
Desde o seu anúncio, o projecto de Caos Calmo surgiu sob o efeito do “patrocínio” de Nanni Moretti. Desde logo porque Moretti ia assumir a personagem principal de um filme cuja realização seria de outro cineasta (Antonello Grimaldi), mas também porque ele fazia questão em deixar a sua marca no argumento (co-assinado com Laura Paolucci e Francesco Piccolo). O mínimo que se pode dizer é que os resultados foram compensadores, nomeadamente em Itália, com Caos Calmo a receber três prémios David di Donatello (palmarés anual da produção italiana), com destaque para o de melhor actor secundário atribuído a Alessandro Gassman (filho de Vittorio Gassman, no filme intérprete do irmão de Moretti).

É essa a grande lição de Moretti: a de praticar um cinema atento ao presente, mas mantendo uma relação viva com o património cinematográfico do seu país. É um cinema que, além do mais, se demarca da formatação televisiva que, ao longo dos anos, deixou as suas marcas nefastas, quer na linguagem, quer na organização económica de muitas zonas da produção audiovisual italiana.


Se outras razões não houvesse, estas bastariam para fazer de Caos Calmo um filme eminentemente actual. Nele se conta a história de Pietro Paladini, administrador de uma empresa de televisão (o pormenor não será secundário) que, na sequência da morte acidental da mulher, passa a viver uma estranha rotina: todos os dias acompanha a filha Claudia ao colégio, sem depois se dirigir ao emprego; fica no jardim em frente ao colégio, vai lendo, frequentando o café, conhecendo pessoas. Com o decorrer dos dias, Pietro acaba mesmo por ir recebendo colegas e familiares, como se tivesse criado um novo “escritório” que tem tanto de posto profissional como de confessionário.
Produção italiana apresentada no Festival de Berlim do passado mês de Fevereiro, Caos Calmo está, em termos temáticos, muito próximo do padrão de telefilmes familiares que faz parte da produção regular de algumas televisões europeias (nomeadamente em Itália e França). Em todo o caso, demarca-se das suas convenções e do seu determinismo, antes do mais graças a um trabalho de argumento que em nenhum momento procura encerrar as personagens em “modelos” dramáticos ou moralistas.
E se é verdade que a realização de Antonello Grimaldi (precisamente alguém com experiência dividida entre cinema e televisão) possui a vantagem da sobriedade, não é menos verdade que é difícil imaginar Caos Calmo sem a muito contida, e também muito subtil, composição de Nanni Moretti na personagem de Pietro. Moretti consegue colocar em cena o desconcertante paradoxo de um homem dividido entre as obrigações sociais que decorrem do seu próprio luto (de acordo com as regras desse luto, as outras pessoas esperam que ele se comporte de forma “lógica”) e a súbita descoberta de um vazio interior que, afinal de contas, ele próprio desconhecia.
Ao contrário de uma telenovela, a história de Caos Calmo, adaptada de um romance de Sandro Veronesi, não se encerra num esquema de “soluções”, “inocentes” e “culpados” (mesmo se é verdade que o tema da culpa perpassa por todo o seu desenvolvimento). O filme acaba mesmo por possuir a transparência simples, porventura naïf, de um retrato social que, para lá do jogo das aparências, nos revela a solidão das suas personagens. Talvez possamos defini-lo como um conto moral cuja “mensagem”, algo irónica, está condensada no próprio título: este é um sistema de relações profundamente abalado nos seus valores e certezas e, ao mesmo tempo, um universo que se distingue por uma bizarra e contagiante serenidade. Dito de outro modo: mesmo sob o efeito normativo da televisão, o cinema social italiano continua vivo.