sábado, janeiro 31, 2015

Kanye West: uma canção para "Nori"

A. O som já era conhecido desde os primeiros dias de 2015, mas agora tem teledisco: Only One é a primeira canção de Kanye West desde o lançamento do álbum Yeezus (2013) — cantada na perspectiva da sua falecida mãe, Donda West, trata-se de um tributo a North "Nori" West, filha de Kanye e Kim Kardashian.

B. Com a participação de Paul McCartney (presume-se que no órgão), anuncia-se como o primeiro sinal de um trabalho comum em fase de desenvolvimento (segundo as notícias, Piss on My Grave será outro dos seus temas).

C. Para além da serena beleza de letra e música, Spike Jonze realizou para Only One um daqueles telediscos que, habitualmente, levam os mais cínicos a dizer que é "fácil" de fazer... Evitemos tal demagogia e reparemos apenas na sábia adequação das imagens ao espírito da canção, além do mais reencontrando uma depuração eminentemente cinematográfica, alheia a qualquer artifício pomposo de efeitos especiais.

O "sniper" de Clint Eastwood (2/2)

Bradley Cooper e Clint Eastwood
De que falamos quando falamos de uma situação de guerra? O novo filme de Clint Eastwood surge na encruzilhada dessa pergunta, da sua importância e também dos seus equívocos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'Em guerra com Clint Eastwood'.

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Uma vez que este texto se coloca sob o signo de um filme sobre uma situação de guerra — Sniper Americano, de Clint Eastwood —, começo por avisar que a disposição das minhas ideias no terreno corre o risco de ofender amigos e inimigos. Devo, por isso, desde já, pedir desculpa aos primeiros.
Confunde-me o modo como Sniper Americano tem suscitado as mais inusitadas considerações ideológicas (que, em qualquer caso, não podem ser reduzidas a um discurso unívoco). Não é uma questão portuguesa. É mesmo, sobretudo, um fenómeno americano, com o filme a desencadear paixões contraditórias do outro lado do Atlântico, em muitos casos favorecendo uma equação maniqueísta: um filme que coloca em cena alguém (um “sniper”) que, por definição, agride outros seres humanos só poderá ser uma “consagração” cega da sua actividade...
Confesso o mesmo tipo de perplexidade que experimento face ao dispositivo de pensamento em torno do atentado contra o Charlie Hebdo. A saber: não iremos restringir o quadro legal das nossas liberdades... Tudo bem. Mas até que ponto a força simbólica das nossas convicções consegue desviar as balas das Kalashnikovs e compreender a extrema complexidade histórica, cultural e política do seu pano de fundo?
Pensava eu que uma preciosa lição da semiologia dos anos 60 aplicada ao cinema (cf. Christian Metz) constituía saber adquirido. Ou seja: há uma diferença — narrativa, estrutural e simbólica — entre o discurso de uma personagem e o discurso do filme em que surge.
Em Apocalypse Now (1979), por exemplo, a personagem de Martin Sheen está enraizada numa lógica militar rigorosamente idêntica à do protagonista de Sniper Americano: destruir o outro que o assombra. No entanto, ainda estou para ler alguma condenação de Francis Ford Coppola por ter encenado uma personagem cujo comportamento decorre de uma missão específica, concreta e iniludível, de assassinato desse outro (“com absoluta devastação”, como se diz nos diálogos).
Não há pacifismo simples. E nem sequer estou a referir-me à realidade, nua e crua, da realpolitik cujas derivações, transparentes ou enigmáticas, não cabem no espaço destas linhas. Falo de cinema e também, necessariamente, de televisão. E espanto-me com o facto de Hollywood — cuja riqueza artística me apaixona — continuar a gerar alguns filmes de “super-heróis”, totalmente maniqueístas no plano ideológico, assustadoramente estúpidos na sua dramaturgia, filmes tantas vezes ignorados porque são “para miúdos”, ao mesmo tempo que o problema parece estar na inteligência cinematográfica e no difícil humanismo de um senhor chamado... Clint Eastwood!
Tudo isto, convém relembrar, enquanto vivemos rodeados pela vergonha humana do Big Brother e seus derivados. Compreendo, sem qualquer acinte, que se possa não partilhar a visão de Eastwood. Mas queria menos idealismo e mais política face à nossa miséria audiovisual.

sexta-feira, janeiro 30, 2015

Os singles de Monk

E no princípio era a Blue Note... Os primeiros anos de actividade do pianista Thelonious Monk (1917-1982) são indissociáveis dessa etiqueta que estava também a viver os tempos iniciais (a sua fundação ocorreu em 1939) de uma história gloriosa. A reunião dos singles de Monk em 'Round Midnight: The Complete Blue Note Singles (1947-1952) constitui, por isso, um maravilhoso acontecimento, capaz de nos devolver às atmosferas pioneiras do bebop.
Monk assinava, assim, os seus primeiros registos, depois de um período inicial em que integrara o quarteto do saxofonista Coleman Hawkins. Dispersos por outras antologias, nomeadamente Genius of Modern Music, Vol. 1 (1952), os temas aqui apresentados foram gravados em seis sessões, realizadas entre Outubro de 1947 e Maio de 1952. Incluindo algumas das suas composições mais célebres (Evidence, Ruby, My Dear, Well, You Needn't, etc.), surgem num duplo CD, por ordem cronológica, em alguns casos com takes alternativas. Max Roach (bateria), Milt Jackson (vibrafone) e Lou Donaldson (saxofone) são algumas das excelentes companhias de Monk.

>>> Embora com chancela da editora Riverside, pela qual Monk assinaria depois de ter estado na Blue Note, este 'Round Midnight é um standard composto na época a que pertencem os temas agora editados.


>>> Página de Thelonious Monk no site da Blue Note.

Cinema e Holocausto (1/2)

A Segunda Guerra Mundial terminou há 70 anos: o cinema continua a ser uma paisagem fundamental para lidar com as suas memórias e, em particular, com as imagens dos campos de concentração construídos pelos nazis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Janeiro), com o título 'Três filmes para repensar as memórias do Holocausto'.

