcto e o absolutamente errado, há uma infinidade de respostas possíveis. Além disso, há questões cujas fronteiras morais ainda estamos a explorar, incluindo no debate em curso sobre o bom e o mau comportamento sexual. Sobre os monstros, não há argumentação possível. Mas desde as revelações acerca de Harvey Weinstein, desenvolveu-se um debate sobre comportamento e consentimento que é imenso, intenso, altamente pessoal e ainda assim profundamente político. Pelo menos em privado, há pessoas que admitem não estar inteiramente seguras sobre como desenhar o mapa deste território.

NANCY GIBBS
'Discurso livre, discurso forçado e o direito ao silêncio'
TIME (01-03-2018)

quinta-feira, março 22, 2018

FACEBOOK: o alarmismo mediático

A propósito da actual discussão sobre o Facebook e a sua gestão (ou falta dela) dos dados dos respectivos utilizadores, há qualquer coisa de patético em muitos alarmismos mediáticos com que temos sido bombardeados a propósito dos poderes da rede dita "social" — na BBC, por exemplo, podemos mesmo ver um breve video, contundente e inquietante, sobre "aquilo que o gigante das redes sociais sabe sobre você."
Onde estavam os vigilantes da nossa privacidade quando, em 2004, Mark Zuckerberg criou um cândido serviço de partilha de dados pessoais?... E, em 2012, onde estavam os especialistas do apocalipse virtual para contrariar a vaga de gozo e difamação que se abateu sobre o filme A Rede Social, de David Fincher?... Provavelmente, dedicavam-se a esse velho desporto que consiste em minimizar e, mais do que isso, ridicularizar tudo o que venha de Hollywood (ao mesmo tempo que celebram os milhões gastos ou ganhos com um qualquer "blockbuster" de quinta ordem).
Ainda e sempre, não se trata de demonizar o Facebook, como não se trata de escarnecer do automóvel — afinal de contas, o equilíbrio ecológico do nosso planeta tornou-se um drama de todos os dias, mas não parece possível renegar a riqueza e complexidade de mais de um século de história vivido com veículos poluentes, movidos a petróleo e seus derivados.
Trata-se tão só, para já, de contrariar a perspectiva tecnocrática — também política, sem dúvida — segundo a qual se está apenas a viver um percalço técnico. Importa exigir um pouco mais de todos nós e perguntar de onde vem — e, sobretudo, para onde vai — esta cultura virtual que leva milhões de pessoas a tratar muitos dados da sua identidade (social, familiar, muitas vezes íntima) como coisa partilhável com uma empresa gerada na perspectiva de angariar gigantescas receitas publicitárias.
Se não soubermos formular tal questão, então devemos concluir que aquilo que oferecemos ao Facebook envolve o nosso próprio conceito de humanidade.

"Vanity Fair" — na noite dos Oscars

Jordan Peele
Um único cenário e uma parada de actores e actrizes na noite dos Oscars (alguns exibindo as cobiçadas estatuetas douradas): Mark Seliger é o talentoso autor de um portfolio de glamour visualmente correcto para este tempo de muitas convulsões em Hollywood — a descobrir, sem dúvida, nas páginas da Vanity Fair.

Hailee Steinfeld
Timothée Chalamet e Luca Guadagnino

A guerra de "O Capitão" (1/3)

Mais um belo filme para nos ajudar a revisitar e repensar as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Março), com o título 'A guerra para além dos filmes de guerra'.

Com a estreia do filme O Capitão, podemos descobrir um momento essencial de um fenómeno que tem marcado as mais diversas cinematografias, em particular no contexto europeu. Temos assistido, de facto, a um multifacetado processo de revisitação das memórias da Segunda Guerra Mundial, envolvendo a procura de novas narrativas e personagens, para além dos modelos clássicos do chamado filme de guerra.
Não por acaso, este é um processo enraizado numa diversificação dos próprios mecanismos de produção. Realizado pelo alemão Robert Schwentke, O Capitão, embora sendo um objecto de raiz alemã, resulta da associação de três países — Alemanha, França e Polónia —, contando ainda com a participação, na condição de co-produtor, do português Paulo Branco.
Discute-se a superação das matrizes tradicionais de espectáculo que, de forma esquemática, poderemos situar entre o romantismo de Casablanca (1942) e a dimensão épica de O Dia Mais Longo (1962) — o que, entenda-se, em nada diminui a importância histórica desses filmes. Quer isto dizer também que não é possível compreender toda esta evolução sem ter em conta a produção de Hollywood, determinante nos cânones tradicionais do filme de guerra.
Dir-se-ia que a própria complexidade histórica do que está em jogo exige a superação dos valores clássicos de heroísmo. Não se trata de lançar suspeitas “narrativas” sobre os heróis — o recente Dunkirk, de Christopher Nolan, sobre a evacuação do porto de Dunquerque em 1940, pode mesmo ajudar-nos a compreender que o heroísmo é também um valor em permanente reconversão formal e simbólica. Trata-se, isso sim, de expurgar a história de algumas formas de mitologia, procurando as marcas de vivências esquecidas, atípicas, mais ou menos marginais. Para lá das muitas diferenças que podemos detectar entre os títulos recentes sobre a Segunda Guerra Mundial, haverá mesmo um fundamental impulso realista.

