terça-feira, fevereiro 10, 2009

A crítica e as suas merdas (concl.)

DIFAMAÇÃO (1946), de Alfred Hitchcock

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Publicámos aqui a opinião de Miguel Botelho a propósito do texto de Luís Miguel Oliveira sobre Quem Quer Ser Bilionário? e as reacções que desencadeou numa página do Ípsilon. Na sequência dessa publicação, LMO enviou-nos um mail comentando a situação.
Passamos a reproduzir o essencial desse mail:

"Calm down Ingrid, it's only a movie"
(Alfred Hitchcock para Ingrid Bergman, a meio da projecção de ante-estreia de Rear Window)

O texto do leitor tem pelo menos o mérito de isolar uma ou duas coisas minimamente palpáveis nesta discussão. Palpáveis mas, na minha óptica, contestáveis. É o que tentarei fazer tão resumidamente quanto possível.

Antes disso, um reparo. Parece-me evidente que o meu texto, não sendo de “crítica ‘pura’” (expressão um pouco fluida mas que julgo entender no sentido pretendido pelo leitor) nem “meramente informativo”, era um texto de opinião. A paginação assinalava-o como “comentário”, terminologia habitual no Ipsilon para identificar os textos que não cabem nem na “informação” nem na “crítica”, pura ou impura. Certamente por inabilidade minha persistiu, apesar disso, alguma ambiguidade quanto ao modo como o texto devia ser “percepcionado”. Fair enough. Mas saltar daí para uma “falta de respeito” para com a linha editorial do jornal parece-me um passo demasiado grande para que eu o consiga entender.

A questão que o leitor põe com precisão é a da “insolência”. Concretamente o uso do calão, e mais concretamente ainda o uso da expressão “cheiro a merda”. Ora, para me acusarem de sofrer de complexos de superioridade já bastam os comentadores do Ipsilon online; portanto, mesmo não conhecendo as referências do leitor concedo de barato que sejam melhores, mais dignas e mais recomendáveis do que as minhas, que não serão exemplo para ninguém. Mas sucede que, nada tendo contra a sobriedade e a austeridade linguísticas ou estilísticas, alguma da crítica (de hoje e de ontem, em Portugal e no estrangeiro) que mais me entusiasma recorre frequentemente à “insolência” e ocasionalmente ao vernáculo. Exemplos que conheço de cor: Jacques Aumont a chamar a Midnight Cowboy um “filme-puta”, Louis Skorecki a dizer que Breaking the Waves era uma “punheta de freira”. Aumont nos Cahiers, Skorecki no Libération (portanto, directamente comparável ao Público). Não estou habilitado a fazer uma hierarquia da gravidade semântica entre “puta”, “punheta” e “merda”, mas parece-me que venha o diabo e escolha. E se a “punheta” passa no Libération e a “merda” (que ainda por cima está no filme) não passa no Público há alguma coisa de errado com um dos jornais. (Ou com os dois, mas não me peça para decidir, sou parte demasiado interessada).

Mais a sério: tal como eu a entendo e gosto de a praticar, e sem prejuízo de poder ser mais do que isto, a crítica de cinema é o relato de uma relação pessoal com os filmes, a crónica de amores, indiferenças e desamores. Não é uma disciplina académica, muito menos científica. Estaria, tivesse eu talento para tal, mais próxima da poesia. Os gostos e os desgostos podem ser violentos – não vejo por que motivo a sua expressão teria que os limar dessa violência (nem mesmo por que haveria de estar impedida de “desqualificar culturamente” este ou aquele filme, afinal trata-se de separar o trigo do joio). Pelo menos enquanto não me disserem, como num filme americano que agora não sei nomear, “you can’t do that on national television”. Quando mo disserem, logo faço contas à vida (mas devo dizer que sinto um pequeno arrepio perante frases como aquela em que o leitor me acusa de estar a “abusar do poder de escrever nos jornais” – por amor de Deus, estou a escrever sobre um filme, ainda por cima perfeitamente “couraçado”, totalmente imune ao meu texto, não estou propriamente a fazer insinuações caluniosas sobre uma personalidade). Uma nota pessoal a que não resisto: já me aconteceu ser acusado de “falta de paixão”, eis-me agora na berlinda por “excesso de paixão”. Seria divertido se não fosse tão… frustrante.