Tendo o cinema um papel vital na nossa relação com os acontecimentos mais trágicos do séc. XX, eis um acontecimento exemplar: o lançamento simultâneo de três filmes sobre a Solução Final montada pela máquina de guerra nazi [a 20 de Janeiro de 1942, na Conferência de Wannsee]. Organizado pela distribuidora Midas Filmes, o evento enquadra-se no ano em que se comemoram os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, assinalando, em particular, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (27 Janeiro), promovido pelas Nações Unidas.
Embora genericamente ligados aos modelos do documentário, estes três filmes — O Último dos Injustos, Claude Lanzmann, A Noite Cairá, de André Singer, e O Homem Decente, de Vanessa Lapa — surgem num contexto em que a revisitação de temas e histórias do segundo conflito mundial voltou a adquirir um lugar importante na dinâmica das mais diversas cinematografias. O novo filme dirigido por Angelina Jolie, Invencível, aí está como um exemplo esclarecedor. The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros, interpretado e dirigido por George Clooney, poderá ser outro caso significativo, a par de Lore, de Cate Shortland, ou As Flores da Guerra, de Zhang Yimou. Para além das suas diferentes raízes culturais (e dos contrastes dos respectivos contextos de produção), todos decorrem de uma mesma vontade de superar as regras mais tradicionais do “filme-de-guerra”.
Entre as novidades, A Noite Cairá, de André Singer, envolve imagens de perturbante intensidade, provenientes do trabalho dos operadores cinematográficos dos aliados que filmaram a libertação de vários campos de concentração, incluindo Bergen-Belsen e Auschwitz. Na altura, apesar de tratadas pela equipa do produtor Sidney Bernstein (que chegou a ter Alfred Hitchcock como supervisor de montagem), tais imagens acabariam por não ser divulgadas, já que o receio de criar um efeito colectivo de culpa fez prevalecer a ideia de que era prioritário garantir a colaboração do povo alemão para o esforço de reconstrução do pós-guerra.
Há algo de semelhante no filme de Claude Lanzmann, O Último dos Injustos (estreado, extra-competição, no Festival de Cannes de 2013). Com uma importante diferença conceptual que, aliás, já marcava Shoah (1985) em que o realizador reuniu uma monumental galeria de testemunhos sobre o Holocausto. De facto, ele não trabalha a partir de imagens de arquivo, mas sim de declarações recolhidas junto de pessoas que, de uma maneira ou de outra, viveram esse processo histórico. Assim, Lanzmann recupera uma entrevista realizada em 1975 com Benjamin Murmelstein, último presidente do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt (a “cidade” edificada por Adolf Hitler para tentar mascarar a agressão que estava a ser perpetrada contra o povo judeu). Combinando os diálogos com Murmelstein e o retorno, em 2012, aos lugares onde existiram os campos de concentração, O Último dos Injustos é, de uma só vez, uma antologia de memórias e uma problematização das suas condições práticas, narrativas e simbólicas.
Mais tradicional na sua estrutura, o terceiro filme em estreia — O Homem Decente, de Vanessa Lapa — faz o retrato de um dos cúmplices directos de Hitler, Heinrich Himmler, principal arquitecto do Holocausto. Com a particularidade de, neste caso, as palavras em off provirem de documentos (cartas, diários, etc.) encontrados, em 1945, na casa do próprio Himmler. A exibição destes três filmes é acompanhada da reposição, em cópia digital restaurada, de um dos primeiros títulos a encenar a ameaça hitleriana: O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin.

Ver + ouvir:
Purity Ring, Push Pull



Em contagem decrescente para a chegada de um novo álbum dos Purity Ring aqui fica mais um aperitivo.

Novas edições:
Mark Ronson


Será Uptown Funk o Get Lucky de 2015?… É cedo para dizer. E, na verdade, o single deu sinais de vida ainda em 2014 e poderá estar “gasto” quando chegar o tempo quente e a estação que habitualmente escolhe os “êxitos” globais do ano… O impacte tremendo de uma canção de alma pop e sangue funk, contando com o protagonismo vocal de Bruno Mars (para quem o verdadeiro frontman deste disco já trabalhou como produtor), foi contudo o melhor cartão de visita para Uptown Special, álbum novo de Mark Ronson talhado a rigor com a construção de um possível blockbuster na mira…

Podem ler aqui o texto completo na Máquina de Escrever

Sound + Vision 10 anos
Memórias de arquivo (12)




Bola de Berlim 4
(15 de fevereiro de 2007)

A foto que acompanha este post (que pode ser, portanto, entendido como uma 'Bola com Creme') poderia ter por título Berlin Alexandreplatz 07. No ano em que um dos lançamentos em DVD mais visíveis em plena Berlinale não é mais que o histórico Berlin Alexanderplatz, de 1980, de Rainer Werner Fassbinder, (edição Arthaus, numa versão apenas para consumo interno, ou seja, em alemão, sem legendas), a célebre praça "central" da velha Berlim Leste (em franco processo de revolução nas formas e ofertas) foi um dos pólos do festival. O recentemente inaugurado cinema Cubix (da rede Cinestar, cujo multiplex na Praça Sony, no coração da Berlinale, foi outro dos centros mais agitados de exibições públicas e privadas) acolheu sessões diárias nas suas duas maiores salas, cada qual a fazer corar de vergonha o melhor da actual oferta lisboeta em dimensão (do ecrã e plateia), conforto, som, acolhimento, bares... Enfim, faz uma Berlinale quem pode...

A imagem mostra o foyer do andar superior do Cinestar Cubix, frente à sala 9. Lá fora, ao frio, a praça, a estação de S-Bahn (de Alexandre Platz), os ecos da velha Berlim Leste encontrados minutos antes, num café, na expressão vazia de alguns idosos, certamente clientes antigos dos cafés daquela praça, mas sem a cor ou a vida dos seus conterrâneos, da mesma idade, algumas ruas mais a oeste... O muro desapareceu, mas deixou marcas.

Para ler: os livros e os programas de televisão

Quais serão os motivos que fazem com que os programas televisivos sobre livros não sejam mais vistos. O problema está no tema. Ou nos programas. No Guardian surgiu uma reflexão sobre o assunto.

Podem ler aqui.

O "sniper" de Clint Eastwood (1/2)

De que falamos quando falamos de uma situação de guerra? O novo filme de Clint Eastwood surge na encruzilhada dessa pergunta, da sua importância e também dos seus equívocos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro), com o título 'A ideologia tem as costas largas'.

