sábado, janeiro 30, 2021

SOPHIE (1986 - 2021)

Primeira artista transgénero a ser nomeada para um Grammy, a escocesa SOPHIE faleceu no dia 30 de janeiro, na sequência de um "súbito acidente", em sua casa, em Atenas — contava 34 anos; a notícia foi conhecida através da editora Transgressive: “Fiel à sua espiritualidade, subiu para ver a lua cheia e acidentalmente escorregou e caiu."
Nascida em Glasgow, a 17 de setembro de 1986, de seu nome Sophie Xeon, adoptou o nome artístico SOPHIE (com maiúsculas). Impôs-se através de um espantoso tratamento electrónico de sofisticadas canções, cruzando diversos e sugestivos valores, da tradição romântica aos mais ousados efeitos de manipulação e montagem sonora, passando por uma inusitada pose de crooner.
Product (2015), uma compilação de singles e alguns temas originais, trouxe-lhe uma visibilidade internacional que se traduziu na chamada para colaborações com Madonna (Bitch I'm Madonna), Charlie XCX e Vince Staples, entre outros. Editou um único álbum, em 2018, o admirável Oil of Every Pearl's Un-Insides: a sua energia criativa teve o prolongamento adequado em alguns telediscos de concepção tão original quanto arrojada, com destaque para Faceshopping [video]. Nesse mesmo ano, foi distinguida com o prémio de inovação dos AIM Independent Music Awards.


>>> Obituário na Rolling Stone.

sexta-feira, janeiro 29, 2021

Cannes em julho

Le Jour se Lève (1939), de Marcel Carné — referência emblemática de um certo classicismo francês —, serve de mote ao voto formulado pelo Festival de Cannes. En 2021, le jour se lèvera!
Aliás, mais do que um voto, trata-se de uma reconversão muito objectiva da agenda para 2021 com o anúncio de novas datas: 6 a 17 de julho. Daí o desejo que fica expresso, desta vez num futuro tecido de esperança e ansiedade: "o dia nascerá!".
Em Portugal, o filme de Carné recebeu o título de Foi uma Mulher que o Perdeu — ninguém é perfeito...

quinta-feira, janeiro 28, 2021

Cloris Leachman (1926 - 2021)

Actriz americana de enigmática versatilidade, Cloris Leachman faleceu no dia 26 de janeiro, de causas naturais, na sua casa de Encinitas, California — contava 94 anos.
Não deixa de ser irónico que esta actriz de muitas e delicadas subtilezas dramáticas seja a maior parte das vezes identificada apenas como um notável comediante. Que o foi, sem dúvida: a sua composição em Frankenstein Júnior (1974), de Mel Brooks, bastaria para exemplificar as suas qualidades nesse campo. Em todo o caso como não recordar o papel de Ruth Popper em A Última Sessão (1971), de Peter Bogdanovich, personagem de uma solidão que se exprime através da enigmática conjugação de emoções à deriva com os fantasmas de uma sexualidade oculta? Foi a interpretação que lhe valeu um Oscar de melhor actriz secundária.
Das ambiências estilizadas do "noir", em O Beijo Fatal (1955), de Robert Aldrich, ao desencanto melodramático de Spanglish (2004), de James L. Brooks, passando pelo ambíguo romantismo de Daisy Miller (1974), de Peter Bogdanovich, Leachman foi sempre um surpreendente fenómeno de transfiguração e emoção. Sem esquecer, claro, Texasville (1990), sequela de A Última Sessão que Bogdanovich realizou de novo a partir de um romance de Larry McMurtry.
Militante pelos direitos dos animais, foi como tal consagrada pela PETA, que lhe atribuiu um prémio honorário em 2017. Alguns anos antes, em 2009, tinha feito o seu balanço mais pessoal no livro Cloris: My Autobiography.

>>> Trailers de A Última Sessão, Daisy Miller e Texasville.






>>> Obituário em The Hollywood Reporter.
>>> Memória de Cloris Leachman pela PETA.

quarta-feira, janeiro 27, 2021

Dia Internacional em Memória
das Vítimas do Holocausto

Judeus na rampa de seleção em Auschwitz, maio de 1944
[FOTO: Wikipedia]

Hoje, 27 de janeiro, assinala-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, recordando as vítimas do genocídio perpetrado pelos nazis — 27 de janeiro é a data, em 1945, de libertação do maior campo de extermínio montado pelos nazis, Auschwitz-Birkenau, pelas tropas soviéticas.

>>> Trailer do filme Shoah (1985), de Claude Lanzmann.
 

>>> Video do World Jewish Congress, assinalando a data.


>>> Entrevista com Steven Spielberg, no 25º aniversário de A Lista de Schindler (1993).
 

>>> Museus do Holocausto [directório].

terça-feira, janeiro 26, 2021

Future Islands na NPR

Fiéis aos seus sintetizadores, pontuados por uma amargura melódica que encontra o seu ponto de fuga na voz cava de Samuel Herring, os Future Islands estiveram na NPR para um dos emblemáticos 'Tiny Desk Concerts'. Aliás, não saíram de Baltimore porque estes são tempos dos 'Tiny Desk (home) Concerts'. Apresentaram três canções do álbum mais recente, As Long as You Are (2020), fechando com Balance, de On the Water (2011) — 18 minutos de elegância sem ostentação.
 