Velhos e novos

O desejo de realismo não pode ser desligado do problema fulcral da abordagem cinematográfica do Holocausto. Noite e Nevoeiro (1955), de Alain Resnais, documentário que se organiza através do poder libertador das palavras, surge como referência primordial para formular uma interrogação que não se dissipou: como dar a ver a máquina de extermínio montada pelos nazis contra os judeus?
A pergunta ecoou no filme húngaro O Filho de Saul (2015), de László Nemes, através da odisseia de um prisioneiro de Auschwitz encarregado de incinerar os mortos — ao deparar com o cadáver daquele que diz ser seu filho, tudo fará para lhe dar uma sepultura condigna. Assistimos, desse modo, a um “desvio” narrativo que importa sublinhar: em vez de um testemunho “global” sobre o Holocausto, a ficção cinematográfica trabalha sobre a irredutibilidade de alguns destinos individuais. Nesta perspectiva, O Filho de Saul é um herdeiro directo de A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, sobre os judeus salvos pelo industrial alemão Oskar Schindler, filme admirável não poucas vezes minimizado por preconceitos anti-americanos e, sobretudo, anti-Hollywood.
Deparamos, assim, com uma importante componente dramática de que O Capitão é, justamente, uma nova variação: trata-se de superar os clichés muitas vezes associados às figuras dos alemães, abrindo a história a novas personagens e diferentes questões psicológicas, ideológicas ou simbólicas. Daí o valor do extraordinário Lore (2012), filme alemão dirigido pela australiana Cate Shortland. Nele encontramos os descendentes de um oficial nazi, comandados pela filha mais velha, de nome Lore: as notícias da morte de Hitler levam os pais a fugir, entregando a Lore a missão de conduzir os irmãos até à casa de uma avó... Subitamente, o horror da guerra já não pode ser descrito através de qualquer esquematismo moral, passando a contaminar tudo e todos, vítimas e carrascos, velhos e novos.

Paraíso e inferno

Da produção mais recente, um dos exemplos mais fascinantes, Paraíso (2016), tem assinatura do russo Andrei Konchalovsky. Consiste a sua proposta em reorganizar as memórias da guerra através dos “testemunhos” de três personagens (que, aliás, começam por ser apresentadas como se estivessem a dar um depoimento para um documentário): um colaboracionista francês, uma aristocrata russa que ajuda a Resistência em França e um oficial das SS alemãs.
Rodado num austero preto e branco, reminiscente da tradição do filme de guerra (tal como O Capitão, sublinhe-se), Paraíso organiza-se como um tríptico moral sobre um inferno em que, para além das responsabilidades das figuras centrais, se discute a verdade da própria dimensão humana. Prolongando o fôlego trágico dos seus melhores filmes, com inevitável destaque para Siberíade (1979), Konchalovsky expõe a gélida coexistência do humano e do desumano, no limite levando-nos a perguntar o que é a consciência individual no interior da história colectiva. Agora, O Capitão apresenta-se como uma contundente variação sobre tal pergunta — e a dificuldade de encontrar uma resposta redentora.

Facebook e regulação [citação]

>>> Não tenho a certeza que nós [Facebook] não devamos ser objecto de regulação. Em termos gerais, penso que a tecnologia é um domínio cada vez mais importante em todo o mundo. Na verdade, mais do que aquilo que devia ser regulado, "sim ou não", penso que a questão é "qual é a boa regulação".