A discussão “ideológica” em torno do filme Sniper Americano corre o risco de ser tão simplista como a agitação que acompanhou os derradeiros filmes de Alfred Hitchcock, em particular Cortina Rasgada (1966), um thriller passado na República Democrática da Alemanha. Ao fazer um retrato não muito simpático da polícia política daquele estado comunista, Hitchcock daria provas de escandalosa falta de abertura... Quarenta anos depois, quando os alemães fizeram um contundente filme de denúncia dessa mesma polícia (As Vidas dos Outros, 2006), os vigilantes culturais bateram palmas, comovidos. Pois...
Agora, quando lemos certas considerações sobre Clint Eastwood, deparamos com a mesma singela doença ideológica: para muita boa gente, obviamente bem intencionada, um filme torna-se político, não porque envolva a responsabilidade de um criador face ao mundo, mas quando é possível colar algum rótulo ideológico à acção do seu protagonista.
Não se trata de dizer que Eastwood não é eminentemente político. Quem o não é? Acontece que as questões de resistência individual, da solidão dessa resistência e da angústia de ter um lugar onde seja possível regressar, tão importantes em Sniper Americano, são exactamente as mesmas que atravessavam, por exemplo, um filme como Million Dollar Baby (2004), assinado pelo mesmíssimo Eastwood.
O mais triste desta anedótica politização do cinema é que, através dela, se passa ao lado das admiráveis nuances do trabalho de Eastwood, exemplarmente condensadas na delicada e convulsiva interpretação de Bradley Cooper. Vivemos num mundo que todos os dias aceita, passivamente, a vergonha humana (e política!) da reality TV. Mas basta um homem de cinema dar provas de inteligência e subtileza para ser apontado como um perigoso suspeito.

quinta-feira, janeiro 29, 2015

Três memórias de Joe Cocker (3)

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Será consensual dizer-se que, mesmo através de registos competentes e sofisticados, a fase final da discografia de Joe Cocker nunca terá atingido a energia da sua primeira década, pré e pós-Woodstock. Com uma excepção chamada Hymn for My Soul, opus 20, editado em 2007. A 18 de Maio desse ano (dois dias antes de completar 63 anos), Cocker esteve na BBC2, no programa Later... with Jools Holland — com o próprio Holland ao piano, esta é uma performance exemplar, em que a suavidade da nostalgia não exclui as arestas de um rock genuíno.

quarta-feira, janeiro 28, 2015

Ser ou não ser Charlie não é simples

VENT D'EST (1970)
Talvez seja importante, porque salutar, não confundirmos a expressão "Je suis Charlie" com uma espécie de gloriosa conjugação de todas as ideias de liberdade sobre todas as conjunturas democráticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro).

O ataque à redacção do Charlie Hebdo, perpetrado por radicais islamistas, foi um crime hediondo. Aliás, é um crime hediondo — os seus ecos lançam perturbantes questões no nosso presente, marcando as formas de pensamento e acção para o futuro.
A rápida reacção contra o horror do terrorismo — condensada na frase “Je suis Charlie” — gerou impressionantes eventos colectivos. Em todo o caso, começando a revelar fissuras que, de alguma maneira, já estavam anunciadas na sua formulação: como sustentar o colectivo a partir do “eu” (“je”) da frase militante?
Não é simples lidar com tal contradição, até porque, muitas vezes, a informação democrática acolheu um perverso efeito ditatorial: tudo aquilo que possa suscitar qualquer dúvida sobre as linguagens mobilizadas (incluindo, claro, este texto) corre o risco de ser automaticamente rotulado de comportamento cúmplice dos terroristas.
Acontece que o caso Charlie Hebdo nos relembra que a crença corrente nas virtudes da globalização não pode ser confundida com um milagre automático, apaziguador e redentor de todas as formas de comunicação humana. Verificamos mesmo que a circulação universal das imagens, ainda que sustentada pela fascinante ubiquidade da Internet, não funciona como mecanismo produtor de intocáveis equilíbrios democráticos.
Ao contrário do que sustentam os discursos esquerdistas (que, com impressionante facilidade, contaminam muitos dispositivos de informação televisiva), colocar estas dúvidas não é o mesmo que atenuar, muito menos justificar, a cegueira civilizacional do acto terrorista contra o Charlie Hebdo. São dúvidas que se enraízam no reconhecimento incómodo de que não há nada de universal nos modos de produção, circulação, entendimento, significação e simbologia das imagens.
Uma coisa é defendermos o direito inalienável dos criadores do Charlie Hebdo conceberem e publicarem as suas imagens. Outra coisa, bem diferente, consiste em tentar mostrar alguma disponibilidade filosófica e moral para reconhecer que existem conjunturas ideológicas (por vezes, também religiosas) que lidam de forma radicalmente diferente com o universo plural das imagens.
Para o “Charlie” que somos, os sistemas de imagens (incluindo o que sustenta a degradação humana do Big Brother televisivo, inequivocamente condenada pelas nossas leis constitucionais) podem e devem existir num espaço aberto. O certo é que há outras paisagens figurativas em que, não a imagem, mas a sua ausência, pode ser um valor crucial de união afectiva.
Num velho filme sobre convulsões políticas (Vent d’Est, 1970), Jean-Luc Godard aplicava a dupla significação da palavra francesa “juste” (“justo” e “apenas”), para lembrar que uma imagem não é um objecto “justo”, é “apenas” uma imagem (ce n’est pas une image juste, c’est juste une image). Essa dicotomia continua a assombrar-nos: uma imagem não é um instrumento definitivo de nenhuma lei universal.

terça-feira, janeiro 27, 2015

Clarence Penn revisita Monk

Com o seu quarteto, o baterista Clarence Penn revisita alguns temas emblemáticos de Thelonious Monk num álbum de requintada depuração — Monk: The Lost Files é a prova muito real de como clássico e moderno são apenas duas formas cúmplices de escolher o mesmo grau de exigência.

Strindberg + Ullmann + Chastain (1/2)

A peça Miss Julie, símbolo do naturalismo teatral, reaparece em cinema através de uma realização da norueguesa Liv Ullmann, com uma composição excepcional de Jessica Chastain — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Janeiro), com o título 'Liv Ullmann recupera texto “maldito” de Strindberg'.

