(29 Novembro 2005)
O actual reality show da Endemol, 1ª Companhia, está a conseguir a proeza de banalizar o lugar simbólico da instituição militar na memória nacional e no imaginário português. Todos os dias, na TVI, podemos assistir a longos minutos (por vezes horas) de emissão em que, metodicamente, se reduzem as referências militares a mero pretexto para fazer valer a cultura do “divertimento” que, com armas e bagagens, tomou o poder no espaço televisivo, incluindo na televisão dita do Estado.
Claro que a instituição militar não pode ser dispensada de nenhum olhar crítico ou artístico. Aliás, a história ensina que os militares estão ligados às convulsões mais sublimes e mais tenebrosas da humanidade. O cinema, em particular, tem sabido reflectir tal complexidade, desde a luminosidade de A Grande Ilusão (Jean Renoir, 1937) até ao negrume de O Pianista (Roman Polanski, 2002), passando pela crueldade burlesca de Onde Fica a Guerra? (Jerry Lewis, 1970). A própria televisão pode ter um papel importante nessa abordagem: recordemos o caso recente de Irmãos de Armas (2001), série a cuja produção estão ligados Steven Spielberg e Tom Hanks.
No site português da Endemol, a empresa lembra que “entrou no 3º milénio com uma revolução chamada Big Brother”. A afirmação não poderia ser mais justa. De facto, os reality shows impuseram uma ideologia apoiada em duas formas de violência mediática: primeiro, o ser humano “deve” aceitar passivamente todas as imagens que sobre ele se possam produzir; segundo, não existem verdadeiros laços sociais porque, em última instância, “todas” as imagens são frívolas e promovem a irresponsabilidade do olhar. O problema não está, por isso, em que se façam “caricaturas” dos militares. O problema está em que aqueles patéticos “famosos” estejam a esvaziar toda a simbologia histórica que convocam.
Que isto aconteça perante o imenso silêncio de militares e políticos, eis o que diz bem do entorpecimento social que a televisão instalou. Não que fosse importante que um qualquer estado-maior abrisse um inquérito. Nem se deseja que alguém apele a proibições ou limitações à liberdade de expressão. Mas é, no mínimo, terrível que, face a 1ª Companhia, não haja um único sinal institucional dessa salutar virtude humana que é a indignação.
A mentalidade triunfante conseguiu até impor a ideia de que a “crítica” apenas pretende encher os horários nobres de coisas esquisitas como… filmes de Ingmar Bergman. Acontece que os críticos não são um rebanho de estúpidos: para além das suas muitas diferenças, nunca ninguém escreveu qualquer dislate do género. Em todo o caso, quem quiser sustentar tal argumentação, terá que começar por defender a inteligência da 1ª Companhia contra a mediocridade de Bergman. Estamos todos ansiosos.