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Elina Garanca — Schumman + Brahms

Um dos derradeiros grandes lançamentos de 2020: uma colecção de canções de Robert Schumann e Johannes Brahms, interpretadas por Elina Garanca, mezzo soprano de riquíssimos contrastes e modulações, por certo uma das mais admiráveis cantoras líricas da actualidade. Não é uma revelação, como é óbvio — Garanca nasceu em Riga, Letónia, em 1976, e possui uma notável carreira internacional —, mas, como escreve James Manheim [AllMusic], este álbum da Deutsche Grammophon assinala a coexistência de um repertório de ópera com o domínio tão particular das canções (como já tinha sido sensível no concerto que deu na Fundação Gulbenkian, em 2009). Começando por Schumann (Frauenliebe und Leben, Op. 42 - I. Seit ich ihn gesehen) aí está o esplendoroso Lieder.
 

A IMAGEM: Raymond Depardon, 1968

RAYMOND DEPARDON
Richard Nixon
Sioux City, Iowa (1968)

domingo, janeiro 24, 2021

Um doce para Kamala Harris

Eis a cultura do fragmento virtual em expressão, se tal é possível, ainda mais fragmentária: 7 segundos com Kamala Harris, ponderando as atribulações do poder político, incluindo a curiosa diversidade dos respectivos sabores.


>>> The Unemployed Philosophers Guild.

10 filmes de 2020 [10]

Waad Al-Kateab e Edward Watts

Há uma dimensão pessoal, de supremo intimismo, na saga de sobrevivência de Waad Al-Kateab: o seu registo do cerco de Aleppo, na Síria, é tanto mais tocante quanto envolve o nascimento da sua filha, Sama. Ao mesmo tempo, este é um exemplo precioso de um cinema que existe como genuíno gesto de acção & pensamento. Nem que seja através da ligeireza atribulada de um telemóvel, trata-se de registar situações que, pela sua especificidade e duração, escapam à (falta de) lógica de qualquer fragmento "viral", televisivo ou online — raras vezes o documentário foi tão visceral e, até às mais drásticas consequências, realista.



* * * * *

[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ] [ 5. American Utopia ]

sábado, janeiro 23, 2021

Larry King (1933 - 2021)

Lendário entrevistador de televisão, encarnou como poucos uma ideia clássica de diálogo jornalístico: o novaiorquino Larry King faleceu no dia 23 de janeiro, no Cedars-Sinai Medical Center, em Los Angeles, onde estava internado desde finais de dezembro, infectado por Covid-19 — contava 87 anos.
Do trabalho inicial numa rádio de Miami, onde começou em 1957, aos programas na plataforma digital Ora TV, de que foi um dos fundadores em 2012, King — nome verdadeiro: Lawrence Harvey Zeiger — foi apurando um estilo de dicção, um modelo de pose e uma estratégia de entrevistador que teve a sua apoteose na CNN. O seu Larry King Live manteve-se como um sucesso nos EUA, e um fenómeno global, entre 1985 e 2010, prefazendo um total de 6120 edições.
Face a personalidades marcantes da política ou a estrelas do entertainment, passando por empreendedores em ascensão (entrevistou várias vezes Donald Trump), distinguiu-se pela capacidade de fazer perguntas concisas e pertinentes, mesmo as mais difíceis deixando espaço para o seu interlocutor poder responder — nessa medida, foi o exacto oposto do entrevistador sem capacidade de escuta que só pretende expor o entrevistado através de algum incidente de expressão ou trocadilho de linguagem.
Sem nunca ter tido aquilo que se possa chamar uma carreira cinematográfica, King surgiu em pequenos papéis em vários filmes (e também produções televisivas), quase sempre assumindo o seu próprio papel. Vimo-lo, por exemplo, em Os Caça-Fantasmas (1984), Contacto (1997) ou Bulworth (1998); ouvimo-lo também a dar voz a personagens de desenhos animados, nomeadamente Doris em Shrek 2 e respectivas sequelas, ou Bee Movie/A História de uma Abelha (2007), interpretando 'Bee Larry King'.
Em 1987, na sequência do primeiro ataque cardíaco que sofreu, criou a Larry King Cardiac Foundation, organização não lucrativa com o objectivo principal de auxiliar doentes com problemas para financiar os seus próprios tratamentos. Dois anos mais tarde, publicou o livro Mr. King, You're Having a Heart Attack: How a Heart Attack and Bypass Surgery Changed My Life.

>>> Memória da CNN.


>>> No filme A História de uma Abelha, contracenando com Barry B. Benson (Jerry Seinfeld).
 

>>> Obituário no Los Angeles Times.
>>> Entrevista a Larry King na Television Academy Foundation.
>>> Memórias de Larry King no Variety.

sexta-feira, janeiro 22, 2021

Batom? Ou bâton?

@jjlr_lopes

Subitamente, a cena política agitou-se por causa de um “batom vermelho”. Resta saber se a polémica enriquece a nossa vida e, como diz Jean-Luc Godard, nos ajuda a “pensar politicamente” o que somos ou queremos ser — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 janeiro), com o título 'O batom do nosso descontentamento'.

