segunda-feira, fevereiro 09, 2009

A crítica e as suas merdas (4)

O ANJO EXTERMINADOR (1962), de Luis Buñuel

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As ideias que por aqui têm circulado — tendo como ponto de partida as reacções a um texto de Luís Miguel Oliveira, disponível no site do Ípsilon — suscitaram um mail de Miguel Botelho (inner-smile.livejournal.com), de Coimbra, contendo algumas interessantes observações sobre o referido texto e os modos da sua leitura.
Transcrevo o essencial esse mail:

Longe de mim corroborar a forma como a crítica (nomeadamente de cinema) é recebida em Portugal, e ainda mais longe defender o nível dos comentários da generalidade dos blogs e dos sites dos jornais, cuja acrimónia, mais do que o tom insultuoso, não deixa de me surpreender. No entanto, o texto que Luís Miguel Oliveira publicou no Ipsilon a propósito do filme Quem Quer Ser Bilionário está ao nível dos comentários que suscitou e se é verdade que não os legitima, também o é que não os desmerece. É um caso em que se poderá dizer que estava mesmo a pedi-las.

Aliás no mesmo site do Ipsilon há outro texto sobre o filme (derivado da secção de crítica do jornal) da autoria de Jorge Mourinha que também é francamente desfavorável em relação ao filme de Boyle, mas que no entanto não mereceu a chuva de comentários. Não acha significativo? E não acha que a diferença na forma como os dois textos foram recebidos deve-se muito mais a eles próprios do que a considerações sociológicas acerca da relação do público com a crítica?

Aliás, o texto de LMO sofre desde logo pela indefinição das suas intenções. Não é um texto de crítica 'pura', não é um texto de opinião, não é um texto meramente informativo. Esta confusão não ajuda nada a estabelecer as regras em que o texto pode ser percepcionado. E é, na minha opinião, apenas mais um dos vários aspectos em que este episódio demonstra bem o que é a falta de respeito de quem escreve nos jornais perante, já nem digo os leitores, que são uma entidade demasiado abstracta para impôr respeito, mas pela própria ideia do jornal, pela sua linha editorial.

O próprio uso neste contexto da palavra 'merda' é discutível. Em que é que, objectivamente, o artigo se enriquece com a utilização do calão? Nada. É pura abjecção, ou seja, insolência e falta de educação. Então porque é de admirar que a reacção seja ao mesmo nível? Eu li o artigo no jornal (só o procurei no site do Ipsilon seguindo o link que V. pôs no blog) e senti-me desagradado. Ou pior, senti-me insultado. Quando leio um texto de natureza crítica no jornal, estou à espera que o crítico me ajude a desvendar o filme, a compreendê-lo, mesmo que a minha opinião sobre o filme não seja coincidente com a do autor do texto. Mas não estou à espera que o autor do texto o desqualifique enquanto produto cultural, e sobretudo que o faça de tal forma que diminua a minha capacidade de o usufruir e eventualmente até de gostar.

Na minha opinião, LMO abusou do poder que tem, que é o de escrever nas páginas dos jornais e formar, não só opinião, mas cultura. A reacção dos comentadores do artigo, mais do que desagrado por uma opinião com a qual não concordam (tinham, nesse caso, o texto de Mourinha ali à mão), é de quem se sentiu insultado no seu gosto, ou ao menos na sua capacidade de usufruir um produto cultural que, não o esqueçamos, é de mero entretenimento.

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Não quero repetir considerações já disponíveis nos posts anteriores, incluindo sobre a frase final do texto de LMO. Em todo o caso — mesmo que tal frase possa suscitar o (legítimo) desagrado a que MB se refere —, não creio que seja muito produtivo polarizar o que está em jogo na oposição entre calão e palavras "limpas".
Gostaria, sobretudo, de formular uma dúvida didáctica sobre a noção de "mero entretenimento" com que MB encerra o seu texto, sobretudo porque não consigo partilhar as implicações habituais de tal noção (e admito, claro, que MB não as quisesse sustentar).
A mais frequente dessas implicações é a de que o "entretenimento" está para um lado e o "pensamento" para outro. Ora, por mim, acredito numa lógica de constante miscigenação entre uma coisa e outra — nenhum prazer estético é alheio ao seu pensamento, do mesmo modo que qualquer pensamento sobre uma linguagem pressupõe uma ligação activa com algum espaço de prazer.
Aliás, sob qualquer perspectiva, a noção seria sempre reversível: o "mero entretenimento" seria uma boa justificação para não achincalhar LMO (ou fosse quem fosse) e também para não demonizar a "crítica" ou, mais radicalmente, o simples exercício de pensar — e sobre isso, obviamente, MB demarca-se do tom "insultuoso" que refere.
O que é triste — e escrevo isto para, em última análise, concordar com o desejo de cultura que MB formula — é que os conflitos instalados nos "obriguem" a suspender o mais interessante: a nossa relação com os filmes e o seus prazeres (ou desprazeres, se for caso disso).