MARK ZUCKERBERG
Entrevista a Laurie Segall / CNN
21 Março 2018

quarta-feira, março 21, 2018

FACEBOOK: os "erros" de Mark Zuckerberg

Mark Zuckerberg
Depois de cinco dias de silêncio sobre a revelação do modo como a Cambridge Analytica utilizou 50 milhões de perfis de utilizadores do Facebook, Mark Zuckerberg veio pedir desculpa, ou melhor, reconhecer que a sua companhia cometeu "erros". O que não deixa de ser curioso no seu discurso [leia-se a notícia em The Guardian e veja-se, aqui em baixo, o seu esclarecedor video] é o facto de todo ele tentar encerrar-se em questões de natureza técnica, repelindo qualquer reflexão cultural sobre o Facebook. Mais exactamente: Zuckerberg não quer (ou não é capaz) de reconhecer que qualquer dispositivo técnico — para mais com a dimensão planetária que o seu negócio adquiriu — envolve sempre os modos de viver, pensar e comunicar dos cidadãos, quer dizer, os valores da sua existência. Numa palavra: a sua cultura.


* * * * *

Chegamos, assim, a uma encruzilhada em que, mais do que nunca, importa encarar a dimensão "social" das redes virtuais para além de qualquer voluntarismo mais ou menos pueril. Permito-me, por isso, relembrar algumas hipóteses de reflexão dispersas pelos últimos anos:

— o conceito de "amigos" do Facebook [14 Dez. 2010];
— o endeusamento da informação [19 Jan. 2011];
— estar ou não estar no Facebook [26 Março 2011];
— que "sociedade" é esta? [03 Out. 2011];
— o Facebook segundo Marcelo Rebelo de Sousa [16 Set. 2012];
— o filme A Rede Social segundo Zuckerberg [14 Nov. 2014];
— o conceito de "like" [16 Set. 2015];
— os videos de 360º [24 Set. 2015];
— fontes de informação [25 Maio 2016];
— a gestão das imagens [09 Set. 2016];
— uma posição do New York Times [20 Nov. 2016];
— Zuckerberg & Trump [28 Nov. 2016];
— a nova ideologia "social" [01 Maio 2017];
— a promoção do conflito [10 Dez. 2017].

FACEBOOK: o que está a acontecer?

Christopher Wylie [ CNN ]
Chegou o momento de perguntarmos o que está a acontecer com o Facebook, através do Facebook, para além do Facebook.
É um momento politicamente importante e culturalmente decisivo porque, além do mais, se define para além de qualquer dicotomia pueril de "prós" e "contras" — o que está em jogo é, de uma só vez, o reconhecimento social da privacidade e a consistência global do espaço democrático.

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Duas ou três coisas que sabemos:
— a campanha de Donald Trump contratou a Cambridge Analytica, empresa de tratamento de dados, para utilizar 50 milhões (sublinho: milhões) de perfis do Facebook no sentido de prever e influenciar o comportamento de eleitores americanos [Rolling Stone];
— o que se sabe foi espoletado pelas declarações de Christopher Wylie, canadiano, 28 anos, que trabalhou na Cambridge Analytica (foi um dos seus fundadores), depois de ter estado ligado a Aleksandr Kogan, professor de ciências neurológicas na Universidade de Cambridge, criador da aplicação "thisisyourdigitallife", utilizada pelo Facebook para testar a personalidade dos seus utilizadores [Forbes].
— fundamental neste processo é o trabalho do Channel 4 britânico, dando a conhecer a confissão de Wylie e, mais do que isso, as declarações de Alexander Nix (obtidas com câmaras ocultas) sobre a Cambridge Analytica e a sua capacidade de montar uma campanha política, não com base em "factos", mas apenas através da gestão de "emoções" [Channel 4].

>>> Algumas declarações de Christopher Wylie, publicadas pelo jornal Le Monde.


>>> 'Big Trouble for the Social Network' [Time].

terça-feira, março 20, 2018

A IMAGEM: Alessandra Sanguinetti, 2018

Alessandra Sanguinetti / MAGNUM
Sebastopol, California
14 Março 2018

O Brasil além das novelas

Cinema brasileiro não é telenovela em sala escura: alguns filmes para que não nos esqueçamos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Março).