Fui um dos utilizadores do Instagram a publicar uma imagem de uma mulher com os lábios pintados de vermelho: um fotograma de Marilyn Monroe, em vibrante Technicolor, no filme Niagara (1953), realizado por Henry Hathaway. Em boa verdade, creio que o efeito imediato de tal gesto acaba por ser profundamente equívoco.
Expor a provocação gratuita de André Ventura ao comentar o “batom vermelho” de Marisa Matias? Sim, sem dúvida. O debate (a que chamam) político está contaminado por peripécias deste calibre intelectual e não tenho a ilusão de me considerar tão indiferente, ou tão puro, que possa alhear-me das respectivas convulsões.
Acontece que a divertida proliferação de imagens de mulheres e homens de lábios vermelhos favorece uma dimensão pueril da qual, insisto, não me estou a excluir. Dir-se-ia que a aceleração dos nossos circuitos “informativos” nos transformou em peões de um jogo contaminado pela possibilidade de arremessar um qualquer símbolo contra o protagonista ou detentor de outra simbologia.
Podemos sempre evocar, ou invocar, o valor clássico e cartesiano da razão. Não no sentido de ter razão “contra” aquilo que seria o erro (a desrazão, precisamente) do outro. Antes porque, defendendo a razão como disponibilidade para o pensamento, talvez seja possível, pelo menos, contrariar um pouco as palavras dos que banalizam o acto de pensar.
Mas é um pouco como acreditar que é possível deparar com alguma razoabilidade na análise política dos dinheiros para as actividades artísticas. Ciclicamente, por exemplo, o oceano mediático agita-se com mais uma discussão sobre os parcos milhões disponíveis para o cinema português… Com que efeitos práticos?
Uma coisa é certa: quase duas décadas depois, continuo à espera que alguma voz da política, de qualquer direita, de qualquer esquerda, venha formular alguma dúvida metódica sobre a pertinência de se terem gasto 645 milhões de euros (muitas décadas de produção cinematográfica…) para construir uma dezena de estádios de futebol para o Euro2004. Não para montar mais um tribunal “popular” — já basta o que basta. Apenas porque essa dúvida poderia ser útil aos modos de nos pensarmos colectivamente.
O modo como vivemos a política — ou como nos “pensamos politicamente”, para aplicarmos uma expressão consagrada pelo trabalho cinematográfico e televisivo de Jean-Luc Godard — passou a depender de peripécias de “batom vermelho” e afins. Como se tudo acontecesse num território delimitado, maniqueísta e frívolo, de que somos espectadores cansados, entre o divertido e o deprimido.
Godard é autor de uma imensa filmografia marcada por estas questões. Em 2019, numa entrevista ao canal franco-alemão Arte, por ocasião da passagem do seu filme O Livro de Imagem (2018), citava, a propósito, estas palavras do filósofo Claude Lefort: “As democracias modernas, transformando a política num domínio autónomo de pensamento, predispõem ao totalitarismo” (traduzo à letra o verbo original: “prédisposer”).


Subitamente, compreendemos que o jogo é outro. E, sobretudo, é de outra natureza. Não se trata de saber quem tem o melhor “batom” para contrapor ao “batom” do outro, mas sim de enfrentar a crise de identidade do próprio discurso político. Por alguma razão, em O Livro de Imagem, Godard escolheu criar uma imagem emblemática, isolando a mão direita de São João Baptista, apontando para o céu — é um fragmento de um quadro pintado por Leonardo da Vinci em 1513-16. Aí se condensa uma regra de ouro: vemos e comunicamos através da reconversão de elementos (palavras, imagens, pensamentos) herdados de outros que nos são próximos, mesmo à distância de séculos.
No meio de tudo isto, sinto-me compelido a expor uma pessoalíssima fraqueza: foi preciso esta polémica de coisa nenhuma para ficar a saber que os vigilantes da língua portuguesa também mandaram para o exílio o elegante “bâton” francês, optando pela orgulhosa escrita lusitana de “batom”. Decididamente, a cosmética fascina-me.
Da pintura de Leonardo Da Vinci ao cinema de Jean-Luc Godard:
as imagens questionam-nos, mesmo à distância de séculos

Weezer entre ecrãs

OK Human — assim se vai chamar o 14º álbum de estúdio dos americanos Weezer, a lançar no dia 29 de janeiro. O primeiro single, All My Favorite Songs, apresenta-se em teledisco de sugestiva actualidade simbólica: tudo está transfigurado, da visão ao tacto; tudo é ecrã, ou talvez não... Ou como o "social" se faz também de histórias, dramas e paródias de solidão.
 

terça-feira, janeiro 19, 2021

10 álbuns de 2020 [10]

Alisa Weilerstein

Há muito liberta dos efeitos da imagem de "menina-prodígio" (começou aos 4 anos), a violoncelista americana Alisa Weilerstein (n. 1982) protagoniza um processo de depuração que, agora, a conduziu, dir-se-ia que com desarmante naturalidade, às Seis Suites de Bach. De acordo com as suas próprias palavras, tratava-se de explorar as "infinitas possibilidades" das partituras de Bach, de alguma maneira preservando a singularidade de cada performance, porventura diferente da do dia anterior e da que possa acontecer num dos dias seguintes. Resultado: uma sensação de verdade primordial em que a racionalização da música e a contida sensualidade do toque se cruzam, contaminam e, por fim, festivamente se transfiguram uma na outra [video: Sarabande da Suite nº4 — concerto na Ópera de Frankfurt, 17 janeiro 2020]. Se quisermos escolher o disco "mais perfeito" de 2020 (e porque não?...), poderá ser este.



