terça-feira, junho 09, 2009

Clichés televisivos (3): o repórter

Quase todos os formatos televisivos são poten-cialmente interessantes. A televisão é também uma linguagem sempre em aberto. Mas, por vezes, o formato enreda-se na celebração da sua própria retórica — aí, nasce um cliché.

[O debate] [O inquérito]

Todas as televisões — de todo o mundo, entenda-se — gastam rios de dinheiro para ter "enviados especiais" em locais onde há notícias consideradas importantes. Escusado será dizer que tal prática pode gerar extraordinárias contribuições jornalísticas. O certo é que, com enorme frequência, o dispositivo assim montado acaba por ser revelador do primarismo estético e filosófico que sustenta o conceito dominante de reportagem e, por isso mesmo, da identidade que se confere ao repórter.
Que acontece, então? Na maioria das situações, o repórter aparece em frente do acontecimento (na prática, impedindo-nos de ver aquilo que, supostamente, era a matéria da reportagem), gastando o seu tempo de antena a debitar um texto que qualquer colega podia ler na redacção, isto é, sem que haja qualquer acréscimo informativo decorrente da sua situação in loco. Dir-se-ia que assistimos a involuntárias caricaturas dos próprios poderes técnicos que a televisão tem à sua disposição: como está exemplarmente demonstrado no filme Wag the Dog/Manobras na Casa Branca (1997), de Barry Levinson, o mesmo efeito de "reportagem" poderia ser executado em estúdio, com as imagens em fundo e sem a necessidade de gastar dinheiro a enviar o repórter...
Para além do anedótico de tudo isto, fica a ideologia que o sustenta: não se envia o repórter para tentar conhecer seja o que for, porque esta não é uma prática cognitiva. Estamos apenas perante uma visão decorativista, de grande mediocridade cenográfia, do que seja a informação televisiva. No limite, tenta fazer-se crer no carácter inquestionável desta equação pueril: "um homem (ou uma mulher) com um microfone da mão + um pano de fundo = um efeito imanente de verdade".
Não admira que esta visão da televisão e do mundo — e do mundo segundo a televisão — recuse a simples possibilidade de discutir se, e como, a presença da televisão "afecta" os próprios acontecimentos. Aliás, importa dar alguma razão a tal recusa: a sua formulação, dicotómica e determinista, é um beco sem saída. O problema não está na "alteração" dos acontecimentos; está, isso sim, no simples reconhecimento de que um acontecimento com televisão é um acontecimento... com televisão, não um acontecimento habitado por alguns seres humanos que pairam, imponderáveis, como anjos da guarda... Isto sem esquecer que, mesmo na mais absoluta indigência jornalística, esses seres humanos transportam cabos e microfones, câmaras e luzes, valores iconográficos, ideias filosóficas e conceitos morais.
A caricatura banal, mas bem esclarecedora, de tal ontologia surge, todos os dias, nas reportagens (?) em que, atrás do repórter, se posta uma multidão mais ou menos ululante. Para a televisão, isso é motivo de divertimento e auto-satisfação — na prática, semelhante aparato desmente a inocência factual com que a televisão gosta de se pensar.
A televisão não é, nunca foi, nunca será, um habitante neutro de qualquer espaço, seja uma reunião política, um jogo de futebol ou uma casa do Big Brother — a televisão é, de uma só vez, um elemento do real, seu protagonista activo e, não poucas vezes, indutor de factos e comportamentos. Todas as imagens que se produzem são específicas e selectivas. Não "reproduzem" coisa nenhuma. Que fazem, então? Algo que pode oscilar entre a impostura e o sublime, a prisão simbólica e a libertação artística. Ou seja: acrescentam real ao real. George Méliès [foto] compreendeu isso nos últimos anos do século XIX — porque há tantos profissionais de televisão que trabalham como se ele nunca tivesse existido?