A descoberta de um filme como Miss Julie, realizado pela norueguesa Liv Ullmann, coloca-nos em contacto com uma frondosa herança teatral. De facto, a adaptação da peça homónima do sueco August Strindberg (1849-1912) actualiza as perturbantes intensidades de um texto que todas as histórias de arte reconhecem como fundamental para o desenvolvimento do teatro no séc. XX.
No plano meramente factual, estamos perante uma situação que começa por se apresentar numa desarmante simplicidade. Quase tudo acontece na grande cozinha da propriedade de um aristocrata irlandês. Em cena está um jogo perverso de ambiguidades e assombramentos: Julie, a filha do proprietário, seduz o criado Jean, enquanto Christine, uma criada, noiva de Jean, vai sendo reduzida à condição de espectadora acidental...
August Strindberg
A peça é muitas vezes interpretada como um reflexo das convulsões da vida conjugal do autor. Quando escreveu Miss Julie, em 1888, Strindberg estava à beira do seu primeiro divórcio (viria a casar-se mais duas vezes), de alguma maneira reflectindo os enigmas de uma condição feminina que ele via marcada pelo estigma das hierarquias sociais — a esse propósito, convém lembrar que Siri von Essen, primeira mulher de Strindberg, era uma actriz de origens aristocratas, sendo ele filho de uma criada.
Seja como for, a peça inscreveu-se na história das formas teatrais como um triunfo pleno do naturalismo, ilustrando a ligação que Strindberg mantinha com as ideias do francês Émile Zola (cujo manifesto em defesa do “naturalismo no teatro” fora redigido em 1881). No célebre prefácio a Miss Julie, o autor define assim o tratamento das relações que coloca em cena: “Sendo figuras modernas, a viver um tempo de transição, sem qualquer dúvida mais agitado e delirante que o período anterior, as minhas personagens vacilam, desintegram-se, são uma mistura do velho e do novo...”
Foi a própria Liv Ullmann a assinar a adaptação de Miss Julie para cinema, transferindo a acção da Suécia para a Irlanda. Porventura chocante para alguns puristas, a mudança parece corresponder apenas à necessidade de satisfazer a lógica de uma produção falada em inglês (resultante da colaboração de entidades norueguesas, inglesas, francesas e irlandesas, com distribuição internacional americana) — na prática, o filme preserva o mais possível o texto original e a organização interna da peça.
Aliás, Miss Julie resulta do trabalho de uma equipa em que se cruzam muitas nacionalidades. Julie é interpretada pela americana Jessica Chastain, por certo um dos talentos mais versáteis do cinema contemporâneo — vimo-la, em 2014, em Interstellar, de Christopher Nolan, e O Desaparecimento de Eleanor Rigby, de Ned Benson, integrando também o elenco de Um Ano Muito Violento, de J. C. Chandor, filme que, segundo alguns analistas americanos, lhe deverá trazer mais uma nomeação para um Óscar de interpretação [nomeação não confirmada; estreia portuguesa: 5 de Fevereiro]. As personagens de Jean e Christine estão entregues, respectivamente, a um irlandês, Colin Farrell, e uma inglesa, Samantha Morton. No capítulo técnico, a direcção fotográfica pertence ao russo Mikhail Krichman, colaborador regular de Andrey Zvyagintsev (O Regresso, Elena), enquanto a montagem tem assinatura do polaco Michal Leszczylowski, que em 1986 trabalhou no derradeiro filme de Andrey Tarkovski (O Sacrifício).
As convulsões vividas por Julie e Jean — aliadas a uma pulsão suicida que, lentamente, se vai insinuando —, conferem a Miss Julie um poder de perturbação que não se dissipou. A esse propósito, convém não esquecer que o texto de Strindberg foi durante longos anos considerado “maldito”: só se estreou em Londres em 1935, tendo permanecido inédito nos palcos de Nova Iorque até 1956.
Para Liv Ullmann, a abordagem de Miss Julie envolve também modelos de representação que, directa ou indirectamente, a reaproximam da filmografia do mestre sueco Ingmar Bergman (1918-2007), cineasta que nunca foi estranho às formas do universo teatral. Em boa verdade, desde A Máscara (1966) até Saraband (2003), ela foi uma das figuras emblemáticas do universo bergmaniano, tendo também dirigido um filme, Infidelidade (2000), escrito pelo próprio Bergman. Curiosamente, foi um Miss Julie de produção sueca que desempenhou um papel decisivo no conhecimento internacional da peça de Strindberg — dirigido por Alf Sjöberg, o filme arrebatou o Grande Prémio do Festival de Cannes de 1951.

segunda-feira, janeiro 26, 2015

Glamour, anos 30

Recordando a idade de ouro do cinema americano, Hollywood in the 30s é um álbum em que a evocação cinéfila começa através de imagens desenhadas por Robert Nippoldt — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Janeiro), com o título 'Hollywood e o seu “glamour” através do desenho'.

De uma maneira ou de outra, o glamour clássico de Hollywood — ou de Hollywood na sua idade clássica — faz parte da mais universal iconografia cinéfila. Por vezes, muito por acção de um jornalismo sem memória, o seu património surge reduzido a uma colecção de imagens banalmente publicitárias, sem espessura humana, desligadas de qualquer inscrição histórica ou ressonância simbólica. O primeiro e essencial mérito de um livro como Hollywood in the 30s (com edição original em alemão, já disponível em versões inglesa, espanhola e francesa) consiste em contrariar tais facilidades. E através de uma proposta que, não sendo absolutamente original, envolve uma opção pouco comum: a de figurar a imagética de Hollywood, não através de fotografias, mas de desenhos.
As ilustrações têm assinatura de Robert Nippoldt, desenhador alemão que ganhou fama internacional graças a um álbum de 2007 com características semelhantes, dedicado ao jazz da década de 1920, em Nova Iorque (Jazz im New York der Wilden Zwanziger). Através de um traço muito pessoal, combinando o realismo figurativo com uma capacidade de síntese que faz lembrar alguns universos da banda desenhada, Nippoldt celebra os mais emblemáticos actores dos anos 30 — Greta Garbo, Errol Flynn, Jean Harlow, Marlene Dietrich, Clark Gable, etc. —, ao mesmo tempo que evoca figuras marcantes das matrizes de espectáculo segundo Hollywood, como o realizador George Cukor, o director de fotografia William H. Daniels ou o compositor Erich Wolfgang Korngold.
Seja como for, este não é um álbum de ilustrações reunidas por razões meramente “decorativas”. O texto de Daniel Kothenschulte possui o mérito essencial de não escamotear a história em nome do glamour — aliás, como compreender o glamour sem ter em conta a pluralidade das suas configurações históricas?
Trata-se de evocar uma época de fascinantes atribulações, desde a consolidação do cinema sonoro até ao triunfo do Technicolor, em 1939, com E Tudo o Vento Levou. Afinal de contas, foi durante esses anos que Hollywood definiu um sistema de valores narrativos e simbólicos que continuam a sustentar uma ideia forte de espectáculo — e sem super-heróis a destruir cenários digitais...