* * * * *

[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]

Jean-Pierre Bacri (1951-2021)

Libération (19 jan. 2021)

Actor de pose desencantada e nonchalante, observador clínico dos comportamentos menos gloriosos do ser humano, cristalino e sarcástico, Jean-Pierre Bacri foi também um modelo invulgar de argumentista, nomeadamente nos vários filmes que escreveu e protagonizou com Agnès Jaoui (sob a direcção de Jaoui), com destaque para O Gosto dos Outros (2000) [trailer].
A dupla Bacri/Jaoui escreveu também duas vezes para Alain Resnais (1922-2014): primeiro adaptando a peça Intimate Exchanges, de Alan Ayckbourn, para esse prodigioso díptico que é Smoking/No Smoking (1993); depois, criando as ambiências para a fascinante musicalidade de É Sempre a Mesma Cantiga (1997). A derradeira colaboração com Jaoui ocorreu em 2018, com Na Praça Pública, título porventura menor na trajectória de ambos mas, ainda assim, exemplar da sua fidelidade a um romanesco très français.
Jean-Pierre Bacri faleceu em Paris, no dia 18 de janeiro, vítima de cancro — contava 69 anos.


>>> Página de Jean-Pierre Bacri no site da Unifrance.

domingo, janeiro 17, 2021

Phil Spector (1939 - 2021)

Músico e produtor musical, criador de invulgar talento experimental, personalidade das mais influentes na história da pop, o americano Phil Spector faleceu no dia 16 de janeiro, em Stockton, Califórnia, de causas naturais — contava 81 anos.
Spector estava preso, a cumprir uma pena de 19 anos, aplicada em 2009, pelo assassinato da actriz Lana Clarkson, em 2003. Na altura do julgamento — tratado, em registo ficcional, numa produção da HBO, Phil Spector (2013), com Al Pacino, escrita e realizada por David Mamet —, estava à muito retirado. O essencial do seu trabalho, tanto em termos práticos como no plano mitológico, situa-se nas décadas de 1960/70. Eis alguns pontos de referência:
The Teddy Bears: fundado em 1958, foi o primeiro grupo de Spector (guitarra, voz), símbolo exemplar dos primórdios do universo pop — grande sucesso: To Know Him Is to Love Him;
Be My Baby: lançada em 1963, a canção do trio feminino The Ronettes, produzida por Spector, é um exemplo cristalino de cruzamento pop e R&B, constituindo também um dos emblemas mais perfeitos do seu lendário 'Wall of Sound' — uma prática de exponenciação das qualidades de uma canção através de sofisticadas manipulações de estúdio;
A Christmas Gift for You from Phil Spector: com data de 1963, ficou como um dos modelos exemplares da arte de Spector, sendo também um álbum central na discografia da editora Philles, por ele fundada, com Lester Sill, em 1960: entre os seus temas, incluem-se White Christmas, por Darlene Love, e Santa Clause Is Coming to Town, por The Crystals;
Let it Be: é uma das suas mais célebres proezas, e também das mais polémicas; em tempo de desmembramento dos Beatles, aquele que seria o seu derradeiro álbum de estúdio foi remisturado por Spector, suscitando várias discordâncias (sobretudo de Paul McCartney), mas é um facto que, durante décadas, foram as suas misturas que simbolizaram o capítulo final do quarteto de Liverpool — uma edição mais próxima das ideias originais da banda surgiu em 2003, com o título Let It Be... Naked.
Death of a Ladies' Man: Spector compôs e produziu o quinto álbum de estúdio de Leonard Cohen, lançado em 1977, por certo uma das suas contribuições mais singulares para quem, depois dos Beatles, ficou também ligado a diversos trabalhos de John Lennon, George Harrison, Yoko Ono e The Ramones. 

>>> To Know Him Is to Love Him, The Teddy Bears.

>>> Be My Baby, The Ronettes.
>>> Santa Clause Is Coming to Town, The Crystals.

>>> The Long and Winding Road: versão da edição original, remasterizada em 2009 + versão da edição Let It Be... Naked, remasterizada em 2013.

>>> Death of a Ladies' Man, Leonard Cohen.

>>> Trailer do telefilme Phil Spector.

>>> Obituário na NPR.
>>> Site oficial de Phil Spector.
>>> Tearing Down the Wall of Sound, livro de Mick Brown (Penguin).

sábado, janeiro 16, 2021

À procura de Frank Capra
— Washington, Trump & etc.

James Stewart em Peço a Palavra, de Frank Capra
— memórias da América de 1939

Ao vermos e revermos as imagens do dia 6 de janeiro, em Washington, importa não ficarmos pelos seus mais imediatos efeitos mediáticos: a invasão do Capitólio é, muito provavelmente, uma das mais extremas encarnações do niilismo contemporâneo este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 janeiro). 

