Mais um belo filme para nos ajudar a revisitar e repensar as memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Março), com o título 'A guerra para além dos filmes de guerra'.
Com a estreia do filme O Capitão, podemos descobrir um momento essencial de um fenómeno que tem marcado as mais diversas cinematografias, em particular no contexto europeu. Temos assistido, de facto, a um multifacetado processo de revisitação das memórias da Segunda Guerra Mundial, envolvendo a procura de novas narrativas e personagens, para além dos modelos clássicos do chamado filme de guerra.
Não por acaso, este é um processo enraizado numa diversificação dos próprios mecanismos de produção. Realizado pelo alemão Robert Schwentke, O Capitão, embora sendo um objecto de raiz alemã, resulta da associação de três países — Alemanha, França e Polónia —, contando ainda com a participação, na condição de co-produtor, do português Paulo Branco.
Discute-se a superação das matrizes tradicionais de espectáculo que, de forma esquemática, poderemos situar entre o romantismo de Casablanca (1942) e a dimensão épica de O Dia Mais Longo (1962) — o que, entenda-se, em nada diminui a importância histórica desses filmes. Quer isto dizer também que não é possível compreender toda esta evolução sem ter em conta a produção de Hollywood, determinante nos cânones tradicionais do filme de guerra.
Dir-se-ia que a própria complexidade histórica do que está em jogo exige a superação dos valores clássicos de heroísmo. Não se trata de lançar suspeitas “narrativas” sobre os heróis — o recente Dunkirk, de Christopher Nolan, sobre a evacuação do porto de Dunquerque em 1940, pode mesmo ajudar-nos a compreender que o heroísmo é também um valor em permanente reconversão formal e simbólica. Trata-se, isso sim, de expurgar a história de algumas formas de mitologia, procurando as marcas de vivências esquecidas, atípicas, mais ou menos marginais. Para lá das muitas diferenças que podemos detectar entre os títulos recentes sobre a Segunda Guerra Mundial, haverá mesmo um fundamental impulso realista.
O desejo de realismo não pode ser desligado do problema fulcral da abordagem cinematográfica do Holocausto. Noite e Nevoeiro (1955), de Alain Resnais, documentário que se organiza através do poder libertador das palavras, surge como referência primordial para formular uma interrogação que não se dissipou: como dar a ver a máquina de extermínio montada pelos nazis contra os judeus?
A pergunta ecoou no filme húngaro O Filho de Saul (2015), de László Nemes, através da odisseia de um prisioneiro de Auschwitz encarregado de incinerar os mortos — ao deparar com o cadáver daquele que diz ser seu filho, tudo fará para lhe dar uma sepultura condigna. Assistimos, desse modo, a um “desvio” narrativo que importa sublinhar: em vez de um testemunho “global” sobre o Holocausto, a ficção cinematográfica trabalha sobre a irredutibilidade de alguns destinos individuais. Nesta perspectiva, O Filho de Saul é um herdeiro directo de A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, sobre os judeus salvos pelo industrial alemão Oskar Schindler, filme admirável não poucas vezes minimizado por preconceitos anti-americanos e, sobretudo, anti-Hollywood.
Deparamos, assim, com uma importante componente dramática de que O Capitão é, justamente, uma nova variação: trata-se de superar os clichés muitas vezes associados às figuras dos alemães, abrindo a história a novas personagens e diferentes questões psicológicas, ideológicas ou simbólicas. Daí o valor do extraordinário Lore (2012), filme alemão dirigido pela australiana Cate Shortland. Nele encontramos os descendentes de um oficial nazi, comandados pela filha mais velha, de nome Lore: as notícias da morte de Hitler levam os pais a fugir, entregando a Lore a missão de conduzir os irmãos até à casa de uma avó... Subitamente, o horror da guerra já não pode ser descrito através de qualquer esquematismo moral, passando a contaminar tudo e todos, vítimas e carrascos, velhos e novos.
Da produção mais recente, um dos exemplos mais fascinantes, Paraíso (2016), tem assinatura do russo Andrei Konchalovsky. Consiste a sua proposta em reorganizar as memórias da guerra através dos “testemunhos” de três personagens (que, aliás, começam por ser apresentadas como se estivessem a dar um depoimento para um documentário): um colaboracionista francês, uma aristocrata russa que ajuda a Resistência em França e um oficial das SS alemãs.
Rodado num austero preto e branco, reminiscente da tradição do filme de guerra (tal como O Capitão, sublinhe-se), Paraíso organiza-se como um tríptico moral sobre um inferno em que, para além das responsabilidades das figuras centrais, se discute a verdade da própria dimensão humana. Prolongando o fôlego trágico dos seus melhores filmes, com inevitável destaque para Siberíade (1979), Konchalovsky expõe a gélida coexistência do humano e do desumano, no limite levando-nos a perguntar o que é a consciência individual no interior da história colectiva. Agora, O Capitão apresenta-se como uma contundente variação sobre tal pergunta — e a dificuldade de encontrar uma resposta redentora.