Robert Nippoldt
Daniel Kothenschulte
Ed. Taschen

Na morte de Anita Ekberg

Com a morte de Anita Ekberg, desapareceu uma das figuras mais míticas do imaginário "felliniano" — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (12 Janeiro), com o título 'A Miss Suécia que foi musa de Fellini'.

Se há figuras que conquistam um lugar na mitologia cinematográfica apenas através de uma personagem, Anita Ekberg será, por certo, um dos exemplos mais eloquentes. Graças ao papel de uma actriz americana que se envolve com o jornalista interpretado por Marcello Mastroianni em A Doce Vida (1960), de Federico Fellini, transformou-se em ícone da sedução feminina e, durante a década de 60, num dos sex symbols do mundo do cinema — a sua célebre cena nas águas da fonte de Trevi, em Roma, sob o olhar deslumbrado de Mastroianni, ficou mesmo como um pequeno tratado sobre os enigmas das relações masculino/feminino. Com o seu falecimento aos 83 anos — a 11 de Janeiro, numa clínica na região de Roma —, desaparece aquela que foi, afinal, um símbolo exuberante de todo um cinema italiano (e europeu) em período de admirável energia criativa.
Não era italiana, mas sueca. E não começou pelo cinema da Europa. De seu nome Kerstin Anita Marianne Ekberg, nasceu em Malmö, a 29 de Setembro de 1931, tendo a sua vida mudado quando, em 1950, foi eleita Miss Suécia. A disputa do título de Miss Universo levou-a aos EUA. Não venceu o concurso, mas o facto de ter ficado entre as seis finalistas deu-lhe um contrato com a Universal Studios, iniciando uma carreira de starlet que lhe deu papéis mais ou menos decorativos em comédias como Abbott e Costello Vão para Marte (Charles Lamont, 1953). Entre os filmes mais importantes em que participou incluem-se Pintores e Raparigas (1955), de Frank Tashlin, com a dupla Jerry Lewis/Dean Martin, e a adaptação de Guerra e Paz (1956), dirigida por King Vidor.
Promovida como a “Marilyn Monroe da Paramount”, acabou por ser, sobretudo, uma típica pin-up da década de 50. Esse estatuto apenas mudaria através de A Doce Vida, com Fellini a oferecer-lhe o papel de uma “mulher de sonho” que, num certo sentido, bloqueou os horizontes da sua própria carreira. Uma vez, reconhecendo esse paradoxo, terá mesmo dito: “Fui eu que tornei Fellini famoso, não o contrário”.
Trabalhou de forma regular até ao início da década de 90, quase sempre em papéis que tentavam duplicar a imagem de glamour dos anos 50. São exemplos dessa lógica a comédia Estes Turistas Americanos (Mel Stuart, 1969), o western O Cavaleiro da Vingança (Tanio Boccia, 1972) ou a aventura As Amazonas de Ouro (Mark L. Lester, 1979). Em boa verdade, depois de A Doce Vida, os momentos mais significativos da sua filmografia continuaram a ter assinatura de Fellini: primeiro, no filme de episódios Boccacio 70 (1962), como uma mulher-gigante que “salta” de um painel publicitário para assombrar a existência do pacato Dr. António (Peppino De Filippo); depois, em Os Palhaços (1970) e Entrevista (1987), no seu próprio papel, partilhando com Fellini a evocação terna e nostálgica de tempos de maior glória.
A mulher cujos pais, nas palavras de Bob Hope, mereceram vencer o “Nobel da Arquitectura”, teve uma existência especialmente difícil nos seus derradeiros anos: problemas financeiros levaram-na mesmo a pedir auxílio à Fundação Fellini, sediada em Rimini. Para a história, ficará como uma imagem emblemática do imaginário erótico dos anos 60, a ponto de ter sido citada no segundo álbum de estúdio de Bob Dylan, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963): no tema I Shall Be Free, há uma estrofe em que o cantor diz que recebeu um telefonema do Presidente Kennedy, perguntando-lhe o que é preciso para “fazer crescer” o país; Dylan responde-lhe com três sugestões: “Brigitte Bardot, Anita Ekberg e Sophia Loren” — eis o respectivo registo audio.


>>> Obituário no New York Times.

Godard — a experiência interior

Mais uma visita ao prodigioso Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard: um filme deste tempo, fora de qualquer medida do tempo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Janeiro), com o título 'Nostalgia da experiência interior'.

Num mundo perfeito, a estreia de um filme tão genial como Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard, mobilizaria pessoas, instituições e meios de comunicação muito para além da acomodação de qualquer rotina. Estamos perante uma singularíssima expressão do trabalho de um autor que, desde os tempos heróicos da Nova Vaga francesa (parecendo que não, a sua primeira longa-metragem, O Acossado/À Bout de Souffle, surgiu há 56 anos), nunca desistiu de fazer filmes questionando o cinema, as linguagens que nele confluem e o seu lugar no labirinto das artes.
É verdade: não vivemos num mundo perfeito. De alguma maneira, Adeus à Linguagem existe como um objecto confessional em que o cineasta começa por reconhecer a imperfeição do próprio cinema. Imperfeição técnica? Impotência expressiva? Fragilidade comunicacional? Nada disso. Sucede que o cinema deixou de ser o modelo central do espectáculo (que foi durante grande parte do séc. XX), vivendo nós num caldeirão de acontecimentos “instantâneos”, muitas vezes protagonizados por patéticos “famosos”, todos os dias empolados pelo dispositivo televisivo. O humanismo passou a ser uma miragem retórica porque, afinal, os valores sociais dominantes ignoram a irredutibilidade individual. Como diz Philippe Sollers, a certa altura citado nos diálogos do filme: “A experiência interior passou a ser interdita pela Sociedade em geral e pelo Espectáculo em particular”.
Pelo menos desde finais da década de 80, com as suas monumentais História(s) do Cinema (disponíveis no mercado do DVD), Godard lida com esse desgaste dos valores primordiais do cinema assumindo cada filme, grande ou pequeno, em película ou em video, como um conjunto de páginas de um bloco-notas em permanente redacção.
Por um lado, há nas suas deambulações cinematográficas (apoiadas em técnicas videográficas) muitos tópicos eminentemente auto-biográficos: a maior parte dos seus filmes passou mesmo a ter como cenário a zona da Suíça onde Godard reside, em Rolle, nas margens do Lago Léman; por outro lado, a estrutura de cada filme tem tanto de exposição individual como de especulação sobre a possibilidade de o cinema sobreviver num mundo em que as imagens (e os sons!) passaram tantas vezes, demasiadas vezes, a existir como meros instrumentos de mecanismos mais ou menos sensacionalistas enraizados em lugares-comuns televisivos. Uma personagem o diz: “Aquilo que eles chamam as imagens tornou-se o assassinato do presente”.
Como quase sempre acontece no cinema de Godard, através de momentos tão diversos como O Acossado, Tudo Vai Bem (1972) ou Elogio do Amor (2001), deparamos com homens e mulheres que vivem e revivem a própria possibilidade de constituírem um par. A dicotomia masculino/feminino está no cerne deste cinema em que, em última instância, se discute sempre a sublime arte de saber aceitar as suas próprias imperfeições.