As imagens da invasão do Capitólio, em Washington, são demasiado chocantes [Time]. Ainda sob os seus efeitos mais imediatos, será prudente não as encerrarmos numa qualquer “significação” determinista vocacionada para preencher os circuitos mais velozes do espaço mediático. Creio, em particular, que importa não ceder ao esquematismo moral e ao simplismo político segundo o qual, de repente, face à obscenidade do que vimos, sabemos “tudo” sobre as razões, determinações, modos de vida, ideias e sentimentos dos mais de 74 milhões de americanos que votaram em Donald Trump. 
Duas componentes da iconografia dos invasores são de uma brutalidade enigmática. A perturbação que arrastam apela, no mínimo, antes de qualquer reflexão, a um exercício tão didáctico quanto possível de descrição. 
[ 18/25 jan. ]
Assim, por um lado, vimos bandeiras da Confederação dos estados do Sul, obviamente saudosas de uma conjuntura — que desembocou na Guerra Civil, 1861-1865 — em que a organização política e as vivências sociais envolviam mecanismos específicos de repressão e, em particular, a escravatura dos negros. Ao mesmo tempo, por outro lado, alguns dos manifestantes exibiam sinais (peles de animais, cornos na cabeça, cara pintada) que provêm de um visual directa ou indirectamente ligado a marcas identitárias de tribos de índios. 
Entre o anacronismo político das bandeiras e a nostalgia figurativa dos falsos índios, desenha-se um misto de negação e absurdo. Em boa verdade, não parece fácil conciliar no mesmo discurso os valores do projecto político que a Confederação encarnou e a exaltação dos índios como símbolos de uma qualquer revolta próxima desses valores. 
Talvez que aquilo que vimos seja, entre outras coisas, um sintoma muito cru de uma sensibilidade niilista que está longe de ser um fenómeno “made in USA” — será mesmo, creio, transversal a muitas sociedades contemporâneas. A dificuldade de lidar com a sua existência começa no facto de tal sensibilidade se exprimir, não através de discursos de cariz político, mas de uma negação da própria pertinência dos gestos clássicos (entenda-se: democráticos) de intervenção política. Daí que este niilismo se afirme, cegamente, contra aquilo que designa como o “sistema”: o invasor do Capitólio que se senta e, em pose triunfante, coloca os pés em cima de uma secretária, é alguém que acredita que, desse modo, está a expor as contradições maléficas do “sistema”. 
Não podemos simplificar, claro. Nem transformar em anedota a inquietante irrisão que vimos, literalmente, em movimento. Até porque vale a pena não esquecer que, há poucos anos, o candidato Trump foi por muitos tratado como uma figura apenas anedótica. 
Acontece que, na sua contundência, as imagens devolvem-nos às evidências geladas do tempo presente, passando a pertencer a “um dia triste na história dos Estados Unidos da América”, como escreveu o cineasta Spike Lee no seu Instagram, lembrando que tudo aconteceu “no chamado berço da democracia.” São imagens que podem suscitar o confronto com outras imagens, por exemplo do cinema de Hollywood, em que vimos (e continuamos a poder ver) o Capitólio numa representação bem diferente. 
Penso no exemplo emblemático de Mr. Smith Goes to Washington (1939), de Frank Capra, entre nós conhecido por um título de óbvio simbolismo: Peço a Palavra. Nele se narra a odisseia de um jovem e ingénuo senador, interpretado pelo admirável James Stewart, confrontado com a perversa mecânica de diversos circuitos de mentira e corrupção. Com uma diferença ética que está longe de ser banal: o seu combate desenvolve-se a partir de uma crença radical na capacidade do sistema (sem aspas) lidar com as suas próprias convulsões internas. 
Escusado será dizer que a América (e o mundo) de 1939 não se repete neste nosso planeta “em rede” em que tudo comunica com tudo e, muitas vezes, nenhuma comunicação acontece. A herança de Capra não é a de um modelo fixo, congelado no tempo. Mas é, pelo menos, um património que nos convoca para a necessidade de pensarmos o que vemos para lá da aceleração do dia a dia mediático.

sexta-feira, janeiro 15, 2021

Lana Del Rey
na companhia dos lobos

O conselho clássico do poeta mantém-se: estranha-se e, depois, entranha-se... Assim é o novo teledisco de Lana Del Rey, Chemtrails Over The Country Club, tema-título do álbum agendado para 19 de março. Da iconografia clássica da América à calorosa companhia dos lobos, a música relança o mesmo magoado romantismo — vintage

quarta-feira, janeiro 13, 2021

Falas televisivas

RENÉ MAGRITTE
As Férias de Hegel
1958

* Questão a considerar: nos debates televisivos, porque razão, ou razões, os candidatos presidenciais, além de acelerarem a fala, tendem a aumentar os decibeis do seu débito, como se estivessem a dirigir-se a uma multidão? 

* A questão é tanto mais pertinente quanto essa opção pelo aumento da intensidade sonora contamina quase todas as situações em que se apresentam, mesmo quando estão face a um simples entrevistador: falam como se estivessem num dos extremos de um pavilhão desportivo, dirigindo-se a um interlocutor colocado no outro extremo.

