domingo, fevereiro 08, 2009

A crítica e as suas merdas (2)

THE SHINING (1980), de Stanley Kubrick

[1]

I - Um dos pressupostos mais antigos, e também mais falaciosos, em muitos confrontos sobre o trabalho dos críticos de cinema é o de que tal trabalho deveria obedecer a uma "legalidade" mais ou menos inquestionável: para uns, tal "legalidade" decorre daquilo que chamam "maioria" (por exemplo, gerada por um grande sucesso de bilheteira); para outros, resulta de "princípios" que julgam detectar (sempre contra o "cinema americano", sempre a favor do "cinema europeu"); para outros, enfim, o trabalho crítico deveria decorrer de uma transparência sem arestas em que todos se "reconheceriam" (toda a gente admite que não é simples falar da escrita de Camões ou Joyce, raras vezes se reconhece o mesmo a propósito de Godard ou Spielberg).

II - Isso mesmo se reflecte na (falsa) polémica sobre Quem Quer Ser Bilionário? a que aludia o primeiro texto. Trata-se de saber, afinal, se aceitamos a degradação de valores — discursivos e morais — que está a marcar a blogosfera. Podemos mesmo considerar que o trabalho dos críticos é muito mau (e por que não?), mas continuo a considerar que isso não é uma boa razão para nos mostrarmos indiferentes ao estilo (?) da maioria dos discursos que circulam na blogosfera. Lembremos dois exemplos de "opiniões" suscitadas pelo texto de Luís Miguel Oliveira:

* 05.02.2009 - 18:37 - Anónimo, Lisboa
Parabéns Luís Miguel Oliveira. Para além do cheiro, pode dizer-se que este filme (poderei chamar-lhe isso?) não tem uma ponta de cinema lá dentro. Nem aqui, nem na índia ;)

* 05.02.2009 - 16:15 - Anónimo, Lisboa
Este senhor "Oliveira" (APELIDO JÁ DE SI POUCO HONORÁVEL E DE MÁ MEMÓRIA), que infelizmente alguém, senão o próprio, convenceu que percebia uma restea que fosse de cinema, merece apenas uma palavra da nossa parte: tenha juízo e faça algo de útil por si, provavelmente salvar-se-á de vir sofrer mais humilhações públicas, infringidas pelo próprio, num gesto de puro auto flagelo, mas diga-se, inteiramente merecidas!!!

Nem sequer se pode dizer que este tipo de considerações resulte de um qualquer pensamento minimamente articulado: são transcrições integrais, quer dizer, estas são palavras escritas por pessoas que, sem mais para oferecer, pensam (?) que este tipo de intervenções pode ter alguma pertinência para os outros. É irrelevante que um comentário seja "pró", outro "contra" o filme: ambos são produto do mesmo vazio argumentativo.

III - Muito para além da questão pontual de Quem Quer Ser Bilionário?, importa referir que este (não-)debate tem muitas décadas: em termos estruturais, e na maioria das suas componentes ideológicas, não há diferença sensível entre este episódio e muitos outros, nomeadamente sobre cinema português, que aconteceram nos anos 70 (e se repetem em ciclos quase sem evolução).
Com alguma ironia, podemos definir a actual conjuntura em função de um vício do mundo do futebol: aí predomina a utilização, não exactamente da noção de "legalidade", mas de "justiça". Escusado será dizer que os golos que entram em cada baliza resultam das peripécias do jogo, com todas as arbitrariedades e falta de lógica que também o caracterizam, não havendo "justiça" pela simples razão que não existe uma instância legal para "estipular" o resultado de cada jogo — é essa, aliás, uma das componentes mais vitais, e também emocionalmente mais envolventes, do jogo jogado. E, no entanto, a "justiça" dos resultados é um lugar-comum de todos os dias. Por vezes com aquela contradição absurda que leva um comentador a dizer que "de facto, os resultados não são uma questão de justiça", mas... "este resultado foi justo."
Está a passar-se algo de semelhante no mundo das ideias sobre cinema e filmes. Pode até reconhecer-se que há uma inquietante degradação da blogosfera, mas... é preciso demonizar a "crítica". Só isso explica que a avalancha de escritos no tom daqueles comentários seja muitas vezes tratada com cega indiferença, preferindo-se escolher a "crítica" como alvo, sem atender à decomposição quotidiana dos valores do espaço público — não seria necessário repetir, mas repito: nessa decomposição, os escritos contra a "crítica" e o seu estilo de não-pensamento são apenas um sintoma microscópico de uma tragédia, social e cultural, muitíssimo mais vasta.

PS - Seria também escusado dizê-lo, mas faço questão em explicitá-lo: independentemente do carácter naturalmente subjectivo, logo discutível, destas notas, nada do que aqui está escrito autoriza a considerar que estou a aplicar uma demonização de sinal contrário, neste caso contra todos os que frequentam a blogosfera e, genericamente, o "público" (outro desses colectivos que nada significam). Apenas para citar um exemplo, transcrevo um outro comentário entretanto suscitado pelo texto de Luís Miguel Oliveira e que possui o mérito simples de querer pensar fora, e para fora, dos estereótipos dominantes:

* 08.02.2009 - 22:23 - João Pereira, Lisboa
Por muito que não se concorde com a crítica, deviam evitar-se os chavões típicos: insultar o autor do texto; dizer-se que os críticos são cinéfilos frustrados, e pseudo-intelectuais, etc.... O autor está a manifestar a sua opinião, e a fundamentá-la...eu, e muitas pessoas, não concordamos com a mesma, mas estar a jogar com estereótipos é uma questão estéril e infantil. Veja-se a opinião negativa que o produtor Alexandre Valente tem sobre a crítica, e vejam-se os resultados a que chegou o seu "filme", o
Second Life...mas pronto, isso já é matéria para outra discussão.