domingo, janeiro 25, 2015

Benjamin Clementine, opus 1

Coisa séria — Benjamin Clementine é um jovem de 26 anos, londrino, de ascendência ganesa, que possui o dom de uma voz tão cristalina quanto dramática. Canta com a naturalidade desarmante de quem pode derivar da mais clássica pop para as paisagens fronteiriças da spoken word, sempre apoiado numa imaculada precisão do dizer.
Embora conhecido e reconhecido na Grã-Bretanha, a sua vida pessoal e profissional tem passado muito por França. Dizem as crónicas que, entre as suas influências, gosta de citar Nina Simone, Leonard Cohen e Antony Hegarty — não é estultícia, como o prova, com assombrosa eloquência, o seu primeiro álbum, At Least for Now.
Dois exemplos, para já: Cornerstone, no programa da BBC2 Later... with Jools Holland (22 Out. 2013); Nemesis, na edição de Le Grand Journal, do Canal + (no passado dia 22 de Janeiro).



"American Photo" — 25 anos

Uma fotografia, assinada por Peter Hapak, resultante da sobreposição de duas imagens de Christina Hendricks (Joan, em Mad Men) faz a capa do número com que a American Photo comemora as suas bodas de prata. Criada em 1990 como uma derivação da Photo francesa (que existe desde 1967), a revista rapidamente conquistou uma identidade própria, combinando de forma sugestiva e elegante os clássicos, as revelações e a informação sobre as evoluções técnicas no domínio fotográfico. Esta edição especial propõe uma selecção de trabalhos de fotógrafos que, ao longo destes 25 anos, "mudaram as nossas vidas" — eis alguns exemplos.
HERB RITTS
Versace Dress, Black View, El Mirage
1990
LAUREN GREENFIELD
Sheena tries on clothes with Amber, 15, in a department store
dressing room, San Jose, California
1999
LaTOYA RUBY FRAZIER
Self portrait, March (10am)
2009

Godard e a salvação da alma (2/2)

Para Jean-Luc Godard, o mundo em que vivemos tem SMS a mais e comunicação a menos: o seu filme Adeus à Linguagem é um produto directo dessa tragédia das imagens e dos sons — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 janeiro), com o título 'O pintor, o cineasta, a sua televisão e o fantasma dela'.

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Há no olhar de Godard componentes que poderemos aproximar de uma certa lógica jornalística. Obcecado pelas convulsões de qualquer tempo presente — desde as marcas contraditórias de Maio 68 até, em tempos mais próximos, à decomposição simbólica da identidade europeia —, ele é um “repórter cinematográfico” que se obriga, não apenas a relatar o que está a acontecer, mas sobretudo a cumprir o que se afigura sempre deontologicamente mais difícil. Que é como quem diz: compreender como está a acontecer.
Nesta perspectiva, podemos considerar o trabalho do cineasta como uma derivação da arte dos pintores — e escusado será sublinhar que, de Velazquez a Picasso, passando por Rembrandt, Van Gogh ou Renoir, o património pictórico encontra um importante lugar, figurativo e simbólico, no interior de muitas das suas narrativas. Tal como acontece em Adeus à Linguagem, o tratamento da paisagem (também no sentido urbano da palavra) parece corresponder aos esboços do bloco-notas de alguém que, com a ansiedade de ver e compreender que define o verdadeiro repórter, já não se exprime através de uma tela e dos seus pincéis, mas usando uma câmara.
Godard é, assim, conduzido a uma deambulação que envolve uma dimensão auto-biográfica. Não no sentido de contar a história da sua vida, mas sim de dar a ver o lugar onde vive. Literalmente: há vários anos que os seus filmes integram muitas imagens da sua zona da Suíça (Rolle, nas imediações do Lago Léman), por vezes revelando os aspectos mais inusitados do seu quotidiano. Em várias cenas de Adeus à Linguagem, o cão de Godard, de nome Roxy, é mesmo a personagem central, ilustrando uma máxima formulada por Buffon, no séc. XVIII, citada por Darwin: “O cão é o único animal na Terra que nos ama mais do que se ama a si próprio”.
Curiosamente, nos últimos tempos, tudo isto se cruza com a progressiva integração de técnicas de vídeo, como se Godard tivesse inventado uma televisão que vive assombrada pelo fantasma da globalização de imagens e sons. Aliás, Adeus à Linguagem utiliza muitos fragmentos de registo “caseiro”, nomeadamente com telemóveis. Daí que o possamos descrever também como um home movie em que assistimos à interrogação do nosso viver quotidiano saturado de SMS e outras mensagens, mas tão carente de comunicação.

sábado, janeiro 24, 2015

Bergman x 17 (13)

LÁGRIMAS E SUSPIROS (1972)
Grande acontecimento em DVD, depois da exibição em Lisboa e Porto (e mais algumas cidades): a edição de 17 filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), a maior parte em cópias restauradas — razões de sobra para rever algumas imagens emblemáticas da filmografia do mestre sueco.

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Os olhares desencontrados de Liv Ullmann e Ingrid Thulin são apenas o sinal mais imediato do ritual de cumplicidades e desencontros protagonizado pelas quatro mulheres de Lágrimas e Suspiros (cujo título internacional, Cries and Whispers, será mais fiel aos gritos e sussurros de que se faz este filme prodigioso. Num texto sobre o filme, Bergman referiu que a construção de um cenário com paredes cor de sangue terá correspondido ao sentimento de que o "interior da alma" é vermelho. Paradoxalmente, sendo um objecto de intensa espiritualidade, Lágrimas e Suspiros é também o mais cru dos filmes: vogamos no interior de uma intimidade delirante — porque em convivência gelada com a morte — em que o universo feminino (três irmãs e uma criada) experimenta a vulnerabilidade das suas próprias fronteiras face à crueldade masculina. O mais belo e paradoxal testemunho desse envolvimento temático estará em algumas deliciosas fotos de rodagem — eis um exemplo.
Ingrid Thulin e Kari Sylwan
Harriet Andersson e Liv Ullmann
Ingmar Bergman

Viet Cong, isto é, Canadá

Chamam-se Viet Cong. O seu primeiro álbum dá pelo nome de Viet Cong. Que é como quem diz: são canadianos e andam às voltas com uma sonoridade punk, sem transigências, inclusive nas suas intensidades poéticas. Aqui fica a letra de Continental Shelf e o respectivo teledisco, magnificamente intrigante e envolvente.