* Síndrome do comício? Entendimento da actividade política como uma reprodução infinita de uma lógica comicieira? Em boa verdade, os candidatos presidenciais limitam-se a ilustrar uma regra triunfante na maior parte dos diálogos encenados em televisão, a começar, como é simples confirmar, pelos programas sobre futebol. Dir-se-ia que já ninguém acredita que o outro o esteja, realmente, a escutar. O que, em qualquer caso, não deixa de ser uma interessante questão política.

A IMAGEM: Jose Luis Magana, 2021

JOSE LUIS MAGANA
Manifestantes destroem equipamento de televisão
durante a invasão do Capitólio

Washington, 6 de janeiro de 2021
[ The Wall Street Journal ]

terça-feira, janeiro 12, 2021

Torre Bela, aqui e agora

Torre Bela (1975), filme de Thomas Harlan

As imagens da herdade de Torre Bela cruzam-se no nosso imaginário e na nossa imaginação: somos incautos viajantes no tempo, num ziguezague entre o actual massacre de 540 animais e as convulsões do Verão Quente de 1975 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 janeiro). 

A imagem possui aquele grão, irregular e frágil, de uma memória de várias décadas. O fotograma pertence a Torre Bela, documentário realizado pelo alemão Thomas Harlan, entre março e dezembro de 1975, testemunhando a ocupação da herdade ribatejana da Torre Bela pelos seus trabalhadores. Os protagonistas são um camponês que não aceita que o seu instrumento pessoal de trabalho possa ser encarado como sendo “da cooperativa” e Wilson Filipe, de alcunha Sabu, tentando demonstrar-lhe que estão todos a viver um “processo” capaz de pôr fim à “tua vida de escravo”.


São memórias históricas com o seu quê de assombramento, quanto mais não seja porque Torre Bela, exemplo admirável de um registo histórico a quente, contundente e contraditório, continua a ser um filme marginal no imaginário cinéfilo português — para lá das muitas projecções em “sessões especiais”, só em 2007 teve um breve período de exibição no circuito comercial. 
São também memórias que, recentemente, circularam como uma espécie de fantasma cultural, porventura impossível de reconhecer. Por duas razões: primeiro, porque os cenários de Torre Bela voltaram a ser objecto de exposição no espaço mediático, agora por causa de uma montaria que se traduziu no massacre de 540 animais; depois, porque Wilson Filipe faleceu na véspera de Natal, na Azambuja, contava 72 anos. 
Há uma lição amarga a pontuar tudo isto. Entenda-se: lição sobre a fragilidade da nossa cultura cinematográfica e a sua débil presença no imaginário social, muito aquém do domínio avassalador de outras formas de ficção (telenovela) e outros eventos colectivos (futebol). Acontece que Wilson Filipe é também um genuíno símbolo cinematográfico, no sentido em que foi no cinema, através do filme de Harlan, que a sua militância em Torre Bela, durante o nosso Verão Quente, encontrou a sua cristalização mitológica. 
Chegado aqui, o leitor mais precipitado, ou apenas menos paciente, está à beira de desistir, não podendo tolerar aquilo que lhe parece ser uma “santificação” de Wilson Filipe. E não o censuro por isso — a vitalidade da democracia nem sempre tem sabido evitar que pensemos o 25 de abril de 1974 a partir de dicotomias pueris, por vezes sem nos darmos conta que estamos a transmitir tal vício ideológico às novas gerações. 
O cinema português, também ele tantas vezes mal conhecido, gerou matérias que nos podem ajudar a lidar com tão complexa herança. Falo de quê? Pois bem, desse filme admirável que é Linha Vermelha (2012), de José Filipe Costa, precisamente sobre as memórias dos que, em 1975, viveram as convulsões de Torre Bela. Aliás, importa precisar: Linha Vermelha não é uma evocação “directa” desses factos, mas sim uma investigação sobre as condições materiais em que nasceu o filme Torre Bela. 
Dito de modo simples, inevitavelmente simplificador, Linha Vermelha segue uma lógica de fria demonstração: através da revisitação de imagens e sons de Torre Bela, compreendemos que todo o aparato político que se viveu na propriedade (incluindo uma “visita de apoio” de elementos do MFA) não pode ser dissociado de elaborados mecanismos de encenação, teatralização e manipulação. De tal modo que somos levados a reconhecer que, em determinadas circunstâncias, uma câmara de filmar (cinematográfica ou televisiva) pode funcionar menos como um instrumento de “registo” e mais como um “provocador” de acções. 
Quem nos conduz nessa descoberta das linguagens que envolvem imagens e sons? O próprio Wilson Filipe, entrevistado no filme de José Filipe Costa, recordando como viveu, encenou e, de alguma maneira, foi encenado nos cenários agitados de Torre Bela — ele que, sem ironia, confessa que chegou a alimentar a ideia de se tornar actor profissional. Agora, face à obscenidade das imagens de 540 animais mortos, não há soluções mágicas para lidar com tantas formas de desencanto. Na certeza de que o desencanto faz parte da demanda de felicidade.

Schwarzenegger vs. Trump

Das memórias do nazismo na Áustria, onde nasceu em 1947, ao modo como Donald Trump "enganou as pessoas com mentiras", Arnold Schwarzenegger veio assumir uma posição pública sobre a actual conjuntura política e moral nos EUA — ou como a mitologia de um ícone se pode transfigurar em urgência de reflexão e pensamento.

