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Não está na moda, mas anda por aí: o realismo cinematográfico continua a marcar algumas das mais estimulantes imagens e narrativas do nosso presente. Mais do que produto de uma estética (há no seu seio muitas e variadas tendências), trata-se da afirmação de uma ética que nos ajuda a sobreviver à formatação das narrativas e à normalização dos olhares todos os dias decorrentes do domínio totalitário das telenovelas.
Curiosamente, o fim de ano cinematográfico foi marcado por quatro estreias que nos permitem compreender os fascinantes riscos criativos desse realismo, ou melhor, realismos que não aceitam submeter-se à estreiteza mental dos modelos narrativos que ocupam os horários nobres das televisões e também a imprensa cor de rosa que os cauciona. São, além do mais, todas elas estreias europeias, a confirmar a vitalidade do cinema do nosso continente (o que, como é óbvio, não implica qualquer desinteresse pela actualidade de muitos títulos fascinantes da produção americana).
O Silêncio de Lorna [foto], dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, poderá servir de símbolo de tudo aquilo que está em jogo. Filmando a saga de uma jovem albanesa (interpretada pela fabulosa Arta Dobroshi) que tenta adquirir a nacionalidade belga, os irmãos Dardenne mergulham fundo nas inquietações de uma Europa que nem sempre sabe lidar com as suas próprias contradições internas. Se o trabalho dos Dardenne visa criar uma ambígua ilusão de documentário, Steve McQueen, artista plástico inglês, filma um desespero que tende para a indizível nitidez da morte. O seu filme Fome, premiado com a Câmara de Ouro (melhor primeira obra) do último Festival de Cannes, é uma evocação da greve da fome de Bobby Sands e outros militantes do IRA que, em 1982, lutavam pelo estatuto de prisioneiros políticos. Tanto O Silêncio de Lorna como Fome são exercícios em que o olhar realista passa, antes de tudo o mais, pela vibração dos corpos.
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Nem todo o cinema europeu tem estas marcas realistas. Aliás, mais do que nunca, importa reconhecer a sua pluralidade e defender a respectiva existência cultural e económica. Seja como for, esta exigência de “colar” as histórias à realidade social decorre de uma exigência fundamental: a de olhar à sua volta e não pactuar com a mediocridade televisiva.