When all is said and done
You'll be around until you're gone
Crystallized, cancelled eyes
Illegitimate merchandise
Don't want to face the world
It's suffocating (suffocating)
Undesireable circumstances
I can't feel, no I can't feel

Fingertips in the fountain
Fondle liquid gold
Ice on the horizon
The skyline folding in
Nothing is beginning
Edges falling off of themselves
And the water is draining
Off the continental shelf

Check your anxiety
No need to suffer silently
Convulsion vibrating
Being violated (violated)
Don't want to reminisce
I can't remember (can't remember)

Fingerprints in the fountain...

Memória de Rod Taylor

A Máquina do Tempo (1960)
Rod Taylor faleceu no dia 7 de Janeiro, contava 84 anos — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (10 Janeiro), com o título 'Morreu o actor que Hitchcock dirigiu em “Os Pássaros”'.

Em 2009, numa cena do seu filme de guerra Sacanas sem Lei, Quentin Tarantino incluía a personagem de Winston Churchill. Era uma presença breve, mas obviamente carregada de simbolismo. Até mesmo na escolha do actor: fazendo gala do seu espírito cinéfilo, Tarantino convidou o australiano Rod Taylor para interpretar Churchill, homenageando assim o protagonista masculino de Os Pássaros (1963), um dos exemplos mais sofisticados do suspense segundo Alfred Hitchcock. Por cruel ironia, Sacanas sem Lei seria também o seu derradeiro trabalho cinematográfico — Taylor faleceu em Los Angeles, na quarta-feira, dia 7, quatro dias antes de completar 85 anos.
Nascido em Sydney, onde estudou teatro, ganhou experiência nos palcos e também em programas de rádio, nomeadamente na série dramática Blue Hills. Foi, precisamente, um prémio radiofónico (melhor actor de 1954) que o levou a Los Angeles, rapidamente encontrando lugar em diversas produções televisivas e cinematográficas. Foi-se impondo como uma presença carismática de Hollywood, ainda que apenas em papéis secundários. Surgiu, por exemplo, em The Catered Affair (1956), drama dirigido por Richard Brooks com Bette Davis no papel central, e O Gigante (1956), o filme final de James Dean, realizado por George Stevens.
Depois de várias participações em séries televisivas, incluindo Quinta Dimensão e General Electric Theater, ascendeu à condição de estrela graças ao filme que lhe deu o seu primeiro papel de protagonista: A Máquina do Tempo (1960), uma adaptação do clássico de H. G. Wells com assinatura de George Pal, lendário criador de aventuras de ficção científica (o filme foi, aliás, consagrado com o Oscar de melhores efeitos especiais).
Rodagem de Os Pássaros (1963):
Hitchcock dirige Rod Taylor (no chão: Suzanne Pleshette)
A década de 60 corresponde ao período de ouro da carreira de Taylor. Desde logo na televisão, como protagonista da série policial Hong Kong (1960-61), em que interpretava um jornalista americano com vocação de detective. Depois de Os Pássaros, contracenou com alguns dos nomes mais populares da produção da época, incluindo o par Elizabeth Taylor/Richard Burton em Hotel Internacional (Anthony Asquith, 1963), Julie Christie em O Jovem Cassidy (Jack Cardiff, 1965) e Doris Day em Espia em Calcinhas de Renda (Frank Tashlin, 1966).
Como outras figuras emblemáticas desse período, face às profundas transformações temáticas e financeiras de Hollywood, Taylor foi transferindo a sua actividade para o espaço televisivo (tendo surgido nos anos 70/80 em séries como The Oregon Trail ou Falcon Crest). Dir-se-ia que a diversidade de registos em que participou, em vez de consolidar a sua carreira, acabou por enfraquecer a sua imagem junto do grande público. Sintomaticamente, participou num filme exemplar desse período de transformações radicais: Zabriskie Point (1970), obra-prima made in USA do italiano Michelangelo Antonioni, entre nós lançada com o título Deserto de Almas.
[cartaz francês]
>>> Obituário no New York Times.

Sound + Vision 10 anos
Memórias de Arquivo (11)

Reality TV: o vazio
(29 Novembro 2005)

O actual reality show da Endemol, 1ª Companhia, está a conseguir a proeza de banalizar o lugar simbólico da instituição militar na memória nacional e no imaginário português. Todos os dias, na TVI, podemos assistir a longos minutos (por vezes horas) de emissão em que, metodicamente, se reduzem as referências militares a mero pretexto para fazer valer a cultura do “divertimento” que, com armas e bagagens, tomou o poder no espaço televisivo, incluindo na televisão dita do Estado.
Claro que a instituição militar não pode ser dispensada de nenhum olhar crítico ou artístico. Aliás, a história ensina que os militares estão ligados às convulsões mais sublimes e mais tenebrosas da humanidade. O cinema, em particular, tem sabido reflectir tal complexidade, desde a luminosidade de A Grande Ilusão (Jean Renoir, 1937) até ao negrume de O Pianista (Roman Polanski, 2002), passando pela crueldade burlesca de Onde Fica a Guerra? (Jerry Lewis, 1970). A própria televisão pode ter um papel importante nessa abordagem: recordemos o caso recente de Irmãos de Armas (2001), série a cuja produção estão ligados Steven Spielberg e Tom Hanks.
No site português da Endemol, a empresa lembra que “entrou no 3º milénio com uma revolução chamada Big Brother”. A afirmação não poderia ser mais justa. De facto, os reality shows impuseram uma ideologia apoiada em duas formas de violência mediática: primeiro, o ser humano “deve” aceitar passivamente todas as imagens que sobre ele se possam produzir; segundo, não existem verdadeiros laços sociais porque, em última instância, “todas” as imagens são frívolas e promovem a irresponsabilidade do olhar. O problema não está, por isso, em que se façam “caricaturas” dos militares. O problema está em que aqueles patéticos “famosos” estejam a esvaziar toda a simbologia histórica que convocam.
Que isto aconteça perante o imenso silêncio de militares e políticos, eis o que diz bem do entorpecimento social que a televisão instalou. Não que fosse importante que um qualquer estado-maior abrisse um inquérito. Nem se deseja que alguém apele a proibições ou limitações à liberdade de expressão. Mas é, no mínimo, terrível que, face a 1ª Companhia, não haja um único sinal institucional dessa salutar virtude humana que é a indignação.
A mentalidade triunfante conseguiu até impor a ideia de que a “crítica” apenas pretende encher os horários nobres de coisas esquisitas como… filmes de Ingmar Bergman. Acontece que os críticos não são um rebanho de estúpidos: para além das suas muitas diferenças, nunca ninguém escreveu qualquer dislate do género. Em todo o caso, quem quiser sustentar tal argumentação, terá que começar por defender a inteligência da 1ª Companhia contra a mediocridade de Bergman. Estamos todos ansiosos.