Subitamente, através da acção de algumas “pequenas” distribuidoras, a produção cinematográfica brasileira está em evidência no mercado português. Há dias, a Alambique colocou nas salas o magnífico Como Nossos Pais, drama familiar realizado por Laís Bodanzky, com um elenco em que se destacam Maria Ribeiro e Clarisse Abujamra. A partir de quinta-feira, a Nitrato celebra a obra de Eduardo Coutinho, estreando o seu título final, Últimas Conversas (2015), a par de Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007), enquanto a Midas lança No Intenso Agora, de João Moreira Salles, evocação documental das convulsões políticas da década de 1960, com banda sonora composta por Rodrigo Leão. Ainda com chancela da Midas, o documentário Cinema Novo, de Eryk Rocha, tem estreia marcada para a primeira semana de Abril.
A simples presença destes títulos relembra uma evidência há décadas sublinhada por alguma crítica de cinema. A saber: é inútil, e profundamente demagógica, a celebração de uma qualquer “irmandade” cultural com o Brasil quando a sua expressão audiovisual dominante (para não dizer única) se reduz a telenovelas formatadas, repetidas e repetitivas.
Há um outro Brasil de imagens e sons que, em grande parte, continua por descobrir. Importa encarar esse Brasil, não como um objecto cuja transparência estaria garantida pela língua comum, antes como um espaço em que reconhecemos o fascínio de muitas diferenças. Representar o Brasil (desde logo o Brasil cinematográfico) como uma derivação “natural” das componentes culturais portuguesas é, em última instância, afastarmo-nos dele. Há toda uma história, uma teia de sensibilidades e narrativas que nos convocam para um sedutor trabalho de descoberta. E por mais incómodo que isso possa ser para os discursos ecuménicos da nossa classe política, a presença do cinema brasileiro nas salas portuguesas no começo da década de 1970 (com a referência dominante de António das Mortes, de Glauber Rocha, lançado pela “pequena” distribuidora Animatógrafo, de António da Cunha Telles) era incomparavelmente mais importante.
O exemplo de Como Nossos Pais envolve peripécias que, ironicamente, até podiam ser material típico de novela: uma mãe marcada por uma profissão frustrante, um marido estranhamente ausente das tarefas domésticas, uma avó que enfrenta uma doença terminal... Acontece que os filmes não se distinguem pelos “temas” que abordam, antes pela linguagem com que convocam o espectador. E este é um filme interessado na inteligência do espectador.

segunda-feira, março 19, 2018

Elise LeGrow: blues & etc.

Formada na escola do R&B, com uma voz que combina a transparência narrativa com a subtileza romanesca, a canadiana Elise LeGrow é, desde já, uma das grandes revelações de 2018. Não que ela não tivesse já uma carreira de recriação de muitos standards. O certo é que, agora, com o seu primeiro álbum, Playing Chess, LeGrow dá provas de uma maturidade capaz de se transfigurar num universo de irredutível criatividade — por alguma razão, ela diz que a próxima etapa deverá ser a composição das suas próprias canções.
Na sua calculada ironia, o título do álbum remete para o património da lendária editora Chess Records, por onde passaram, entre outros, Muddy Waters, Chuck Berry e Etta James. Eis três temas desse património magnificamente reinventados por LeGrow: You Neves Can Tell, Who Do You Love e Going Back Where I Belong.





Cinema do Brasil: pais e filhos

* COMO NOSSOS PAIS, de Liás Bodanzky
[ DN, 15-03-2018 ]

Cinema brasileiro? É verdade. Muito para além das rotinas telenovelescas, há gente a fazer cinema no Brasil... Este é um belo exemplo de um cinema que se mantém atento às transformações de usos e costumes, celebrando as singularidades das suas personagens e a complexidade das respectivas relações. A partir das convulsões internas de uma família, a cineasta Liás Bodanzky coloca em cena temas tão delicados quanto as tensões geracionais e o enfrentamento da morte.
Através de um sensível trabalho de câmara, Bodanzky sabe expor as especificidades de cada lugar, ao mesmo tempo criando condições para as performances de um elenco invulgarmente talentoso — o destaque vai para Clarisse Abujamra e Maria Ribeiro, interpretando mãe e filha, vivendo as cumplicidades e conflitos de dois tempos e duas sensibilidades.

domingo, março 18, 2018

"Colo" — Portugal, aqui e agora (2/2)

João Pedro Vaz e Alice Albergaria Borges
Ainda há cinema português interessado em... Portugal: Colo, de Teresa Villaverde, é um belo exemplo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Março), com o título 'O mundo à nossa volta'.

