Alice Albergaria Borges |
Ainda há cinema português interessado em... Portugal: Colo, de Teresa Villaverde, é um belo exemplo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Março), com o título 'Teresa Villaverde filma um tempo de muitas solidões portuguesas'.
Como é que o cinema português fala de... Portugal? A pergunta ressurge, ciclicamente, como um desejo ou um fantasma. E é tanto mais premente quanto sabemos que os modelos de raiz televisiva, mais ou menos formatados (como acontece com a telenovela), parecem ter conquistado o direito “exclusivo” de se afirmarem como retratos dos portugueses. Por uma vez, importa dizer que as coisas estão longe de ser tão esquemáticas: o novo filme de Teresa Villaverde, Colo (estreia: 15 Março), apresenta-se como um singularíssimo retrato de um Portugal atravessado pela crise económica.
Teresa Villaverde |
Aliás, falar em retrato da crise é algo que pode atrair a noção simplista segundo a qual os filmes só abordam um “tema” quando as personagens falam incessantemente das suas causas ou consequências. Apetece, por isso, lembrar aquela evidência, se não poética, pelo menos didáctica: um filme é um filme é um filme... Colo não é um relatório estatístico, nem sequer um levantamento sociológico, sobre os tempos conturbados que temos vivido. É, isso sim, uma história de pessoas e sobre pessoas, apostada em dar conta da irredutibilidade das suas identidades e também da especificidade das suas relações.
Relações? Eis o perturbante paradoxo: dir-se-ia que tudo se passa num mundo em que, para além dos problemas de dinheiro com que as famílias se confrontam, as relações entre os seres humanos estão congeladas — será que ainda é possível alguma troca afectiva, transparente e genuína?
É disso mesmo que fala o grande plano de Marta (Alice Albergaria Borges) logo a abrir o filme, encostada a uma árvore, abraçando ou repelindo o namorado. A tensão é tão delicada que, de facto, somos levados a pensar que ela abraça e repele o namorado... Vogamos no labirinto anónimo de um bairro de Lisboa, num território observado para além de qualquer naturalismo (tele)novelesco: das linhas austeras dos prédios até à geometria triste dos jardins, tudo nos fala de um tempo de muitas solidões.
Encontros imediatos
João Pedro Vaz e Beatriz Batarda interpretam os pais de Marta como peões incautos dessa teia de solidões. Logo depois da abertura, em casa, quando Marta diz ao pai que a mãe ainda não chegou, ele reage num pânico brando — provavelmente, ela deixou-o... E parte à procura da mulher como se estivesse a iniciar uma viagem sem destino, sem lógica, sem regresso. Minutos mais tarde, quando se encontram na noite de um jardim descarnado, Villaverde filma-os, à distância, como se assistíssemos a um “encontro imediato” de uma ficção científica demasiado realista.
Não há muitos filmes portugueses com esta capacidade de nos dar a ver aquilo que somos, ou imaginamos ser, não a partir de clichés mediáticos ou dispositivos moralistas, antes através do simples desamparo de existir. Colo é um objecto céptico, sem dúvida. Mas é-o através de uma invulgar energia vital, essa que, num filme ou fora dele, nos permite pressentir que há sempre um lastro de verdade humana que nenhuma crise consegue anular.
Podemos aproximá-lo de outros momentos altos da filmografia da realizadora como Os Mutantes (1998) ou Transe (2006). Ponto comum a todos eles: um elaborado trabalho com os actores, sempre “forçados” a superar qualquer lugar-comum psicológico ou comportamental — descubra-se, em particular, o contido fulgor de Beatriz Batarda, representando uma mãe que oscila entre o zero emocional e a grandeza trágica. Filme de todos nós, enfim, que mostra o ser português, não como uma “marca”, mas uma condição de vida. Assim o saibamos merecer.