Yello, 1985



Lançado em janeiro de 1985 o álbum Stella, dos suíços Yello, deu-nos algumas das suas melhores canções, entre as quais este brilhante Oh Yeah.

Sound + Vision 10 anos
Memórias de Arquivo (10)



Bem lido, Mr Chance
(25 de outubro de 2007)

Um ano depois do excelente O Pássaro Pintado, a Livros de Areia publica outro dos títulos mais significativos da obra de Jerzy Kosinski (1933-1991), escritor nascido na Polónia mas naturalizado norte-americano em 1965. Chance (no original Being There, inicialmente publicado em 1971) é uma espantosa sátira política que, sobretudo, desenha uma caricatura mordaz dos bastidores de Washington.

Em, de apenas 140 páginas, Chance, numa escrita clara, directa, muito visual, conta-nos a história de um velho jardineiro, analfabeto, alheado do mundo, ingénuo, solitário, que durante toda a vida habitou um pequeno quarto numa mansão de um homem rico que o recolheu e deu trabalho. Foi jardineiro, estação após estação tratando das plantas da mansão, vendo televisão nas horas vagas. E nunca saindo deste pequeno mundo. Nem mesmo para um passeio na rua... A morte do “velho”, dono da mansão, deixa-o sem casa nem rumo. É atropelado na sua primeira passeata na rua da grande cidade. O acidente leva-o a uma outra mansão, a da mulher que o atropelou e do seu marido moribundo, figura da alta finança e amigo do Presidente... Chance é aceite na nova família, julgando-o estes um distinto homem de negócios. É apresentado ao Presidente e, questionado sobre a economia do país, responde como se de um jardim estivesse a falar e sem ambição de muito mais. É o que sabe. Responde ao que pensa que lhe perguntaram. A verdade é que a resposta deixa todos perplexos. E aí nasce um mito fulminante. Quem é Chance? É convidado para falar na televisão, os jornais querem fazer dele um perfil, a Casa Branca desespera sem entender que é, a espionagem de Leste disputa-o... Hilariante, ao mesmo tempo profundamente dramático, o livro foi adaptado ao cinema em 1979 por Hal Ashby (a imagem que ilustra o post é do filme), como Bem Vindo Mr Chance. O filme deu o seu último grande papel a Peter Sellers e respeita espantosamente o livro original de Kosinki agora publicado entre nós.

Discutível, parece, apenas, a opção de juntar a sugestão de uma imagem de Bush numa capa que, de resto, é soberbo exercício de tradução, pelo design, da ideia central ao livro. A caricatura de Chance é ao sistema, não a Bush ou a uma figura em particular. O livro é de 1971. Não havia Bush presidente... O livro português, é certo, surge na era Bush... Mas que não se tire o texto do contexto, por muito que a actual administração americana também justifique a sátira.

Edgar W. Froese (1944-2015)


Um dos fundadores dos Tangerine Dream, com carreira em paralelo a solo desde 1974, o alemão Edgar W. Froese foi um entre os pioneiros que, na Alemanha de inícios dos anos 70, abriram as portas da música electrónica aos terrenos da música popular e, naturalmente, figura proeminente do krautrock. Morreu hoje em Viena (Áustria), aos 70 anos, vítima de uma embolia pulmonar.

Vejam aqui o obituário que assino na Máquina de Escrever

Para ler: o que faz o sucesso em 2015?

Através de primeiros sinais - entre os quais o mais evidente é o som se Uptown Funk, de Mark Ronson - aqui fica um possível retrato de primeiras grandes tendências da pop de sucesso em 2015.

Um texto para ler aqui, no Guardian.

sexta-feira, janeiro 23, 2015

D'Angelo: individualismo e utopia

Um primeiro álbum em 1995, Brown Sugar. Outro em 2000, Voodoo. Agora surge Black Messiah, opus 3 de D'Angelo (data oficial de lançamento: 15 Dez. 2014). Mesmo sem forçar a carga simbólica das atribulações de tão contundente carreira, parece óbvio que os longos intervalos entre gravações reflectem uma visceral indiferença a qualquer convulsão pública, mais ou menos decorrente das leis universais do marketing.
D'Angelo, nome artístico do americano Michael Eugene Archer, nascido em 1974 em Richmond, Virginia, vive a frondosa herança do R&B, balizada por um gosto funk que não renega as fusões jazzísticas, como uma paciente jornada em que experimentação e introspecção são apenas dois nomes distintos para a mesma fixação estética.
Como ele faz notar nas notas do álbum, o título Black Messiah não se refere a nenhuma pessoa em particular (sobretudo, não envolve qualquer auto-denominação), antes designa um modo de estar que pode ser assumido por qualquer um. Porventura é essa a mais justa maneira de definir esta música: uma deriva eminentemente individual e individualista, embora conduzida por um sentimento utópico de comunidade — para que conste, aqui ficam os sons exemplares de Soul Prayer.


Soul prayer, soul prayer
Hallowed be thy name
Kingdom come, will be done, oh yeah
I do... the devil on your feet
I know that he will, he will try to stop you
From seeing your days

But you got to pray all the way
Till you get on
I believe that some day we will rise

I know that he will try to harm you
And if you can
I know that you will make it to the promised land
But you got to pray, you got pray
Oh you got to pray for redemption
Lord, keep me away from temptation
Deliver us from evil, oh yeah

And all this confusion around me
Give me peace
I believe that love