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Não sei se Teresa Villaverde se reconhece como herdeira do cinema de Michelangelo Antonioni. Nem é importante sabê-lo para admirarmos um objecto como Colo — os filmes valem por si, não pelas referências que mobilizam ou possamos evocar. Em qualquer caso, creio que faz sentido dizer que estamos perante uma narrativa que se inscreve numa longa e muito nobre tradição de um certo cinema “social” europeu que tem em Antonioni uma das suas figuras mais emblemáticas (nomeadamente através de títulos da década de 60 como O Eclipse ou Deserto Vermelho).
O que está em jogo é a possibilidade de dar a ver os lugares mais anónimos ou anódinos da vida social, mostrando como neles, e através deles, se constroem e destroem as nossas identidades. Se quisermos jogar com as palavras, diríamos que se trata de filmar os nossos lugares comuns para além de qualquer lugar-comum.
Daí também o valor fundamental da luz nas ambiências de Colo, aliás trabalhada por um dos grandes directores de fotografia, não apenas da produção portuguesa, mas de todo o cinema europeu: Acácio de Almeida. Que acontece, então? Um sofisticado jogo de equilíbrios: por um lado, trata-se de dar a ver o mundo à nossa volta com a naturalidade de uma paisagem quotidiana que conhecemos e reconhecemos; por outro lado, tudo se decide para além de qualquer naturalismo piedoso em que as personagens seriam banais marionetas do destino. E não deixa de ser interessante que, para falarmos da beleza interior de Colo, deparemos com a ambiguidade dessa tão portuguesa palavra: “destino”. Este é, afinal, um filme contra qualquer determinismo, na certeza de que conhecer um ser humano, aceder à teia das suas emoções, ideias e desejos, envolve uma infinita tarefa de paciência e amor — ainda há quem filme assim.

MICHELANGELO ANTONIONI
O Eclipse (1962) e Deserto Vermelho (1964)

A música de Sollers

O romance de Philippe Sollers, Beauté, publicado em 2017 (entretanto, o autor já lançou Centre) é, de uma só vez, uma música íntima e uma deambulação pela musicalidade utópica do mundo. A partir da relação com Lisa, "jovem pianista grega excepcional", o autor organiza uma deambulação romanesca e filosófica, com algo de perverso método jornalístico, sobre a beleza perdida do mundo. Ou melhor, sobre o enfraquecimento da ideia de beleza na histeria deste mundo de espectáculo, reality-TV e hiperligações.
Sollers acrescenta assim mais uma peça fascinante ao mapa de romances com que vai redesenhando um desejo de escrita que não vacila perante a formatação quotidiana dos seres, gestos e relações — recorde-se o anterior, igulamente magnífico, Mouvement. Como intransigente moralista — entenda-se: pensador empenhado em discutir as condições de formulação de alguma moral —, não abdica de continuar a descrever a apropriação da nossa existência pelos sistemas de encenação social que já marcaram a ferro e fogo o século XX. A começar pelo nazismo — para ler, celebrando o poder não alinhado da palavra.

>>> Aquele que compreendeu melhor o devir-cinema universal foi Hitler. Basta abrir uma televisão, e deslizar de um canal para outro, para constatar que ele está lá, sem interrupção, com a emergência de arquivos inéditos por longo tempo interditos, que contemplamos agora colorizados. De tal modo estamos habituados a ver as mesmas imagens dos campos de exterminação, a preto e branco, com os seus amontoados de cadáveres esqueléticos e deportados meio mortos, que somos surpreendidos por esta súbita passagem para a cor. É o mesmo estúpido que vocifera, braço estendido, perante as massas em êxtase (muitas mulheres em transe), mas, em vez de aparecer como anjo das trevas com a sua braçadeira de cruz gamada, ei-lo arranjado, descontraído, quase espontâneo, e a sua fiel companheira, Eva Braun, loura e arredondada, desportiva, querida, amando o seu monstro empertigado como se ele fosse a sua boneca. 
[pág. 99]

sábado, março 17, 2018

Caminhar ou não caminhar...

Sugestiva ideia para promoção das caminhadas dos humanos (e não só...) como elemento vital da saúde quotidiana — é uma proposta californiana, proveniente do Monterey County.

David Byrne & Talking Heads
* SOUND + VISION Magazine, FNAC [hoje]

A propósito do novo e magnífico álbum de David Byrne, American Utopia, propomos uma viagem pelo seu fascinante universo criativo, sem esquecer as memórias dos Talking Heads — são muitas canções para escutar e imagens a redescobrir.

* FNAC: Chiado, hoje, 17 Março (18h30)

sexta-feira, março 16, 2018

The Beatles, "I Feel Fine"

Não é uma novidade, longe disso. Apenas um registo do single I Feel Fine, dos Beatles, desde o início considerado impróprio para consumo devido ao facto de os quatro de Liverpool estarem a comer num intervalo de gravações... O certo é que reapareceu agora no YouTube, além do mais num impecável restauro. Foi gravado em Novembro de 1965 (o single fora editado cerca de um ano antes) e, em nome da "fast food", talvez lhe possamos chamar "fast video" — em tom elogioso, claro.