10 filmes de 2020 [9]

Aaron Sorkin

Em tempo de crescente formatação da produção americana com super-heróis, Aaron Sorkin é um autor — argumentista & realizador — que nos mantém ligados ao grande património narrativo de Hollywood, em particular sabendo articular as singularidades individuais com as convulsões do colectivo. Assim é esta evocação do julgamento dos activistas presos na sequência dos violentos confrontos com a polícia, durante a Convenção Nacional Democrata de 1968, em Chicago. Na senda de mestres como Frank Capra ou Sidney Lumet, Sorkin continua a ser um dos mais sofisticados analistas das clivagens entre a história dos EUA e a América mitológica.



* * * * *

[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ] [ 5. American Utopia ]

segunda-feira, janeiro 11, 2021

10 álbuns de 2020 [9]

The Rolling Stones

Pois... Não é um álbum de 2020. Surgiu em 1973, um ano depois do monumental Exile on Main St., sendo "musicalmente correcto" lembrar que com ele começou a "decadência" dos Rolling Stones. Pois... Digamos que podemos tentar ver, aliás, escutar para lá do espartilho da(s) história(s) e desfrutar esta edição DeLuxe, remisturada por Giles Martin. Como se a energia do rock'n'roll fosse uma causa sem tempo, nem templo, apenas fiel à electricidade de palavras, guitarras e corpos. Com preciosidades como Coming Down Again, Angie e Winter [video], sem esquecer o bónus de um concerto de 1973, em Bruxelas.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]

domingo, janeiro 10, 2021

Memórias de El-Rei D. Sebastião
— João Cutileiro e Fernando Lopes

Fotograma de O Encoberto (1975)

O escultor João Cutileiro faleceu no dia 5 de janeiro, contava 83 anos. Este texto evoca uma das suas obras através de memórias da curta-metragem que Fernando Lopes lhe dedicou — foi publicado no Diário de Notícias (6 janeiro).

Deformação profissional, reconheço, e por isso solicito a tolerância do leitor: ao saber do falecimento de João Cutileiro, não pude deixar de pensar, de imediato, na curta-metragem O Encoberto (1975), pequena maravilha de 10 minutos sobre uma das suas criações mais emblemáticas, a estátua de El-Rei D. Sebastião, há quase meio século colocada no Largo Gil Eanes, em Lagos
João Cutileiro
Por razões afectivas, é verdade: são muitas, e muito calorosas, as memórias que me ligam ao realizador do filme, Fernando Lopes, e ao seu director de fotografia, Manuel Costa e Silva. Mas também, se me permitem uma breve reflexão, porque O Encoberto condensa uma interrogação muito básica, tão cinematográfica quanto televisiva. A saber: como inscrever a obra artística de alguém em imagens e sons? 
Conhecemos os dois clichés dominantes. O primeiro é a entrevista clássica: mostra-se o autor, de frente, e lançam-se perguntas — e fazemos votos para que entrevistador e entrevistado estejam à altura do teatro que partilham connosco. O segundo, favorecido pelo poder dominante das linguagens televisivas, reproduz infinitamente as regras comuns da reportagem: alguém se coloca em frente à obra comentada, aponta-a com os seus dedos, e apresenta um discurso mais ou menos especializado. 
Não estou a generalizar, entenda-se. Sempre existiram formas brilhantes de exposição decorrentes de tais soluções narrativas. Se, apesar de tudo, em muitos casos, podemos falar de clichés, isso decorre de um vício misturado de candura: não basta, de facto, debitar um texto académico, vagamente enciclopédico, para construir um olhar minimamente interessante sobre a obra comentada e o contexto em que foi colocada. 
Ora, justamente, Fernando Lopes filmou a colocação da estátua de D. Sebastião num espaço da cidade de Lagos como quem dá a ver a própria raiz da intervenção artística: criar um objecto singular, libertá-lo da privacidade da criação e expô-lo aos olhos do mundo. 
Fernando Lopes
Seguimos, assim, o transporte das suas peças, observamos a força decisiva do guindaste, descobrimos o cuidado e o rigor das mãos humanas… Acontece de noite para, no final, já com luz de dia, vermos o rei a ser regado de modo a ser expurgado da poeira acumulada com as tarefas de, literalmente, lhe dar corpo. 
Dir-se-ia uma metáfora do nosso magoado destino. Até porque, vale a pena recordar, a estátua, inaugurada em 1973, gerou algumas atribulações polémicas que, ironicamente ou não, espalharam o seu ruído antes e depois da data emblemática de 25 de abril de 1974 (o filme teve a sua estreia em Lisboa, no cinema Quarteto, a 9 de abril de 1977, como complemento de Os Demónios de Alcácer-Quibir, de José Fonseca e Costa). 
Assim, o rei começa por surgir-nos como um amontoado de “pedras” (Cutileiro foi um sofisticado artesão dos mármores) que parecem definir um puzzle sem solução. Por outro lado, a pouco e pouco, com a paciência da montagem cinematográfica, de que Fernando Lopes foi um mestre absoluto, vemos nascer uma figura enigmática e frágil, dir-se-ia alheada das sombras da batalha de Alcácer-Quibir, esse ponto de fuga histórico que define a utopia redentora de D. Sebastião, e também a sua mitologia fúnebre. 
Que fazer com as nossas memórias? Olhamos a perversa neutralidade do olhar do rei e, perguntamo-nos se, realmente, ele tem mesmo um rosto de menino. Ou se somos nós, obstinados idealistas, que nele projectamos as razões irracionais do nosso infantilismo histórico.

