1. Esta é mais uma reflexão sobre a especificidade do trabalho dos críticos de cinema, em particular na blogosfera. Retoma algumas ideias já aqui expressas e tem como motivação muito concreta uma página online do suplemento Ípsilon, do jornal Público, contendo um texto de Luís Miguel Oliveira sobre o filme Quem Quer Ser Bilionário?, de Danny Boyle, e também uma série de comentários de visitantes [aviso: para compreender o que se segue é fundamental conhecer a referida página].
2. Luís Miguel Oliveira tem um ponto de vista francamente negativo sobre um filme que, para mim, se apresenta como um curioso exercício de colagem do artifício de Bollywood com algumas marcas do realismo britânico. Se a incontornável época de Oscars impõe alguns paralelismos (e porque não?), acrescentarei que a calorosa simpatia que sinto por Quem Quer Ser Milionário? não me impede de considerar que a excelência cinematográfica que mais me interessa está do lado de Revolutionary Road, de Sam Mendes, ou O Estranho Caso de Benjamin Button, de David Fincher.
3. Dito isto, direi também que o facto de me sentir exterior ao texto de Luís Miguel Oliveira (que, aliás, reflecte um sentido histórico do cinema — ou do cinema como história — que me merece o máximo respeito) não me leva, nunca me levará, a sentir qualquer tipo de cumplicidade com o rol de insultos expressos em alguns dos comentários disponíveis na referida página — alguns, insisto, não se trata de favorecer as generalizações gratuitas que proliferam na blogosfera.
4. Porque é essa a questão que, uma vez mais, aqui coloco: a dos modos como as ideias (não) circulam e, em particular, as trágicas ilusões democráticas que a Internet pode fabricar. Considero mesmo que o Público, ainda que imbuído da mais respeitável boa vontade, erra ao abrir as suas páginas a este tipo de discursos (não poucas vezes instalados na cobardia do anonimato): se é verdade que tal abertura decorre de uma salutar disponibilidade democrática, cada vez mais penso que favorecer a proliferação desta mediocracia desemboca, em última instância, num enfraquecimento dos mais viscerais valores democráticos.
5. O que aqui triunfa é uma nova equação ideológica, liminarmente anti-democrática: primeiro, para confrontar um determinado juízo de valor anula-se toda a argumentação que o sustenta; depois, dispensam-se os contrastes do confronto para proclamar os maniqueísmos do conflito (e a passagem bélica do confronto para o conflito é mesmo a pedra de toque desta anti-democracia); enfim, desemboca-se no insulto/difamação como consagração de uma violência filosófica cujo único e sinistro objectivo é anular a diferença do outro.
6. Tudo isto acontece em sereníssima e irresponsável coexistência com uma blogosfera cinematográfica que, todos os dias, cada vez mais, vive de uma ignorância festiva em relação ao cinema — começa essa ignorância no militante desconhecimento do cinema como história e desemboca no absoluto alheamento em relação ao que é específico do cinema como sistema de linguagens. Certamente não por acaso, essa blogosfera, mesmo com algumas respeitáveis excepções, erigiu a "crítica" como seu inimigo de todos os dias. Ao fazê-lo, dispensa o simples problema de lidar com os críticos (plural, plural, plural) como detentores de discursos necessariamente, semiologicamente e humanamente diferentes — demonizar a "crítica" é o gesto infantil, infantilmente gritado, de quem não quer lidar com a própria diversidade que se abre à sua frente.
7. Que a actividade crítica — no campo do cinema ou de qualquer outro domínio artístico — suscite reacções de todos os sentidos, incluindo resistências e contundentes formas de demarcação, eis o que faz parte do jogo democrático e, em boa verdade, todo o crítico profissional espera e, porventura, deseja. Acontece que só uma visão ingenuamente liberal da blogosfera não entenderá que aquilo que está a acontecer nada tem a ver com isso. De facto, o trabalho crítico na área do cinema é apenas um pequeníssimo sector daquilo que é visado pela violência da blogosfera — e o que é visado é o próprio pensamento como actividade nobre do ser humano.
8. Entrámos no domínio da birra de jardim de infância promovida à condição de "pensamento". O método é: "fulano de tal disse mal (ou bem) de um filme de que eu penso bem (ou mal), logo fulano de tal é uma besta" — não é uma citação directa, mas qualquer frequentador minimamente atento da blogosfera saberá que a realidade dos factos é, não poucas vezes, ainda mais grosseira e desavergonhada que esta descrição caricatural.
9. Não creio que Luís Miguel Oliveira tenha sido muito feliz ao concluir o seu texto sobre Quem Quer Ser Bilionário? com esta frase: "Danny Boyle não conseguiu sentir mais do que o cheiro a merda. Cada um tem o nariz que tem." Não que eu conteste a sua pertinência descritiva (o próprio Danny Boyle tem falado frequentemente da dimensão excremencial do seu filme, por exemplo na conversa que com ele tive oportunidade de registar). Mas corre o risco, desnecessário a meu ver, de desvalorizar a coerência interna do seu discurso com uma frase que resiste mal a qualquer citação fora do seu contexto — et pour cause.
10. Concluo manifestando a minha solidariedade profissional e moral com Luís Miguel Oliveira. A possibilidade de escrevermos e pensarmos, numa palavra, vivermos através de muitas — e muito estimulantes — diferenças é um valor que importa defender contra todas as formas de degradação das relações humanas. As maravilhas da Internet justificam a continuada defesa de outros padrões de comportamento e também, já agora, outra qualidade de escrita.
PS. Fica sempre aquela sensação bizarra de que a moda corrente de difamação da "crítica" parte do pressuposto de que o crítico se julga universal e unívoco. Mais ainda: os promotores dessa moda parecem julgar que o crítico, seja ele quem for, escreve para "convencer" os outros (como se quem escreve profissionalmente não tivesse consciência do relativismo do seu discurso). Em todo o caso, semelhante fixação ajuda a perceber o trauma que aqui se projecta — é isso que eles procuram provocar nos outros: o convencimento. Nobody's perfect.