Má literatura [citação]

>>> A má literatura é profundamente surda, daí o entusiasmo que suscita na surdez geral do marketing.

PHILIPPE SOLLERS
Entrevista a Emmanuelle de Boysson
Putsch, 5 Março 2018

A IMAGEM: Cornell Capa, 1960

CORNELL CAPA
Rodagem de The Misfits, 1960

Magnum

quinta-feira, março 15, 2018

"Colo" — Portugal, aqui e agora (1/2)

Alice Albergaria Borges
Ainda há cinema português interessado em... Portugal: Colo, de Teresa Villaverde, é um belo exemplo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Março), com o título 'Teresa Villaverde filma um tempo de muitas solidões portuguesas'.

Como é que o cinema português fala de... Portugal? A pergunta ressurge, ciclicamente, como um desejo ou um fantasma. E é tanto mais premente quanto sabemos que os modelos de raiz televisiva, mais ou menos formatados (como acontece com a telenovela), parecem ter conquistado o direito “exclusivo” de se afirmarem como retratos dos portugueses. Por uma vez, importa dizer que as coisas estão longe de ser tão esquemáticas: o novo filme de Teresa Villaverde, Colo (estreia: 15 Março), apresenta-se como um singularíssimo retrato de um Portugal atravessado pela crise económica.
Teresa Villaverde
Aliás, falar em retrato da crise é algo que pode atrair a noção simplista segundo a qual os filmes só abordam um “tema” quando as personagens falam incessantemente das suas causas ou consequências. Apetece, por isso, lembrar aquela evidência, se não poética, pelo menos didáctica: um filme é um filme é um filme... Colo não é um relatório estatístico, nem sequer um levantamento sociológico, sobre os tempos conturbados que temos vivido. É, isso sim, uma história de pessoas e sobre pessoas, apostada em dar conta da irredutibilidade das suas identidades e também da especificidade das suas relações.
Relações? Eis o perturbante paradoxo: dir-se-ia que tudo se passa num mundo em que, para além dos problemas de dinheiro com que as famílias se confrontam, as relações entre os seres humanos estão congeladas — será que ainda é possível alguma troca afectiva, transparente e genuína?
É disso mesmo que fala o grande plano de Marta (Alice Albergaria Borges) logo a abrir o filme, encostada a uma árvore, abraçando ou repelindo o namorado. A tensão é tão delicada que, de facto, somos levados a pensar que ela abraça e repele o namorado... Vogamos no labirinto anónimo de um bairro de Lisboa, num território observado para além de qualquer naturalismo (tele)novelesco: das linhas austeras dos prédios até à geometria triste dos jardins, tudo nos fala de um tempo de muitas solidões.

Encontros imediatos

João Pedro Vaz e Beatriz Batarda interpretam os pais de Marta como peões incautos dessa teia de solidões. Logo depois da abertura, em casa, quando Marta diz ao pai que a mãe ainda não chegou, ele reage num pânico brando — provavelmente, ela deixou-o... E parte à procura da mulher como se estivesse a iniciar uma viagem sem destino, sem lógica, sem regresso. Minutos mais tarde, quando se encontram na noite de um jardim descarnado, Villaverde filma-os, à distância, como se assistíssemos a um “encontro imediato” de uma ficção científica demasiado realista.
Não há muitos filmes portugueses com esta capacidade de nos dar a ver aquilo que somos, ou imaginamos ser, não a partir de clichés mediáticos ou dispositivos moralistas, antes através do simples desamparo de existir. Colo é um objecto céptico, sem dúvida. Mas é-o através de uma invulgar energia vital, essa que, num filme ou fora dele, nos permite pressentir que há sempre um lastro de verdade humana que nenhuma crise consegue anular.
Podemos aproximá-lo de outros momentos altos da filmografia da realizadora como Os Mutantes (1998) ou Transe (2006). Ponto comum a todos eles: um elaborado trabalho com os actores, sempre “forçados” a superar qualquer lugar-comum psicológico ou comportamental — descubra-se, em particular, o contido fulgor de Beatriz Batarda, representando uma mãe que oscila entre o zero emocional e a grandeza trágica. Filme de todos nós, enfim, que mostra o ser português, não como uma “marca”, mas uma condição de vida. Assim o saibamos merecer.