>>> Obituário de João Cutileiro.

sexta-feira, janeiro 08, 2021

Manoel de Oliveira, fotógrafo

Maria Isabel Carvalhais
fotografada por Manoel de Oliveira (c. 1939):
como se as imagens pertencessem a filmes ausentes

Graças ao trabalho da Casa do Cinema Manoel de Oliveira podemos, agora, descobrir mais uma dimensão fascinante do seu trabalho: para o autor de Acto da Primavera, a fotografia foi também um instrumento de pesquisa e experimentação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 dezembro). 

Contradições da nossa vida cultural: o prodigioso filme Vitalina Varela, de Pedro Costa, esteve longe de ser um sucesso comercial (foi visto por pouco mais de cinco mil espectadores); agora, conhecida a notícia da sua candidatura aos Oscars, para uma eventual nomeação na categoria de Melhor Filme Internacional, os circuitos “sociais” agitam-se em celebrações de despudorado nacionalismo… 
Algo semelhante se poderá dizer da percepção dominante da obra de Manoel de Oliveira (1908-2015). Durante décadas, vozes irresponsáveis e demagógicas denegriram o seu trabalho (com filmes “melhores” ou “piores”, não é isso que está em causa). O certo é que, depois do seu falecimento, passou a ser chique chamar-lhe “mestre”… 
Na verdade, não está em causa, como nunca esteve, o juízo de valor que cada cabeça pensante possa formular sobre qualquer objecto cinematográfico (português ou não). Acontece que atribulações pueris deste teor têm como efeito principal a promoção do desconhecimento da arte que temos e, mais do que isso, do modo como nela se projecta o que somos, imaginamos ou desejaríamos ser. 
Neste tão difícil ano de 2020, podemos eleger como acontecimento fulcral da nossa vida cultural o imaculado labor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira - Fundação de Serralves, dirigida por António Preto. A exposição “Manoel de Oliveira, Fotógrafo” (patente em Serralves até 18 de abril de 2021) deu origem a um maravilhoso catálogo, com o mesmo título, peça a partir de agora fundamental para o estudo e compreensão da obra do autor de Acto da Primavera (1963), Benilde ou a Virgem Mãe (1975) e O Quinto Império - Ontem como Hoje (2004). 
Trata-se, em grande parte, da descoberta de mais uma componente criativa de Oliveira. As suas fotografias, “produzidas entre o final dos anos 1930 e meados dos anos 1950” são, na maioria, inéditas e, como sublinha António Preto, dão conta de um “interesse síncrono com a sua actividade cinematográfica”. 
Vale a pena lembrar que aquele é um período de actividade cinematográfica algo limitada (no número de títulos produzidos), mas longe de ser indiferente. Nele encontramos apenas uma longa-metragem, Aniki-Bóbó (1942), e várias curtas. Ora, justamente, esse é também um período em que Oliveira se interessa pela técnica das imagens cinematográficas, a ponto de assumir a direcção fotográfica de filmes como O Pintor e a Cidade (1956) e O Pão (1959). 
O que encontramos nas fotografias de Oliveira tem tanto de literal como de misterioso, a começar, claro, pelos delicados registos de sua mulher, Maria Isabel Carvalhais: são verdadeiros “fragmentos de um discurso amoroso”, se nos é permitido roubar a expressão a Roland Barthes. Vemos coisas naturais e evidentes — as copas das árvores, as pedras de um muro, algumas figuras humanas em contra-luz, uma estátua, o grande plano da chama de uma vela, etc. —, sabemos o que estamos a ver e, ao mesmo tempo, sentimos que os efeitos de reconhecimento são acompanhados por uma estranheza envolvente, eminentemente sensual. Como se, ao contrário do que diz o senso comum, a pulsão realista nos colocasse em sereno contacto com o mundo dos fantasmas. 
Num magnífico texto do catálogo (“Manoel de Oliveira, fotógrafo?”), Bernardo Pinto de Almeida avança com uma luminosa hipótese para explicar esse fascínio das imagens. Dir-se-ia que cada fotografia de Oliveira tem qualquer coisa de “fotogramático”, quer dizer, pertence a uma sequência de um filme ausente, como se fosse um fotograma de uma história que ficou por contar. 
Um dos efeitos principais de tudo isto é a sensação de intimismo com que as fotografias de Oliveira nos envolvem. Podemos, aliás, arriscar dizer que tal sensação projecta o olhar numa dimensão que, não sendo estranha à vibração dos corpos, nos coloca em contacto com algo a que, com contido atrevimento, podemos dar um nome mágico: a alma. Sem esquecer que, no filme Francisca (1981), a personagem de Fanny Owen nos deixou um aviso pedagógico: “A alma é um vício.”