Ainda sobre a vexata questio: é evidente que a expressão “cheiro a merda” (e deve ter sido a primeira vez que utilizei esse famigerado vocábulo) estava estrategicamente colocada no meu texto. Não me conceda mais nada, mas conceda-me um mínimo domínio estilístico sobre os textos que escrevo. Uma consciência das palavras e dos efeitos que provocam. Sabia perfeitamente que, a propósito de um filme destes, haveria reacções. (Se eu tivesse dito que o último Schroeter “cheirava a merda” toda a gente se estava nas tintas – o que, diga-se de passagem, é profundamente triste). E houve. Eu não “estava a pedi-las”. Foi o leitor (e toda aquela multidão comentadora) que engoliu o isco, o anzol e a cana. Considere que há nisto uma vertente de pequena experiência na manipulação de massas. Não escrevemos agora “online”, em constante interactividade? Et bien… E depois de pensar uns segundos nisto, descubra onde está a ironia e não leve a mal.

O que nos leva à outra questão: tem o leitor direito a sentir-se “insultado no seu gosto” pelo meu texto? Direito tem certamente, agora razão parece-me ter pouca. Nada no meu texto se refere aos espectadores que gostam do filme. E é difícil escrever, positiva ou negativamente, se se estiver no medo de insultar os leitores que têm uma opinião contrária. O melhor é escrever sem pedir desculpa. Já agora – eu gosto da “punheta de freira”, é o meu Von Trier preferido. Mas quando li a expressão empregue pelo Skorecki não me senti insultado, ri-me. Sou anormal, eu sei. Devia ter começado logo a escrever cartas.

Finalmente, o ponto em que me sinto longe, muito longe, do leitor. A ideia de que Slumdog é “mero entretenimento”. E que portanto requere um quadro de análise adequado às suas intenções e propósitos. Lamento, mas sou incapaz de convocar um tal quadro, e ainda mais a condescendência que ele parece pressupôr. Não arrumo os filmes na gaveta do “entretenimento”, da “arte”, ou seja do que for. Os filmes são filmes, ponto. O Boyle existe no mesmo plano do Renoir e do Rossellini (o meu texto, se reparou, antecipava um tipo de raciocínio como o seu – sem qualquer intenção de insultar). Do Ozu e do Griffith. Um filme de 2009 existe no mesmo plano de um filme de 1920. Têm uma verdade e uma vibração intrínsecas, que se passam aquém (e além) das condições em que foram feitos e dos propósitos com que foram feitos. É um ponto em que, até alguém me explicar melhor, me mantenho irredutível.

A boa notícia, para mim e para si, é que há muitos mais filmes para além do Slumdog. Tenho a certeza de que nalguns deles o nosso encontro será um pouco mais feliz.

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Agradecemos a Miguel Botelho e Luís Miguel Oliveira a civilizada clareza com que expuseram os seus pontos de vista. E mesmo sem tentar rasurar as diferenças (várias e importantes) desses pontos de vista, talvez valha a pena sublinhar um ponto em que se cruzam. Ou seja: a ideia de que a construção de uma relação com o cinema não pode estar ancorada numa espécie de interminável "tribunal" em que, conforme os gostos ou a disposição, oscilamos entre as condições de "juízes" e "réus".
Sem prejuízo de reconhecer que os problemas aqui levantados por esta sucessão de posts podem sempre ser reinvestidos, valerá a pena dizer também que não é produtivo para ninguém eternizar a sua abordagem — há mais filmes; e mais maneiras de pensar o cinema. Gilles Deleuze gostava de dizer que, por vezes, é preciso reconhecer os limites da própria explanação das diferenças. E perguntar: "Podemos passar à frente?"