terça-feira, junho 23, 2009

Clichés televisivos (6): o rodapé

Quase todos os formatos televisivos são poten-cialmente interessantes. A televisão é também uma linguagem sempre em aberto. Mas, por vezes, o formato enreda-se na celebração da sua própria retórica — aí, nasce um cliché.

[O debate] [O inquérito] [O repórter] [O jovem repórter] [A entrevista]

Em boa verdade, creio que o rodapé é uma invenção radiofónica. Mas a sua grosseria instalou-se na televisão como uma virose sem cura — e, para o visado, sem recurso. Consiste, em estúdio ou em reportagem, no remate de uma determinada intervenção com uma nota (de rodapé, precisamente) que, para o espectador, funcionaria como uma sistematização didáctica. Por exemplo, um chefe de bombeiros explica a um repórter que o fogo tem várias frentes, que o vento não facilita, que se espera um arrefecimento noturno que pode ser bom, que estão a chegar mais carros, que talvez à meia-noite as chamas estejam extintas... Aí, o repórter termina a sua intervenção virando-se para a câmara, dizendo qualquer coisa como: "Uma situação ainda difícil, mas que se espera resolvida dentro de algumas horas" — é o rodapé da reportagem.
Convenhamos que, na maior parte das situações, o rodapé é um excesso de zelo que, além do mais, menospreza o simples facto de o espectador também saber... ver e escutar. Mas as coisas complicam-se quando o rodapé enfatiza determinadas componentes, desligando-as de qualquer contexto, promovendo aquilo que é um valor dominante na informação televisa: não apenas a obsessiva detecção dos conflitos, mas a sua exponenciação prática ou simbólica.
Assim, por exemplo, o líder político A, B ou C considera que o seu partido está a estudar uma determinada lei, que tem dúvidas sobre alguns detalhes da respectiva redacção, mas que, em princípio, está preparado para votar a sua aprovação... Ao fazê-lo, corre o risco de ser "resumido", em rodapé, com um mimo deste género: "Fulano de tal vai votar a favor desta lei, mas não sabe o que dizer sobre ela." Ou pode até o desgraçado político considerar que não é o momento para dar a sua opinião, guardando-se para a altura que considerar politicamente mais pertinente... E aí vem o rodapé: "Fulano de tal recusou-se a responder à nossa pergunta."
Como funciona, então, o rodapé? Como brutal impostura interpretativa, candidamente (?) disfarçada de naturalismo televisivo. E quando mais seco for o entrevistado — por exemplo: "Não tenho nada para dizer" —, mais corre o risco de, daí a poucos segundos, ser reduzido a um monstrinho pateta que não aceita jogar as regras da democracia.